Triângulo da tristeza

Fernand Léger, A cidade, 1919
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Por JOSÉ MICAELSON LACERDA MORAIS*

Comentário sobre o filme de Ruben Östlund

No início de 2023 tomei conhecimento do termo “triângulo da tristeza” de modo peculiar. A partir do filme homônimo com roteiro e direção do sueco Ruben Östlund. O filme foi vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes de 2022. A simples leitura de sua sinopse apenas lhe faz querer não o assistir: “o casal modelo de celebridades, Carl e Yaya, são convidados para um cruzeiro de luxo para os super-ricos. O que parecia digno de ser fotografado para as redes sociais termina catastroficamente, quando uma tempestade brutal atinge o navio deixando os sobreviventes presos em uma ilha deserta e lutando pela sobrevivência”.

A crítica também não vai muito mais longe que a alienada sinopse, com afirmações vagas e superficiais como: “Ruben Östlund faz sua crítica social moderna sem muita originalidade e com escatologia de sobra”; “o luxo e o lixo de mãos dadas”; “Triângulo da tristeza é uma reflexão longa e familiar demais”.

Parece que a crítica anda mesmo precisando de uma crítica da Crítica crítica. Como diriam Marx e Engels na obra A sagrada família: “[…] a Crítica, que se basta a si mesma, que se completa e encerra-se em si mesma, naturalmente não pode reconhecer a história como ela de fato aconteceu, pois isso significaria reconhecer a massa ruim em toda sua massificação massiva, quando se trata justamente de libertar a massa da massificação” (p. 31).

No entanto, o filme é dessas poucas obras cinematográficas que consegue capturar o espírito de uma época, a partir de uma composição estética singular. Se tivéssemos que arriscar uma sinopse escreveríamos o seguinte:

‒ Uma crítica social sobre as interações sociais em todas as suas dimensões, de um casal, da família, trabalho e sociedade. O filme está dividido em três atos. No primeiro, um casal discute sobre igualdade de gênero de uma perspectiva mais econômica que romântica. O segundo ato, passado em um cruzeiro, nos revela como a tripulação, a divisão social de seu trabalho, bem como a sua relação com os passageiros podem representar uma metáfora muito apropriada sobre a sociedade capitalista pós-moderna. Inclusive pela revolta da parcela dos tripulantes que são intensamente explorados e humilhados. O terceiro ato é representado pelo naufrágio do navio, que embora não seja resultado da ação dos revoltados, transforma-se em uma revolução. Mas, na ilha tal revolução não terminará em uma sociedade harmoniosa de igualdade, liberdade e justiça, entre os sobreviventes.

Quem sabe se a sinopse estivesse um pouco nessa linha o espectador pudesse apreciar um pouco mais a obra em suas sutilezas nada sutis. Por exemplo, ele poderia perceber, como diria Nietzsche em sua obra Humano, demasiado humano, que a vaidade “é a pele da alma”, e diante dela: “[…] O desejo único de autofruição do indivíduo (junto com o medo de perdê-la) satisfaz-se em todas as circunstâncias, aja o ser humano como possa, isto é, como tenha de agir: em atos de vaidade, de vingança, prazer, utilidade, maldade, astúcia, ou em atos de sacrifício, de compaixão, de conhecimento” (p.50).

A vaidade elevada a condição de “pele” dos indivíduos atua também, ainda conforme Nietzsche, como direcionador de suas ações para o bem coletivo: “Enquanto um homem não se torna instrumento do interesse humano geral, pode atormentá-lo a ambição; mas sendo esse objetivo alcançado, trabalhando ele necessariamente como uma máquina para o bem de todos, pode então surgir a vaidade; ela o humanizará nas pequenas coisas, o tornará mais sociável, mais indulgente, mais suportável, quando a ambição tiver completado nele o trabalho mais grosseiro (torná-lo útil)” (p. 169).

Podemos perceber, por analogia, que a vaidade, em Nietzsche, apresenta-se como corolário do princípio da mão invisível, de Adam Smith, na qual o autointeresse constitui a ponte entre o egoísmo individual e o bem coletivo. Agora podemos ligar vaidade, autointeresse e liberdade econômica e entender, a partir dessa combinação, o resultado da ação neoliberal no seu louco afã: (1) de responsabilizar individualmente cada um por seu destino (apesar de só existirmos como coletividade); (2) de desregular toda as atividades econômicas (independente do caráter social das mesmas); (3) de se apropriar do Estado para os objetivos do capital (a ideologia do Estado mínimo); (4) do enfraquecimento da democracia (a partir da promoção de movimentos de direita que buscam preservar as desigualdades interseccionadas para o benefício da elite econômica); (5) de produzir lucro, a partir da política de água e terra mortas, e, da expulsão da força de trabalho da atividade econômica e da civilidade (tornada desnecessária pela substituição por robôs); (6) de, a partir dos itens anteriores, promover uma civilidade pós-moderna totalmente contraditória e autodestrutiva (associal, antissocial, ambientalmente insustentável e belicamente autodestrutiva).

Posto isto, a primeira e única referência ao termo aparece logo no início do filme, quando em uma banca de seleção de modelos masculinos, um dos membros pergunta a um modelo (o protagonista), se ele enquanto desfilava não podia relaxar um pouco o semblante para desfazer o triângulo da tristeza: aquele que fica entre os olhos, aquela área que você franze quando está nervoso ou preocupado.

Esta parte do filme constitui o seu prelúdio. Como comentado anteriormente, no primeiro ato, o diretor nos apresenta uma discussão moderna sobre a questão de igualdade de gênero, a partir da vida de um casal, no final de um jantar em um restaurante chique, dividido pelo seguinte dilema: qual de nós, novamente, pagará a conta desse caro “romantismo de rede social”?

A sutileza nada sutil da vida secreta dos ricos e da natureza das interações sociais, em todas as suas formas, dimensões e conteúdos, é apresentada no segundo ato. Nele ficamos sabendo de como a indústria da destruição (de armas) representa uma parcela cada vez mais importante da produção de bens e serviços mundiais, inclusive com uma nobre função: de manter e preservar democracias ao redor do mundo. Como a discussão entre burgueses e pequenos burgueses (um americano comunista e um capitalista russo), sobre o melhor sistema, comunista ou capitalista, se transforma em uma forma de distração social e esnobismo intelectual.

Como os ricos podem ter comportamentos snobes e humilhantes para com a classe trabalhadora assalariada, quando, por exemplo, em um arroubo de “bondade” uma senhora rica dá ordem aos tripulantes para tomarem banho de piscina, com anuência do chefe imediato deles. Enfim, do quanto a civilidade do capitalismo pós-moderno é contraditoriamente antissocial e associal.

Podemos, também, entender o triângulo da tristeza como uma ideia que descreve a interação negativa entre três fatores psicológicos da sociedade pós-moderna, que podem levar a sentimentos de tristeza e depressão: (1) pensamentos negativos sobre si mesmo, que incluem crenças individuais sobre ser incapaz, não ser bom o suficiente ou não ser merecedor de amor e felicidade diante das dificuldades materiais da vida e do efeito demonstração da vida dos muito ricos; (2) pensamentos negativos sobre o mundo (podem incluir a sensação de que o mundo é injusto, cruel ou que coisas ruins sempre acontecem); e (3) pensamentos negativos sobre o futuro (a sensação de que o futuro é sombrio e sem esperança, com pouco ou nenhum potencial para mudança ou melhoria).

As causas do pensamento negativo estão diretamente relacionadas ao capitalismo pós-moderno que, através da economia e das novas tecnologias, promovem a solidão ou isolamento social (quando um indivíduo se sente solitário ou isolado, tem menos suporte emocional e social, o que pode afetar sua saúde mental), pensamentos negativos frequentes que podem reforçar a crença de que a vida não tem sentido (autodepreciação, insegurança, pessimismo e desesperança, que levam a sentimentos de tristeza e desânimo), e, sedentarismo, por excesso de trabalho ou pela falta dele, que afeta negativamente o humor e a saúde mental e física dos indivíduos.

Portanto, o impacto significativo do capitalismo no triângulo da tristeza somente confirma o tipo de civilidade pós-moderna: antissocial, associal e autodestrutiva. O capitalismo incentiva uma cultura de individualismo e competição, que leva a uma sensação de isolamento social e solidão. À medida que os indivíduos se concentram em alcançar o sucesso financeiro e profissional (trabalham longas horas e se dedicam excessivamente à carreira), negligenciam suas relações sociais e familiares, levando a um aumento da solidão e do isolamento e a falta de conexão emocional.

O capitalismo também leva a uma pressão excessiva para alcançar o sucesso financeiro e profissional, que contribui para a ansiedade, a insegurança e a autodepreciação, gerando sentimentos de desesperança e desamparo. A ênfase na competição leva a um clima de hostilidade e desconfiança entre os indivíduos, contribuindo para uma atitude negativa em relação aos outros e a si mesmo.

Além disso, como o capitalismo, inevitavelmente, resulta em desigualdades econômicas significativas, aqueles que lutam para sobreviver em um sistema econômico desigual se sentem desvalorizados e desmotivados, levando a pensamentos negativos e falta de energia e/ou tempo para se envolver em atividades físicas ou sociais. Nessa mesma direção, o capitalismo também promove um estilo de vida sedentário, com longas horas de trabalho sentado em frente a um computador e o estímulo ao consumo de produtos que requerem pouco ou nenhum exercício físico.

Parece existir evidências suficientes para relacionar o sistema econômico capitalista, em sua face pós-moderna, com problemas de saúde mental e física da população mundial. Problemas que apresentam características de interseccionalidade, ou seja, para os quais as desigualdades sociais e econômicas se sobrepõem, interagem e reverberam novamente na saúde mental e física dos indivíduos. Grupos marginalizados, como pessoas negras, indígenas e LGBTQI+, enfrentam barreiras adicionais para acessar recursos e tratamentos de saúde mental, o que agrava ainda mais os efeitos do triângulo da tristeza em suas vidas.

Por último, a interseccionalidade é um conceito importante e precisa ser incluído em todos os campos das ciências sociais, pois reconhece que as pessoas têm múltiplas identidades e que a opressão e a discriminação ocorrem de forma interconectada, ou seja, em diferentes níveis e em diferentes áreas da vida. Por exemplo, uma pessoa pode enfrentar discriminação devido a sua raça, gênero, orientação sexual, classe social, deficiência, religião, entre outras identidades que possam ser relevantes em determinado contexto socioeconômico. Esse conceito é importante porque reconhece a complexidade da experiência humana e ajuda a entender como diferentes formas de opressão e discriminação podem se acumular e se interconectar para criar desigualdades e injustiças.

Por tudo isso, entendemos o filme Triângulo da tristeza como uma obra ímpar sobre a vida (nada) secreta dos ricos, a natureza da civilidade capitalista pós-moderna, e sobre a certeza de sua inevitável destruição, como na Crônica de uma morte anunciada, do genial Gabriel García Márquez.

*José Micaelson Lacerda Morais é professor do Departamento de Economia da URCA. Autor, entre outros livros, de O capitalismo e a revolução do valor: apogeu e aniquilação.

Referência


Triângulo da tristeza (Triangle of Sadness)

Alemanha, França, Reino Unido, Suécia, 2022, 150 minutos.

Direção e roteiro: Ruben Östlund.

Elenco: Charlbi Dean Kriek, Harris Dickinson, Woody Harrelson.


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