Cinema na quarentena: O oficial e o espião

Imagem: Isaura Pena (Jornal de Resenhas)
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por ARNALDO SAMPAIO DE MORAES GODOY

Comentário sobre o filme de Roman Polanski sobre o caso Dreyfus

Se uma sentença de absolvição é a confissão de um erro judicial (Foucault), a reabilitação posterior, seguida de indulto, é admissão de que a condenação fora o ato final de uma farsa jurídica. Essa é a lógica que decorre do caso Dreyfus, que agitou a França na virada do século XIX para o século XX. Pantomina jurídica, com lances de antissemitismo e de provas falsas, o caso Dreyfus ilustra vários temas de fortíssima atualidade. Entre eles, as dissimulações judiciais, nas quais a pureza das formas cria uma imundície dos conteúdos. É a justiça como farsa. Hoje chamamos de “lawfare”.

Por que Polanski tratou desse assunto? Essa pergunta sugere recorrente tópico na crítica de cinema. Pode-se retomar André Bazin (ícone da crítica francesa, pai intelectual de François Truffaut). Para Bazin, os filmes revelam (sic) diretores autores. Trata-se da tese do “autorismo”. Em outras palavras, uma fita é obra centrada na cosmologia de um determinado autor. Arrisco opinar, no sentido de que a opção pela retomada de uma farsa jurídica e de uma injustiça histórica possa ser, de algum modo, um argumento, em causa própria. Uma resposta de Polanski às gravíssimas acusações que sobre ele pairam nos Estados Unidos. Assunto polêmico. A comparação é possível. Não há ingenuidade.

Retomemos o caso Dreyfus. Simetria de informações. Alfred Dreyfus, oficial do exército francês, judeu, de origem alsaciana, foi acusado de vender segredos militares franceses para os alemães. Um forte antissemitismo grassava na França em fins do século XIX. O caso foi julgado secretamente, a portas fechadas, a “hiut-clos”, como se diz em francês. Edgard Demange, advogado de Dreyfus, não teve acesso a vários documentos que incriminavam seu cliente. A condenação foi unânime. Prisão perpétua com trabalhos forçados. As cartas estavam marcadas. O exército estava convencido que se tratava de uma questão de Estado que deveria ser resolvida com a eliminação sumária de Dreyfus.

Em defesa de Dreyfus o escritor Emile Zola, que publicou um bombástico libelo em favor do acusado. A peça central na desmontagem da trama foi o Coronel Georges Picquart, implacavelmente perseguido pelos farsantes. Picquart é a personagem central do filme. É no obstinado coronel que Polanski centraliza a indignação contra a falsa condenação.

Polanski é muito competente. Esnoba pinturas em movimento. A fotografia é extasiante. A direção de arte recria a Paris da Belle Époque, com can-cans e homens que invariavelmente usam bigodes. Há um corte com um automóvel, primitivo, que cruza com uma pequena carruagem. Tempos que mudavam. Inclusive de direção. Os atores brilham (e como brilham). Jean Dujardin é o coronel inconformado com a injustiça. A montagem é impecável.

Os planos mostram salas imensas, com pés-direitos também imensos; ao fundo, uma luz permanente, como a enunciar que a verdade (que é luz) abala a mentira (que metaforicamente é a escuridão). A cena do duelo imaginário é uma aula magistral do uso do espaço e da cor na formação de uma ilusão. Em tempo. Até quando o duelo era permitido na França? 1967, segundo alguns registros, ainda que a prática tenha se tornado obsoleta em fins do século XIX. Respondido.

Para a galeria de eventuais falhas (talvez propositais), a cena inicial, com a Torre Eiffel ao fundo. A degradação de Dreyfus ocorreu antes da inauguração da famosa torre. A torre é de 31 de março de 1889. Dreyfus já fora condenado e humilhado perante os demais militares.

Um filme para ser apreciado como uma escultura. A exemplo da cena do Louvre, quando se vislumbram cópias romanas de originais gregos. Nada falso. Apenas uma cópia. Cena ilustrativa da proposta última do filme: uma cópia de um fato, e não uma falsificação de uma história vivida.

*Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy é livre-docente pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).

Referência

O oficial e o espião (J’accuse)

França, 2020, 132 minutos

Direção: Roman Polanski

Elenco: Jean Dujardin, Louis Garrel, Emmanuelle Seigner.

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Leonardo Sacramento Eduardo Borges Marcus Ianoni Claudio Katz Kátia Gerab Baggio Paulo Capel Narvai Jorge Branco Leonardo Avritzer José Machado Moita Neto Luiz Carlos Bresser-Pereira Carlos Tautz Luiz Eduardo Soares Bruno Machado João Feres Júnior Alysson Leandro Mascaro João Lanari Bo Antonio Martins Luciano Nascimento José Luís Fiori Berenice Bento João Carlos Loebens Liszt Vieira Luiz Werneck Vianna Érico Andrade Julian Rodrigues Henry Burnett Armando Boito Caio Bugiato Dênis de Moraes Vanderlei Tenório José Micaelson Lacerda Morais Milton Pinheiro Samuel Kilsztajn Lucas Fiaschetti Estevez Marcelo Guimarães Lima João Carlos Salles Andrew Korybko Gerson Almeida José Costa Júnior Paulo Sérgio Pinheiro Gilberto Lopes Matheus Silveira de Souza Mário Maestri Rubens Pinto Lyra Everaldo de Oliveira Andrade Osvaldo Coggiola Mariarosaria Fabris Igor Felippe Santos Leda Maria Paulani Antônio Sales Rios Neto Lorenzo Vitral Chico Whitaker Ladislau Dowbor Boaventura de Sousa Santos Luiz Renato Martins Flávio R. Kothe José Dirceu Flávio Aguiar Marilia Pacheco Fiorillo Afrânio Catani Valerio Arcary Daniel Afonso da Silva Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Bernardo Ricupero Walnice Nogueira Galvão Ari Marcelo Solon Chico Alencar Daniel Costa Alexandre Aragão de Albuquerque Eugênio Bucci Manchetômetro Luiz Roberto Alves Ronald Rocha Manuel Domingos Neto Ronaldo Tadeu de Souza Vladimir Safatle Valerio Arcary João Adolfo Hansen Lincoln Secco Gabriel Cohn Jorge Luiz Souto Maior Otaviano Helene Leonardo Boff Daniel Brazil João Sette Whitaker Ferreira Paulo Martins Michael Roberts Luis Felipe Miguel Francisco Pereira de Farias Jean Pierre Chauvin Renato Dagnino José Raimundo Trindade Heraldo Campos José Geraldo Couto Alexandre de Freitas Barbosa Ricardo Musse Paulo Nogueira Batista Jr Airton Paschoa Michel Goulart da Silva Rafael R. Ioris Antonino Infranca Dennis Oliveira Denilson Cordeiro Benicio Viero Schmidt Salem Nasser Ronald León Núñez Bento Prado Jr. Paulo Fernandes Silveira Tales Ab'Sáber Fernão Pessoa Ramos Eugênio Trivinho Bruno Fabricio Alcebino da Silva Ricardo Antunes Anselm Jappe Celso Frederico Marcos Silva Eleutério F. S. Prado João Paulo Ayub Fonseca Maria Rita Kehl Tarso Genro Luiz Bernardo Pericás Marjorie C. Marona Gilberto Maringoni Plínio de Arruda Sampaio Jr. Tadeu Valadares Eliziário Andrade Elias Jabbour Juarez Guimarães Yuri Martins-Fontes Marcelo Módolo Carla Teixeira Sandra Bitencourt André Márcio Neves Soares Celso Favaretto Luiz Marques Marcos Aurélio da Silva Ricardo Abramovay Francisco Fernandes Ladeira Henri Acselrad Priscila Figueiredo Jean Marc Von Der Weid Rodrigo de Faria Slavoj Žižek Marilena Chauí Andrés del Río Luís Fernando Vitagliano Annateresa Fabris Fábio Konder Comparato Francisco de Oliveira Barros Júnior Thomas Piketty Michael Löwy Alexandre de Lima Castro Tranjan Fernando Nogueira da Costa Eleonora Albano André Singer Vinício Carrilho Martinez Atilio A. Boron Sergio Amadeu da Silveira Remy José Fontana Ricardo Fabbrini

NOVAS PUBLICAÇÕES