A mitologia liberal na propaganda

Imagem: Diana Smykova
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Por LUIZ MARQUES*

A mitologia na propaganda de produtos do mercado financeiro não tem o poder de anestesiar nosso espírito de luta, com abstrações

Recentemente uma instituição do sistema financeiro lançou uma peça publicitária, de muito apuro estético (“Fim de Ano”). Sob uma trilha musical, cantada em inglês e traduzida com licença poética, espelha o desejo para que no ano corrente “as escolhas priorizem o amor em tudo que fazemos”. As esquetes cinematográficas, com conteúdos axiológicos, exprimem juízos sobre as atitudes em cena:

(a) Quando o jovem executivo segura a porta do elevador para a entrada do idoso, que se desloca com a ajuda de um andador. “Antes da pressa, a gentileza” (Educação); (b) Quando a menina negra em idade ainda de engatinhar mergulha um laptop na água, e o pai abraça-a com paciência. “Antes da reação, a respiração” (Racionalidade); (c) Quando o menino de periferia no campo de futebol, triste ao sofrer um gol, volta os olhos para o céu em oração. “Antes da tristeza, a esperança” (Mobilidade Social); (d) Quando a aluna de ballet, ao calçar as sapatilhas, percebe que a colega tem uma prótese mecânica na perna. “Antes das diferenças, as semelhanças” (Diversidade); (e) Quando o motorista distraído mostra-se prostrado por um acidente com danos materiais, e é consolado pela dona do carro abalroado. “Antes da raiva, o respeito” (Empatia); (f) Quando a surfista, com espírito solidário, recolhe os detritos deixados na areia da praia, para depois surfar nas ondas do mar. “Antes do eu, o todo” (Bem Comum).

O comercial termina com a indagação que interpela a nação, agora emancipada da cruel distopia que minava a sociabilidade com a necropolítica liberista e fascista. Voltaremos ao assunto, adiante.

 

Significação

As análises semióticas de Roland Barthes sobre as revistas e as propagandas dividem a significação em denotativa, no nível da percepção superficial, e conotativa, no nível dos códigos subterrâneos transmitidos por padrões denominados pelo pensador francês de “mitologias”. A combinação de tais vetores ideológicos é o que torna viável a conversão dos meios de comunicação em instrumentos para a persuasão das massas, com vistas ao consumo de mercadorias, ideias e estilos de vida. Trata-se de compreender a criação propagandística, no contexto do capitalismo realmente existente.

Com o recurso de uma imagética das emoções, se pretende sensibilizar consumidores dos serviços bancários, sem cometer o “erro escolástico” de projetar o pensamento da instituição no público-alvo. Coisa que acontece no momento em que os profissionais de marketing avaliam os resultados das pesquisas (surveys) sob o prisma patronal, cujo propósito se resume ao pretinho básico: a maximização dos lucros e dos dividendos. Se o banqueiro quer dinheiro, o cliente quer bem-estar.

Educação, racionalidade, mobilidade social, diversidade, empatia e bem comum traduzem os valores universais das entrelinhas da propaganda. Esses construtos teóricos carregam a denotação legada pelo iluminismo, no Ocidente. O repertório dialoga com a inscrição positivista da bandeira brasileira, “ordem e progresso”. Ordem para assegurar que as mudanças nunca abalem as estruturas e as hierarquias sociais. Progresso para a “casa grande”, não para a “senzala”, conforme a metáfora freyreana. A conotação, registre-se, foi relativizada pela ampliação da consciência ecológica hoje.

A significação da publicidade, em tela, dilui as sequelas do capitalismo na cultura compartilhada pelos que desfrutam de privilégios e pelos que vendem a sua força de trabalho. A sugestão sutil de elementos que englobam a prosperidade geral, em um ambiente convivial, soa natural à medida que aponta para os efeitos colaterais do hiperindividualismo na era da “pós-modernidade”. A saber, os subprodutos suscitados pela busca frenética de rendimentos que, amanhã, beneficiarão o conjunto da coletividade humana por obra da dinâmica de acumulação e também das inovações tecnológicas.

As desigualdades que atravessam a realidade são caladas. Na verdade, interpretadas como o motor do desenvolvimento individual e social, a médio e longo prazos. O sofrimento é jogado debaixo do tapete pela compaixão atomizada no cotidiano, para legitimar a retórica universalista. A pobreza, a insegurança alimentar, a fome nas esquinas, a exclusão dos banquetes, a carência de equipamentos urbanos e a informalidade são escamoteadas da dominação capitalista. As sujeiras são escondidas.

Diferente das classes dominantes, as classes subalternas enfrentam dificuldades para formular seus interesses materiais e simbólicos com o léxico universal, a partir do paradigma do trabalho. Se a burguesia falava em nome da “nação” e da “humanidade”; em contrapartida, os trabalhadores não conseguem ocultar o conteúdo classista das demandas, ao propor políticas públicas com óbvia prioridade aos segmentos vulneráveis. Os conflitos desdobram-se, no jogo do perde e ganha.

No presente, ocorre o mesmo com as lutas multiculturalistas por reconhecimento étnico-racial e pela promoção das mulheres: esbarram no colonialismo (racismo) e no patriarcado (sexismo). Setores beneficiados pela tradição contestam os ideais igualitaristas, em prol do status quo, ao minimizar as disparidades e os preconceitos com execrações ao “politicamente correto”. O universalismo dos lemas que abstraem os fatos do solo histórico contribui para a manutenção da distribuição desigualitária de direitos, entre a população. A distância entre o discurso e a prática só encurta com a eclosão do confronto político, onde convém entregar os anéis para salvar os dedos.

 

Emancipação

No caso do comercial, para além dos valores explicitados nas circunstâncias encenadas, subjaz a mitologia liberal. Da educação ao bem comum, passando pela diversidade, nenhum valor – acenado subliminarmente – traz à tona as ações dos “sujeitos em fusão”. Na inacabada formação republicana do país, os guias éticos irrompem sempre associados a condutas isoladas. Como na filmografia hollywoodiana, pródiga em produções com ênfase no papel dos indivíduos, sobram os heróis autônomos; faltam os heróis coletivos nos enredos épicos. Quem construiu os arcos de triunfo?

O substrato das estórias é a famosa “sociedade dos indivíduos”. O processo civilizador atual supervaloriza as individualidades, descolando-as dos controles instituídos socialmente. A dialética entre o indivíduo e a sociedade chega a se dissipar, dando a entender que são categorias analíticas independentes. Ora, não existe indivíduo sem a sociedade, nem sociedade sem os indivíduos.

A “desobediência civil”, para evocar o conceito de Henry David Thoreau, circunscreve-se às atividades individuadas. Por exemplo, na recusa principista de pagar impostos. A decisão de fórum íntimo confere legitimidade ao ato. No entanto, se fulano reúne com sicrano em uma associação para articular um protesto transpessoal contra a cobrança de tributos, de imediato, a manifestação deixa de ser legítima para virar espúria. A matriz individualista vê no associativismo um conluio, por definição, para influenciar as mentes e os corações de agentes particulares da transformação. As saudáveis interações entre os indivíduos e a sociedade são postas dentro de uma camisa de força.

Com um indisfarçável tom pejorativo, a mídia corporativa se reporta a militantes das organizações da sociedade civil (movimentos sociais, sindicatos, entidades comunitárias, ONGs) e da sociedade política (partidos), como se a militância organizada não integrasse a condição cidadã. Sob esse viés, a interlocução política aprovada pelo establishment restringe-se aos representantes eleitos para o exercício de mandatos parlamentares. A eles, caberia a deliberação sobre polêmicas de interesse dos municípios, dos estados e da União. Em consequência, a proposta do novo governo de potencializar a mobilização da cidadania, no quadro de um projeto inclusivo e transparente, para viabilizar a construção do Orçamento Participativo Federal (OPF) subverte a mitologia liberal das esquetes.

O comercial encerra com uma pergunta. “E pra você, o que vem primeiro em 2023?” O eloquente questionamento, decerto sem intenção, serve para cutucar os golpistas frustrados com o putsch que não se configurou, após dois meses de acampamento com banheiros químicos defronte os QGs do Exército. Não adiantaram as preces para pneus e ovnis, na expectativa de uma intervenção militar contrária à soberania popular expressa nas urnas. Nem o Führer aguentou o chororô da impotência.

A formidável vitória foi problematizada nos sombrios meandros da dimensão paralela, inventada pelo bolsolavismo. Frações das finanças, da indústria, do comércio varejista, do agronegócio (que produz commodities para exportação) e do garimpo (ilegal, em terras indígenas da Amazônia) tentaram em vão ignorar a façanha do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, aclamado no mundo. Os grupos que somam uma dívida de R$ 20 bilhões, em razão de multas ambientais, tinham a promessa do governante fujão de que os órgãos de fiscalização permitiriam a absurda prescrição do débito. Deles, saiu grande parcela do financiamento para os criminosos atos de terrorismo, em Brasília.

O Estado de direito democrático garantiu a Constituição, em vigor, apoiado no Supremo Tribunal Federal (STF) e no Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Aos compatriotas restam as “quatro linhas” da Carta Magna, que zumbis citam com uma hermenêutica falsa. A pátria provou ser mais forte do que a extrema direita. O povo começa a se livrar dos grilhões da tirania de classe, gênero e raça. A mitologia na propaganda de produtos do mercado financeiro não tem o poder de anestesiar nosso espírito de luta, com abstrações. O combate à barbárie ensinou-nos o caminho para a emancipação.

*Luiz Marques é professor de ciência política na UFRGS. Foi secretário estadual de cultura do Rio Grande do Sul no governo Olívio Dutra.

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