A economia política de Zé do depósito

Nadar (1820–1910), Pierrot Rindo, 1855.
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Por MARCIO KA’AYSÁ*

O Brasil esmagado pela desigualdade sem adjetivos do país

“Enquanto um homem for dono deste campo e mais daquele campo, e outro homem se curvar, jornada após jornada, sobre a terra alheia ou alugada, e não tiver de seu nem o chão onde vai cair morto – esperem a guerra” (Rubem Braga, Cristo Morto, 1945).

O nome verdadeiro é José…, mas para os amigos é Zé do Depósito. É brasileiro, mora na periferia de São Paulo, mas bem poderia ser o fulano de qualquer grande cidade do país. A cor de sua pele… Não importa ou, pelo menos, não deveria importar. É amistoso e inteligente, apesar da educação que lhe foi negada. Seu largo sorriso, contudo, esconde a consciência da violência vivida todo dia. Podia ser qualquer um dos milhões de homens e mulheres que se espremem diariamente nos ônibus, nos trens, nas barcas, nos longos trajetos entre suas casas e o trabalho no centro da cidade. O mesmo que depois de nove ou dez horas têm de percorrer de volta. Todos os dias. Em um desses dias, no centro da cidade, encontrei o Zé.

Estava a caminho do banco quando, do balcão da padaria, Zé do Depósito gritou meu nome. Eu tinha almoçado e achei bom encontrar alguém para um cafezinho. Um pouco amuado com a vida, Zé me contou dos problemas em casa. A mulher era faxineira. Daí veio a pandemia e foi dispensada, sem direitos, das casas que limpava. As novas patroas queriam pagar pouco pelo dia de trabalho. Por isso, D. Jane, sua esposa, passou a fazer salgadinhos para vender. O filho perdeu o emprego. A nora, grávida, trabalhava como caixa de supermercado. Já a filha ainda estudava e queria fazer faculdade, mas pensava em desistir para trabalhar e “ajudar em casa”.

Então, provoquei o Zé e perguntei se ele tinha uma opinião, um porquê de tanto problema de emprego e falta de dinheiro em casa. Eu estava certo de que daria uma aula ao meu amigo. Afinal, eu era um homem branco, nascido em São Paulo, tinha boa renda, morava em casa própria e havia estudado nas melhores universidades do país. Foi, então, que o Zé fez o que tinha que fazer: me ensinou economia política do ponto de vista dos pobres.

Meu amigo tinha clareza da injusta distribuição de renda no país e não hesitou em culpar a concentração de poder nas mãos dos mais ricos por essa realidade brasileira. Para ele, “os donos de fábrica, de comércio, de bancos, os ricos em geral, têm dinheiro para comprar políticos, fazer propaganda de bonzinho e, se precisar, chamar a polícia para acabar com rodinha política de pobre”. Eu ainda quis intervir, nominar esses poderosos como proprietários dos meios de produção, falar que a ordem lhes favorece e sobre a aliança que estabelecem com o Estado, mas o Zé me olhou paternalmente, segurou meu braço e recomeçou. Ele foi direto ao ponto e explicou: o trabalho não tem valor no Brasil e isso não é um acidente, mas uma escolha de quem pode decidir e prefere manter as coisas como estão e seguir usufruindo dos privilégios que possui. “Crescimento, emprego, salário maior? Promessas soltas em boca de banguelo. Qualquer um fala. Quero ver pôr escola boa, ônibus descente e ofertar vaga de trabalho com salário justo para quem quiser. O resto é coisa que aparece de quatro em quatro anos”, fuzilou. E continuou: “quinze anos atrás, parecia que as coisas iriam melhorar, mas eu vi que enquanto eu comprei uma geladeira nova lá para casa em prestações, a família do patrão comprou carrões zerinho e viajaram todo o ano para outro país. Eu sei disso porque o patrão se gabava na nossa frente. Então, eu pergunto: quem ganhou mais?”

Nesse instante, ele começou a fazer comparações. Seu salário versus aluguel, luz, água e transporte, etc. Depois somou o seu celular pré-pago e o de D. Jane. Somou a renda dela: faxinas mais os salgadinhos para vender. Lembrou e pôs na conta o salário que a nora recebe no supermercado do bairro. O filho está desempregado e acabou de se inscrever como entregador “num desses serviços da internet”. Depois somou a despesa do supermercado, os gastos com a filha que ainda não trabalha e, desconsolado, percebeu que já estava faltando dinheiro para completar o mês.

Observo meu amigo e reparo que a vida não lhe foi justa. O rosto mostra cansaço e o dia está na metade (ao menos para mim que acordei às 7h00 da manhã). “Levo uma hora e meia para ir para o trabalho e outro tanto para voltar para casa”, lamentou Zé. “Trabalho oito horas e sempre mais um pouquinho e tenho uma hora de almoço. Somando tudo, gasto 12 horas do dia com coisas do trabalho e tenho que chegar em casa, tomar banho, jantar e dormir para, no dia seguinte, tomar café com pão e começar de novo. Que tempo eu tenho para fazer ginástica que os ‘bonitinho da TV’ falam? Lá aparece gente caminhando em praça cheia de árvores, jardins, no meio da tarde… Isso não é para mim. Nem tem disso onde eu moro. Esses caras estão enganando a gente, Seu Marcio”. Olhei mais atentamente e constatei que seus dentes já não estavam todos lá. “Dentista?!”, se espantou ele, “mas eu não consigo nem pagar as contas de casa!” Sua barriga saliente indicava que, aos quarenta e tantos anos, Zé do Depósito se alimentava das coisas que outros de sua faixa de renda também podiam comprar ao longo do mês: pão, bolacha, macarrão, arroz com feijão e ovo – embora, o arroz esteja tão caro que “tá virando comida de rico”, reclamou. “Carne não pode todo dia. Salada, não”, diz ele. “Na hora do lanche, como uns salgadinhos baratos. Desses de pacote”. A sorte, segundo Zé, é ter um hospital público perto da casa. “O atendimento não é uma maravilha, mas para todo mundo, lá da região, esse atendimento ‘é tudo’.” Imprescindível.

A indignação do Zé cresceu ao relatar uma “pesquisa feita por ele mesmo” no supermercado que frequenta. Ele tinha certeza ‒ e eu admiti que estava certo ‒ de que a inflação é muito maior do que diz a TV. “Reparei”, afirmou, “que em um monte de coisas que eu compro no mercado tem aparecido a frase ‘novo peso’ e esse peso é sempre menor do que vinha na embalagem antes. Então, eu pago o mesmo preço de antes por uma embalagem com menos produto a cada dia. Isso é um jeito de esconder a inflação, né não?”

A aula prossegue e ele se desculpa por não “ser estudado”. Voltou a afirmar, entretanto, que nada daquilo que ele e a periferia vivem é por acaso: “Tem arranjo aí”, ele diz. A pergunta que meu amigo fazia era bem simples: “como é que ele trabalhando duro o dia todo não tem carro e o filho do patrão, que não faz nada, troca de carro chique todo o ano?”. “E olha”, destaca, “Não estou falando do patrão. É do filho e da filha que de vez em quando aparecem no depósito sempre em carros que eu sei que são caros, cheios de roupinha de marca e coisa e tal”. “Mas o pior”, resmungou, “é o chefe dizer que para chegar lá, nós e nossos filhos temos de estudar. Eu fico pensando: ou esse cara não sabe o que é vida de pobre ou é mentiroso”. Fez um gesto de impaciência e prosseguiu: “querem me convencer que estudando na escola da minha comunidade, a molecada vai entrar na mesma faculdade dos filhos do patrão? Vai disputar o mesmo emprego? O mesmo salário? Vai falar inglês? Acho mesmo que estão enganando a gente”. Meu amigo Zé estava coberto de razão.

“Agora, o patrão e os jornais falam de uma tal revolução industrial, de um futuro diferente, de umas máquinas modernas, da… da… da Indústria 4.0. Desde então, passaram a reclamar, para quem quisesse ouvir, da falta de mão de obra qualificada para as empresas”. “Mas com qual escola?”, perguntou Zé do Depósito para mim. Mais triste do que bravo, esse “paulista” do interior de Minas Gerais, não hesitou em dizer: “É burro, sabe? Porque quem manda no país, há muito tempo e até hoje, decidiu que escola boa não é para pobre. No meu bairro, o investimento, lá, é pequenininho. Não tem nem computador para a molecada. Parece que, para os ricos, os jovens da periferia só precisam saber ler rótulos e fazer contas para poder servir ao patrão. Agora, ficam falando que a gente não sabe fazer, não sabe se portar, não mexe em computador e um monte de outras coisas”. Com a língua solta, avançou: “mas, rapaz!, sem escola, sem saúde, sem segurança e com o salário que a gente tem na periferia, querem que o trabalhador seja moderno e esteja pronto quando eles decidirem? Eu queria saber se os filhos desses ricos estariam prontos se estudassem na escola dos meus filhos e morassem na minha rua”. Então, ele me puxa o braço e diz pausadamente: “Olha, Seu Marcio, com essa conversa de capital humano que falam lá, na firma, todo dia, para justificar nosso salário, querem jogar em nós a culpa da pobreza e da falta de emprego. Para eles, a gente é preguiçoso. E eu pergunto: então, como é que fica? Quem faz e desafaz no país vai ficar aí, ‘isentão’?”

Já pronto para voltar ao trabalho no depósito, Zé ainda comentou a crise causada pela COVID-19: “Esse ano ainda teve essa pandemia. Coisa mais infeliz. Meu tio morreu no hospital e minha tia precisou de dinheiro porque demorou a chegar a ajuda do governo. Minha esposa perdeu faxinas, meu filho, o emprego e lá, na periferia, é médico falando uma coisa, pastor falando outra, o ‘Zap-zap’ com mensagem de todo jeito… O povo não sabe o que fazer. Mas como a gente precisa trabalhar para comer, a maioria de nós fechou os olhos e entregou a Deus”. No final da conversa, Zé do Depósito parecia desanimado: “Fazer o que, Seu Marcio? Pobre é assim no Brasil: não tem valor. Só serve de braços para trabalhar para patrão rico ficar mais rico”. E pensativo se despediu: “será que vai ser sempre assim? Até mais, Seu Marcio.”

Fiquei sozinho no balcão, olhando meu improvisado professor se afastar entre carros e gentes. Naquela conversa, aprendi que o Zé era o Brasil esmagado pela desigualdade sem adjetivos do país. Meu amigo era um homem trabalhador, inteligente, forte, honesto e… pobre. Por essa última divisa era julgado, conduzido e controlado. Não importavam seus talentos, esforços ou capacidades porque eles nunca foram observados ou estimulados. A ele e a outros milhões, aqueles que decidem no país, escolheram subestimar e usar como força muscular. Foi, então, inevitável pensar na superficialidade dos analistas, dos gráficos e dos jornais que me enchiam a cabeça. Tantas opiniões quase iguais, axiomas e relatórios e eu nunca tinha percebido que pessoas, como o Zé, não eram vistos. As teorias pouco sabem sobre os mais pobres e desvalorizam seus anseios, dores e angústias. As mesmas teorias, no entanto, põem em destaque os assuntos, os números e as preocupações que interessam aos mais ricos. O problema é que os invisíveis são a maioria da população. Na verdade, eu acabava de entender o significado de subdesenvolvimento. Uma pergunta, então, se pôs: a quem interessa o subdesenvolvimento do Brasil? Acredito que outro cafezinho, com o Prof. Zé do Depósito, vai me ajudar a responder.

*Marcio Ka’aysá é pseudônimo de um economista brasileiro, “sem parentes importantes e vindo do interior”.

 

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