A dupla alienação do professor universitário

Imagem: Gül Işık
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Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR*

O desafio, hoje, é reconstruir sentidos para o trabalho docente e para a linguagem universitária. É preciso recusar a naturalização do cansaço e da perda do tempo partilhado. É necessário desobedecer ao mandato da eficiência que apaga a escuta, a dúvida e a sensibilidade

1.

A crise vivida pela universidade pública brasileira transcende os números do orçamento, a precarização das estruturas ou a mera falta de reconhecimento social. O núcleo desse processo reside em uma experiência dilacerante e pouco nomeada: o professor universitário, tornado figura central de uma engrenagem contraditória, é capturado por uma dupla alienação que esvazia tanto o sentido de seu trabalho quanto a potência de sua palavra.

No plano mais visível, a alienação material do docente revela-se na sobrecarga, nos múltiplos vínculos, nas tarefas que jamais se encerram. A sala de aula invade o lar, as plataformas digitais sequestram o tempo de descanso, os relatórios substituem o exercício pleno da reflexão.

O professor se multiplica em funções: orientador, pesquisador, executor de projetos, gestor de si e dos outros – quase sempre sem tempo para ser, de fato, mestre. A cada ciclo de avaliações, novas metas são impostas. A cada edital, renova-se a promessa de reconhecimento que nunca se realiza. O resultado é o acúmulo silencioso do cansaço, da frustração, da sensação de ausência nos espaços de afeto.

O trabalho docente, antes experiência de partilha, vira travessia solitária e marcada pela culpa: quantos jantares, quantos momentos com os filhos, quantas conversas fiadas são sacrificadas para atender a demandas institucionais que se renovam ao infinito.

Ao lado desse esgotamento objetivo, há uma alienação menos visível e ainda mais corrosiva: a expropriação da linguagem do próprio professor. O docente vê-se obrigado a comunicar-se com um léxico estranho, marcado pelo idioma dos editais, das métricas e das autoavaliações compulsórias. A palavra, que deveria ser espaço de invenção e de pensamento, é domesticada pela lógica do desempenho.

Relatórios, artigos e projetos são formatados para caber nas exigências institucionais e para pontuar em rankings que pouco dialogam com a experiência real da sala de aula e da pesquisa crítica. O docente aprende, não sem sofrimento, a apagar sua voz – e a falar segundo as regras do jogo. Perde-se, aí, o sabor do inesperado, da dúvida, do tropeço criativo, da escuta autêntica.

A universidade atual demanda professores que entreguem resultados, que ajustem sua prática à gramática da eficiência e do empreendedorismo. A experiência docente, assim, é recodificada: o gesto de ensinar converte-se em performance, o tempo de leitura é substituído pela ansiedade do próximo prazo, a orientação transforma-se em gerenciamento de trajetórias.

O professor é pressionado a transformar vocação em produtividade, criatividade em produto, dúvida em plano de metas. Quando o reconhecimento chega, ele já é moeda simbólica para outra competição. Quando falha, o fracasso é vivido como defeito pessoal, nunca como sintoma de um ambiente hostil.

2.

Essa dupla alienação – do trabalho e da palavra – não é vivida de modo uniforme. Ela se intensifica nos segmentos mais vulneráveis: docentes temporários, mulheres, negros, jovens, professores das regiões periféricas ou do interior. Esses grupos sofrem ainda mais o impacto das políticas de precarização e são frequentemente responsabilizados por sua própria exclusão.

O sofrimento, em vez de mobilizar solidariedade, é internalizado como culpa. O adoecimento físico e mental é tratado como infortúnio individual, nunca como parte de um projeto institucional que sacrifica pessoas para manter a engrenagem em funcionamento.

Apesar desse quadro adverso, há resistências. Mesmo nos interstícios de um sistema que impõe a obediência e sufoca a imaginação, alguns gestos escapam à captura: a aula que desacelera, a pesquisa que se recusa a caber nos formulários, a orientação que acolhe o silêncio, a escrita que ousa errar. Pequenas insubordinações persistem – e nelas, ainda pulsa a possibilidade de uma universidade mais aberta ao humano, menos entregue ao algoritmo.

O desafio, hoje, é reconstruir sentidos para o trabalho docente e para a linguagem universitária. É preciso recusar a naturalização do cansaço e da perda do tempo partilhado. É necessário desobedecer ao mandato da eficiência que apaga a escuta, a dúvida e a sensibilidade.

Isso só será possível se o professor recuperar, no exercício de sua palavra, a coragem do inacabado, da pausa, da hesitação – elementos que não cabem nos relatórios, mas sustentam toda experiência de pensamento autêntico.

A dupla alienação, portanto, não pode ser superada apenas por reformas administrativas ou pela ampliação de recursos. Trata-se de resgatar o sentido do comum, de revalorizar a linguagem como território de invenção, de fortalecer laços de solidariedade e crítica no cotidiano universitário.

Enquanto o ofício de ensinar for visto apenas como um número a ser preenchido, um índice a ser perseguido, a universidade continuará sendo campo de sofrimento e não de formação. Somente quando a fala do professor recuperar seu poder de nomear o mundo – mesmo que tropeçando, mesmo que hesitando – será possível inaugurar outros modos de existir e pensar na universidade capturada.

*João dos Reis Silva Júnior é professor titular do Departamento de Educação da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Autor, entre outros livros, de Educação, sociedade de classes e reformas universitárias (Autores Associados) [https://amzn.to/4fLXTKP]

Referências


BAMBIRRA, Vânia. O capitalismo dependente latino-americano. Rio de Janeiro: Graal, 1978.

DOS SANTOS, Theotonio. A teoria da dependência: balanço e perspectivas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

MARINI, Ruy Mauro. Dialética da dependência. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1973.

OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à razão dualista: o ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003.

SILVA JÚNIOR, João dos Reis. |Universidade Inacabada: Razão e Precariedade. Campinas. Editora Mercado de Letras, 2026.


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