Contrariando a estatística – genocídio, juventude negra e participação política

Imagem: Dalton Paula
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por VALTER SILVÉRIO*

Prefácio do livro recém-lançado de Paulo César Ramos

O livro que chega a um público para além dos universitários e acadêmicos é resultado de uma pesquisa de mestrado que acompanhou, a partir da criação do Movimento Negro Unificado, 1978, a violência socialmente exercida pelas instituições brasileiras contra a juventude. O trabalho, ao distinguir adolescência – o indivíduo como ser psíquico – de juventude – a leitura da experiência coletiva de um segmento e/ou grupo –, tem o mérito de descongelar a própria concepção vigente de juventude ao expandi-la para juventudes.

A juventude negra aparece, portanto, como sujeito na sua articulação com os processos sociais mais gerais e como resultado das relações sociais produzidas ao longo da história mediada pela experiência, individual e coletiva, de um grupo racializado em uma sociedade racialmente estruturada em dominância.

Assim, ao considerar o próprio descompasso da discussão brasileira que enfatizava a existência de juventude no singular, quando muito recortada pela origem social na chave da classe, o texto, por um lado, desafia a homogeneidade e, por outro lado, demonstra que aquele descompasso estimulou os próprios jovens negros/negras a encontrarem caminhos para canalizarem suas reivindicações e demandas em uma sociedade que se nega a reconhecer tanto a sua existência enquanto grupo quanto suas demandas especificas, em especial aquela denunciada internacionalmente, primeiro, por Abdias Nascimento em O Brasil na Mira do Pan-Africanismo contra o genocí­dio da população negra (1978).

Florestan Fernandes ao ressaltar a contribuição de Nascimento observa que dentre outras contribuições do livro está aquela que usa “sem restrições do conceito de genocídio aplicado ao negro brasileiro. Trata-se de uma palavra terrível e chocante para a hipocrisia conservadora”. E, ao mesmo tempo, se pergunta: “O que se fez e se continua a fazer com o negro e com seus descendentes merece outro qualificativo?”

A resposta é não. Em especial, quando analisada à luz de duas definições de genocídio seja como, “o uso de medidas deliberadas e sistemáticas (como morte, injúria corporal e mental, condições de vida insatisfatórias, prevenção de nascimentos), calculadas para a exterminação de um grupo racial, político ou cultural, ou para destruir a língua, a religião ou a cultura de um grupo” (WEBSTER’s Third New International Dictionary of the English Language). Ou ainda como a “recusa do direito de existência a grupos humanos inteiros, pela exterminação de seus indivíduos, desintegração de suas instituições políticas, sociais, culturais, linguísticas e de seus sentimentos nacionais e religiosos” (Dicionário escolar do professor).

O livro de Paulo Ramos se insere dentre aqueles que procuram dar visibilidade ao problema de um verdadeiro genocídio que atravessa a história social e política do país e ganha visibilidade na sua formação urbana e industrial que, embora denunciado por intelectuais e ativistas, persiste e se amplia.

É, portanto, na constituição da juventude negra enquanto sujeito de luta política que Ramos, de forma um tanto otimista, enxerga a possibilidade de contrariar as estatísticas sobre o número crescente de morte de jovens negros abandonados à própria sorte nas periferias urbanas e nos diferentes recantos do país.

Tal protagonismo é revestido, primeiro, pela luta pela própria sobrevivência física e psíquica, segundo, pela consciência de uma existência atravessada de preconceitos, discriminações e negações do acesso às políticas públicas que se recusam a reconhecer a especificidade de suas práticas culturais – criminalizando-as com a repressão policial ostensiva e letal – e, ao mesmo tempo, são a prova concreta de uma segmentação estratégica no plano do direito a ter direitos, transformando-os em um “problema social” tentando incutir em suas perspectivas, horizontes e pulsões pela vida que nada ou pouco importam para os poderes públicos constituídos.

O protagonismo, também, se articula com a própria resistência na chave da percepção de que não há saídas fora da luta política. Daí a importância digna de nota do livro de Ramos: ao acompanhar a construção de uma agenda de luta política pelos próprios jovens negros/negras por meio de participação direta nos eventos, e nas elaborações que deles resultaram, como, por exemplo, o Plano Juventude Viva (de 2012 a 2013), o Grupo de Trabalho Juventude Negra e Políticas Públicas do Conselho Nacional de Juventude (de 2008 a 2010) e dos Encontros Nacionais de Juventude Negra (entre 2005 e 2008). As articulações entre o jovem acadêmico e o militante resultam em um trabalho no qual a intersecção entre aquisição de conhecimento e agência política generativa podem possibilitar a outros o contato com um tema que se relaciona diretamente com as possibilidades de transformação do país em uma democracia.

Não podemos esquecer que a dissertação que dá origem ao livro foi defendida em 2014. O “otimismo” é, portanto, justificável quando consideramos que todas as iniciativas do período foram pautadas em um ambiente de extrema ebulição e de atualização de pautas políticas em uma perspectiva rumo à construção da democracia com ênfase na participação da sociedade civil organizada nunca antes vivenciada nas diferentes fases delineadas pela literatura sociológica e política no país.

Desta forma, outro mérito do livro é que é um retrato instantâneo, portanto, um documento de um campo de possibilidades que se abria e, em sua abertura, o próprio sujeito político juventude negra ganhou visibilidade e materialidade. Um tempo que em termos de duração foi muito curto. Talvez possamos pensar que sua interrupção tenha uma relação direta com as poucas conquistas da própria juventude negra. Lido nesta chave, o presente livro é, também, um manifesto que pode estimular a construção de novos caminhos e/ou rotas por meio dos quais se dará a retomada do processo de democratização tão brusca e violentamente interrompido. Lembrando, analogamente, a contínua interrupção prematura de milhares de vidas negras como resultado do racismo nosso de cada dia.

*Valter Silvério é professor titular do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).

 

Referência


Paulo César Ramos. Contrariando a estatística: genocídio, juventude negra e participação política. São Paulo, Alameda, 2021, 324 págs.

 

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • Um estudo do caso Ailton Krenak1974__Identidade ignorada 21/07/2024 Por MARIA SILVIA CINTRA MARTINS: Prefiro sonhar com Krenak o parentesco com a natureza e com as pedras do que embarcar na naturalização do genocídio
  • Clarice Lispector no cinemacultura a paixão segundo g.h. 22/07/2024 Por LUCIANA MOLINA: Comentário sobre três adaptações cinematográficas da obra de Clarice Lispector
  • O princípio de autodestruiçãoLeonardo Boff 25/07/2024 Por LEONARDO BOFF: Qual ciência é boa para a transformação mundial?
  • Filosofia da práxis como poiésiscultura lenora de barros 24/07/2024 Por GENILDO FERREIRA DA SILVA & JOSÉ CRISÓSTOMO DE SOUZA: Fazer filosofia é, para o Poética, fazer filosofia contemporânea, crítica e temática
  • Que horas são no relógio de guerra da OTAN?José Luís Fiori 17/07/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: Os ponteiros do “relógio da guerra mundial” estão se movendo de forma cada vez mais acelerada
  • Apagão digitalSergio Amadeu da Silveira 22/07/2024 Por SÉRGIO AMADEU DA SILVEIRA: A catástrofe algorítmica e a nuvem do “apagão”
  • A disputa de Taiwan e a inovação tecnológica na ChinaChina Flag 20/07/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: A China já é hoje a líder mundial em 37 das 44 tecnologias consideradas mais importantes para o desenvolvimento econômico e militar do futuro
  • A produção ensaística de Ailton Krenakcultura gotas transp 11/07/2024 Por FILIPE DE FREITAS GONÇALVES: Ao radicalizar sua crítica ao capitalismo, Krenak esquece de que o que está levando o mundo a seu fim é o sistema econômico e social em que vivemos e não nossa separação da natureza
  • A radicalidade da vida estéticacultura 04 20/07/2024 Por AMANDA DE ALMEIDA ROMÃO: O sentido da vida para Contardo Calligaris
  • A questão agrária no Brasil — segundo Octávio IanniJose-Raimundo-Trindade2 19/07/2024 Por JOSÉ RAIMUNDO TRINDADE: As contribuições de Ianni podem auxiliar a reformular o debate agrário brasileiro, sendo que as obras do autor nos apontam os eixos para se repensar a estrutura fundiária brasileira

PESQUISAR

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES