A habilidade da escuta

Imagem: Engin Akyurt
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por JEAN PIERRE CHAUVIN*

A era eletrônica potencializou a percepção superdimensionada dos indivíduos, o que resultou, dentre outros sintomas, na proliferação de textos de cunho narcísico

“Ele era como um galo que pensava que o sol surgisse para ouvi-lo cantar”
(George Eliot, Adam Bede, 1859).

Há vinte e um anos, a editora Cortez publicou Literatura e comunicação na era da eletrônica, de Fábio Lucas: um ensaio denso e arejado que mereceria circular ainda mais entre professores, alunos e (pseudo)escritores em geral. Um dos diagnósticos mais relevantes dizia respeito à desproporção entre o volume de produção escrita e a (in)capacidade de leitura. Como salientava o autor, a era eletrônica potencializou a percepção superdimensionada dos indivíduos, o que resultou, dentre outros sintomas, na proliferação de textos de cunho narcísico.

Parece relevante iniciar esta reflexão aludindo ao excelente livro de Fábio Lucas porque ela pode estar relacionada a um comportamento que não se restringe aos mais jovens. De modo análogo à desproporção entre a escrita (quase sempre de si) e a leitura (do outro), o mundinho das multiplataformas digitais parece ter contagiado grande parte dos usuários da internet – e isso não atinge somente os adolescentes ou os jovens adultos.

Já se admite, entre vários pensadores, sociólogos, psicólogos e estudiosos do comportamento humano, que nosso grau de ansiedade e dispersão é muito maior que há duas décadas, também por conta do uso exagerado e acrítico dos canais de streaming, das redes sociais, dos aplicativos de mensagem etc.

Evidentemente, não estou autorizado a oferecer diagnósticos clínicos, pois não tenho formação em medicina ou psicologia. Porém, observar o comportamento e a fala de numerosas pessoas, nos últimos vinte ou trinta anos, leva-me a suspeitar que um dos efeitos da combinação de ansiedade, depressão e narcisismo resida na enorme necessidade que alguns indivíduos têm de falar (sobre si mesmos) e, simultaneamente, sua manifesta incapacidade de ouvir qualquer coisa que não se refira a eles próprios.

Quando digo “incapacidade de ouvir”, não estou a sugerir que os cidadãos (mais ou menos) digitais se formem em psicologia e pratiquem a “escuta analítica”: seria uma irresponsabilidade sem tamanho fazê-lo. O que se está a dizer é que há necessidade crescente de que os verborrágicos redundantes exercitem a habilidade de escuta. Prestar atenção ao “seu” ouvinte é parte de um aprendizado que permite agir de modo mais solidário e menos egocêntrico. É, essencialmente, uma forma de respeito.

Pode parecer árduo aos falantes excessivos escutar o outro, ou, mais ainda, perceber as reações do “seu” ouvinte ao que dizem. Talvez isso aconteça porque frequentemente os escutadores são confundidos com seres desprovidos de protagonismo e discurso próprio, destinados a funcionar como meros receptáculos de histórias alheias (muitas vezes ditas e reditas em incessante looping).

Ora, a escuta atenta e efetiva demanda alguma dose de altruísmo e sensibilidade. O que parece estar em questão, no falante incapaz de escuta, parece ser a incompetência no movimento de sair de si mesmo; a pressuposição de que as “suas” dúvidas, narrativas e dificuldades são maiores (e mais importantes) que o tempo, o espaço, as dores e as questões do outro.

Restaria investigar se esse texto, que visa a estimular a percepção alheia, será lido por seres desprovidos de escuta. Suspeito que não.

*Jean Pierre Chauvin é professor de Cultura e literatura brasileira na Escola de Comunicação e Artes da USP. Autor, entre outros livros de Sete Falas: ensaios sobre tipologias discursivas. [https://amzn.to/4bMj39i]


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Arquétipos e símbolos
Por MARCOS DE QUEIROZ GRILLO: Carl Jung combinou a literatura, a narração de histórias e a psicanálise para chegar às memórias inconscientes coletivas de certos arquétipos, promovendo a reconciliação das crenças com a ciência
Apelo à comunidade acadêmica da USP
Por PAULO SÉRGIO PINHEIRO: Carta para a Agência USP de Cooperação Acadêmica Nacional e Internacional – AUCANI
O marxismo neoliberal da USP
Por LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA: Fábio Mascaro Querido acaba de dar uma notável contribuição à história intelectual do Brasil ao publicar “Lugar periférico, ideias modernas”, no qual estuda o que ele denomina “marxismo acadêmico da USP
Fundamentos da análise social
Por FABIO DE OLIVEIRA MALDONADO: Apresentação à edição brasileira do livro recém-lançado de Jaime Osorio
O martírio da universidade brasileira
Por EUGÊNIO BUCCI: A nossa universidade precisa se preparar e reforçar suas alianças com suas irmãs do norte. O espírito universitário, no mundo todo, só sobrevive e se expande quando sabe que é um só
A ampliação do Museu de Arte de São Paulo
Por ADALBERTO DA SILVA RETTO JR.: O vão livre do MASP será um espaço inclusivo ou excludente de alguma forma? A comunidade ainda poderá ali se manifestar? O famoso “vazio” continuará sendo livre, no mais amplo sentido do termo?
Minha infância nos porões da Bela Vista
Por FLORESTAN FERNANDES: “Eu morava lá na casa dele e queria sair de lá, eu dizia que passava mal, que comia mal, dormia mal e tudo ia mal, e ela não acreditava”
Ideologias mobilizadoras
Por PERRY ANDERSON: Hoje ainda estamos em uma situação onde uma única ideologia dominante governa a maior parte do mundo. Resistência e dissidência estão longe de mortas, mas continuam a carecer de articulação sistemática e intransigente
O fenômeno Donald Trump
Por DANIEL AARÃO REIS: Donald Trump 2 e seus propósitos “iliberais” devem ser denunciados com a maior ênfase. Se a política de potência se afirmar como princípio nas relações internacionais será funesto para o mundo e para o Brasil em particular
Como funciona a cabeça de um entreguista?
Por JEAN PIERRE CHAUVIN: A reeleição de Donald Trump voltou a atiçar sem-corações e dementes entreguistas. Certamente haverá quem defenda o “tarifaço” trumpista, como se confirmasse a virtude de um estadista
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES