Cravos ontem e hoje

Mural da Revolução dos Cravos em Lisboa.
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Por JOSÉ ANTONIO DA COSTA FERNANDES & RENATO AFONSO GONÇALVES*

Um cravo, um rifle e um símbolo ficaram para a eternidade. Eclodiu para além das fronteiras, servindo de inspiração para movimentos democráticos em todo o mundo

Uma ação inusitada acabou por simbolizar a Revolução que transcendeu fronteiras, criou novos cenários e fez surgir novos personagens. Era para ser apenas um golpe contra o governo, mas a população aderiu e resolveu sair às ruas para apoiar os militares. Talvez porque entre os portugueses não se guardam muitos segredos, assim os militares pensavam que atuavam em mistério, mas a população já sabia e também apoiava. O apoio talvez fosse inevitável, afinal não havia um português que não tenha tido um familiar que tenha lutado na guerra colonial ou “fugiu” da convocação.

Era primavera em Portugal e uma cena inusitada ocorrera no Chiado. Um soldado pedira um cigarro à Celeste Martins Caeiro, “empregada de mesa” de um restaurante no icônico Edifício Franjinhas, que voltava à casa com um punhado de cravos destinados às comemorações de um ano de vida do estabelecimento, canceladas em virtude da notícia de um Golpe de Estado no país. Como Celeste não era fumante, ofereceu-lhe um dos cravos que foi colocado na ponta do fuzil. E assim Celeste se desfez de todos os cravos, distribuindo-os aos soldados que se dirigiam ao Quartel do Carmo. Nascia a romântica imagem que empresta significado à democracia e liberdade em Portugal, e que corporifica a famosa Revolução dos Cravos.

Uma portuguesa, um soldado, várias imagens, surgiram para a História Contemporânea das revoluções, da mesma forma que outros personagens e imagens populares fizeram acontecer em outros momentos da História. Por seu gesto, Celeste Caieiro permitiu criar um dos maiores símbolos da contemporaneidade e que estampa as bandeiras de vários partidos pelo mundo e da própria Internacional Socialista.

Um cravo, um rifle e um símbolo ficaram então para a eternidade. Um símbolo ainda tão forte que mesmo passados mais de quarenta anos desta Revolução, que por lá é chamada de Revolução de 25 de Abril, ainda está presente nas grandes manifestações da juventude em 2014, que sacudiram não apenas Portugal, mas toda a Europa.

O símbolo da Revolução de Abril teve início quando Celeste Caieiro presenteia com um cravo um soldado que a coloca sobre o cano do rifle e o gesto se espalha. Pessoas nas ruas procuram os cravos, que logo já floreavam os caminhos dos militares e dos populares. Lisboa naquele momento tinha tanques e cravos. Uma paisagem realmente diferente. 

O gesto de Celeste era um gesto de apoio, de uma participação singela, mas demonstrava o que queria o povo português.

Seus chefes, disseram para ela que fosse para sua casa e evitasse confusões, mas ela decidiu ir ver o que estava acontecendo e levou vários cravos vermelhos e brancos. 

Em pouco tempo encontrou os tanques e os sublevados no Largo do Carmo, após uma madrugada de negociações e à espera das novas ordens.

Neste momento um dos soldados com quem Celeste conversava pediu a ela um cigarro. “Eu nunca fumei, mas naquele momento lamentei não ter um. Verifiquei se havia algo aberto, mas era cedo demais, estava tudo fechado e não havia ninguém na rua”.

“Olhei para os cravos e disse, lamentava, mas que só tinha flores. Peguei um cravo, o primeiro foi vermelho, e ele o aceitou. Como sou assim tão pequenina e ele estava em cima do tanque, teve que esticar o braço, agarrou o cravo e o colocou em seu fuzil”. “Nunca esperei que os cravos viessem a derivar em tudo isto, foi um gesto sem segundas intenções”.

Este gesto tomou a dimensão que conhecemos atualmente, pois se espalhou por toda a Lisboa. Os fuzis não dispararam, e a imagem tornou-se clássica. Celeste foi parte da multidão de pessoas que saíram às ruas para ver o que estava ocorrendo, mas seu gesto criou um dos grandes ícones da história. A revolução iniciada nos quartéis se ampliou para muito além dos seus muros; mudou Portugal e interferiu no mundo.

O cenário da Lisboa revolucionária foi marcado pelo povo na rua, por tanques, rifles e cravos. Quis o fado português, ou melhor, o destino, que o símbolo dessa revolução fosse o cravo, flor que tinha grande significado para gregos e romanos, sendo conhecida como “flor de Jove”, porque Jove era o mais bondoso e admirado dos deuses. Significa “eu admiro você” ou “meu coração clama por você”. E foi assim, com essa mensagem, que o povo português recepcionou os Capitães no 25 de Abril.

Mas o romantismo revolucionário não se encerrou ali. As circunstâncias em que ocorreram o movimento conspiratório dos Capitães são profundamente inspiradoras e sua cronologia impressiona. Às 22h55 da noite de 24 de abril de 1974 é implementado um levantamento militar minuciosamente construído pelo Movimento das Forças Armadas (MFA), que se inicia com a transmissão da canção “E depois do Adeus”, de Paulo de Carvalho, através dos Emissores Associados de Lisboa; o primeiro sinal do avanço das operações. Às 00h20 do dia 25, os militares que ocupavam a rádio Renascença deram o segundo sinal, com a transmissão de “Grândola Vila Morena”, de José Afonso, e no Rádio Clube Português, às 4h, é lido o primeiro Comunicado do Movimento das Forças Armadas (MFA), orientando a população a não ocupar as ruas.

Nesse momento, os Capitães dão publicidade aos seus objetivos consistentes na queda da ditadura e no fim da guerra colonial, com a consequente implementação da democracia. Então ocorreu o inesperado. Preparados para uma batalha sangrenta, os Capitães foram surpreendidos pelo imenso apoio da população que massivamente ocupou as ruas naquele 25 de abril. Desgastado pelos anos de resistência democrática e por uma profunda crise econômica acentuada pela guerra colonial que teve início nos anos 1960, o regime não resistiu à associação do levantamento militar à mobilização popular, que formou o elemento motor da pacífica revolução.

Eram as últimas horas dos 48 anos da ditadura instituída pelo Golpe Militar de 28 de maio de 1926, e consolidada por uma Constituição de matiz fascista em 1933. A censura, polícia política, repressão e torturas, propaganda, leis repressivas, imperialismo e isolamento econômico marcaram os anos de António de Oliveira Salazar à frente do Poder, até ser afastado das funções por sua frágil saúde em 1968. Em seu lugar assumiu o Professor Marcello Caetano, a quem caberia liderar o regime até a histórica manhã de 1974, quando cercado por Salgueiro Maia no Quartel do Carmo, foi deposto e mandado ao exílio no Brasil.

Claro que o processo no qual redundou a Revolução do Cravos é complexo, como não menos complexos foram os meses que se seguiram, marcados pela intensa polarização ideológica presente no cenário europeu e mundial daquele período. Mas o programa do MFA – Movimento das Forças Armadas, consistente nos 3 “Ds”: democratizar, descolonizar e desenvolver, foi implementado com sucesso. Em suma, os Militares de Abril tomaram o Poder e o devolveram ao seu legítimo dono, o povo português. Eleições livres foram convocadas e em 25 de abril de 1976 a República Portuguesa instituiu a sua Constituição Democrática, ainda em vigor, e que foi uma das inspirações para a combalida Constituição Brasileira de 1988, incansavelmente defendida pelos democratas brasileiros.

A Revolução dos Cravos eclodiu para além das fronteiras portuguesas, servindo de inspiração para movimentos democráticos em todo o mundo, inclusive para a resistência à ditadura militar no Brasil, fato eternizado na canção “Tanto Mar” de Chico Buarque.

Após viver 50 anos em plena ditadura fascista, Portugal chega aos 49 anos de vida democrática celebrando a Revolução dos Cravos e preparando as celebrações de seu cinquentenário em 2024. A Revolução dos Cravos construiu um “terreno comum” na política portuguesa, uma sociedade profundamente comprometida com a Democracia e com o Estado Social, e um país plenamente inserido no contexto político e econômico internacional.

Após a crise orçamentária ao final de 2021 que derrubou o governo de António Costa, os portugueses, longe de qualquer crise institucional, foram às urnas e conferiram ao premiê mais quatro anos de mandato com maioria absoluta, afugentando a extrema direita europeia que ameaçou colocar as “garras para fora”. Com um Presidente popular de centro-direita, o grande jurista e constitucionalista Marcelo Rebelo de Souza; e com um Primeiro Ministro de centro-esquerda, o socialista António Costa, Portugal demonstra um profundo equilíbrio político e institucional, que dá a estabilidade necessária para a consolidação do cenário econômico e social promissor que se projeta para o país.

Se os portugueses comemoram as conquistas de Abril, de ontem de hoje, nós, do lado de cá do Atlântico teremos anos decisivos para a democracia e para o futuro econômico, institucional e social do Brasil, temos uma reconstrução e ser conduzida, pela qual a fraternidade dos Cravos de Abril, devem motivar nossos corações para a união e pela qual a democracia prevaleça sempre.

O ano de 2023 é o início de um novo tempo no qual acreditamos que o povo brasileiro não mais deverá flertar com o autoritarismo. Nas comemorações que ocorreram em Portugal, principalmente, com a entrega do prêmio Camões ao nosso querido Chico Buarque, em seu discurso de agradecimento ao prêmio foi célere ao estabelecer dois tempos distintos, um (des)governo que passou e a inauguração de um novo tempo de união e reconstrução: “Reconforta-me lembrar que o ex-presidente teve a rara fineza de não sujar o diploma do meu prêmio Camões, deixando o espaço em branco para a assinatura do nosso presidente Lula” (…). “Recebo este prêmio menos como uma honraria pessoal e mais como desagrado a tantos autores e artistas brasileiros humilhados e ofendidos nestes últimos anos de estupidez e obscurantismo”.

Acreditamos que nos próximos anos os brasileiros possam ver “em cada rosto igualdade”, uma “terra da fraternidade”, onde “o povo é quem mais ordena”.

Assim, nos alinhamos ao poeta para cantar e celebrar, que, quem sabe “esta terra ainda vai cumprir o seu ideal/ Ainda vai tornar-se um imenso Portugal”.

*José Antonio da Costa Fernandes é cientista social, pós-doutor pela FGV-SP e diretor do Centro Cultural 25 de Abril e da Casa de Portugal.

*Renato Afonso Gonçalves é advogado, professor do IDP-SP e vice-presidente da Casa de Portugal.


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