A opção Lewandowski

Imagem: Katrin Bolovtsova
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Por TARSO GENRO*

A chegada de Lewandowski ao MJ, com seu homem de confiança na Segurança Pública, o procurador Mário Sarrubbo, nos dá a confiança de que o país não vai retroceder nessa área

Apresso-me, como participante dos debates sobre a Segurança Pública em nosso país, em emitir uma opinião sobre o futuro do nosso governo, que será pautado prioritariamente – entre outros temas – pela urgência de apresentar um projeto consistente nesta área, que poderá definir o sucesso ou o insucesso da coalizão centrista que governa o nosso país, até agora bem-sucedida.

O governo está no começo, o país começa a se reorganizar e o Estado brasileiro – profundamente humilhado por todos os néscios que nos governaram no último período –- começa a respirar. Prevenção, inteligência, alta qualidade pericial, reforço da capacidade repressiva dentro da legalidade, reforçamento da qualidade das polícias e das remunerações das corporações policiais e políticas de proteção à saúde mental dos policiais, às famílias dos policiais e às vítimas da criminalidade – tanto proveniente das violências policiais como dos próprios criminosos – separação em prisões planejadas, cientificamente, dos criminosos jovens adultos e dos primários, daqueles grupos criminosos de alta periculosidade, são requisitos mínimos para uma política de segurança pública cidadã e republicana.

Todos estes elementos reclamam um vasto projeto de integração federativa na área da segurança, balizado por Lei Federal (a exemplo do Pronasci) que custa dinheiro e requer uma centralização de alto nível. Defendi e defendo – por isso – a construção de um Ministério de Estado para a Segurança Pública e o reposicionamento do Ministério da Justiça para uma nova condição, a de um Ministério da Justiça e de Defesa dos Direitos, com secretarias fortes que substituam Ministérios fracos, financeira e politicamente, que têm sombreamento entre eles, não certamente por despreparo ou incúria dos seus titulares.

Isso, todavia, ao que tudo indica já é passado e como aprendi, sendo gestor de ministérios e governos importantes, um governante decide segundo condições que sempre lhe são dadas pelas contingências políticas que lhe cercam e pela situação concreta de governabilidade dentro da ordem jurídica democrático-liberal.

A chegada de Ricardo Lewandowski ao Ministério Justiça, com seu homem de confiança na Segurança Pública, o procurador Mário Sarrubbo – duas pessoas probas e intelectualmente qualificadas – nos dá a confiança de que o país não vai retroceder nessa área. O que se teme, porém, não é um retrocesso, mas a possibilidade de o governo não ter unidade – nem recursos previstos em lei – para dotar os órgãos de segurança de ações que mereçam o acolhimento político da maioria da sociedade, para construir um conceito inovador – sustentado em políticas públicas de vários ministérios – para dar eficácia a este novo conceito. A opinião de Mário Sarrubbo, manifestada logo depois da sua indicação, de que deverá constituir na SENASP algo como um “grande GAECO”, mostra que ele deverá se familiarizar melhor com as funções daquele órgão para implantar uma política de segurança renovadora e compatível com a complexa época que vivemos.

Explico-me: não há mais nenhum delito importante ou delito subsidiário de um delito importante, que não tenha causas, ao mesmo tempo locais e globais, sejam delitos econômicos, sejam delitos contra a pessoa, sejam delitos políticos, sejam delitos raciais ou de violências coletivas, ambientais ou originárias de violências culturais e físicas contra comunidades originárias – com raras exceções – que sejam cometidos exclusivamente por impulsos locais. Uma fábrica de cocaína estabelecida num local remoto da América Latina abre uma sequência de “serviços” e ocupações remuneradas para milhares de jovens nas favelas do Rio de Janeiro e nas vielas de Joanesburgo, que matam em série e cooptam, em bloco, centenas de milhares para a esfera do “crime organizado”. O local e o mundo estão, hoje, quase sempre no mesmo espaço da história.

A pior consequência da “guerra às drogas” iniciada nos anos 1970 – uma política exterior militarista do governo americano, tomada como política pública “interna” a cada país – despertou mais violência impune nas comunidades criminosas, para se defenderem e manter o seu poder no território, sem que Estado ocupasse estes territórios com seus serviços de saúde, educação, promoções culturais, geração de renda e emprego. Com esta omissão foi incentivada a política de criminalização geral das comunidades, a partir dos “fluxos financeiros da droga” e da sua reprodução ampliada, não só pelos crimes adjetos a este fluxo, como os sequestros, financiamentos de assaltos, contrabando de armas e extorsões milicianas, mas também pela degeneração dos processos político-eleitorais. É isso que a SENASP deve olhar.

Este talvez seja o máximo desafio do terceiro governo Lula, porque ele implica em dissociar a segurança do país do conceito de “guerra às drogas” para, ao mesmo tempo, associá-lo a um novo projeto de “segurança pública cidadã”, estendido ao universo complexo de um novo conceito de Segurança do Estado Soberano, nos ramos da Segurança Nacional e da Segurança Continental.

Explico-me: no mundo globalizado e integrado pelo capital financeiro pirata, legal ou ilegal, pela comutatividade na transmissão de sinais e dados, diversificação cultural, guerras e migrações decorrentes da miséria absoluta, e da distribuição semilegal das drogas nos ambientes das “classes altas”, acabou a separação radical entre as “externalidades” e as “internalidades”. O mundo interno a cada nação e o seu mundo externo não estão mais separados, nem pela política, nem pela economia, nem pelos modelos de crimes, nos quais o legal e o ilegal interagem – permanentemente – e formam um só ciclo concreto de acumulação em ordens jurídicas que se aproximam com situações políticas comuns de crise na democracia liberal.

Continuo me explicando: é impossível não vincular os crimes relacionados com o tráfico de drogas, violência contra pessoas, crimes financeiros e operações de quadrilhas sofisticadas, instrumentalização sexual de crianças e tratamento das mulheres como gado exportado para o “consumo” dos baronatos internos e externos, com o uso de crianças e jovens pobres na distribuição de drogas para o consumo das classes abastadas. A verdadeira segurança nacional de Estado está sendo vazada, portanto, não mais por guerrilhas ou subversões internas da era das ditaduras, mas pela ocupação do território e das instituições pelo lento, mas seguro progresso dos “clusteres” do crime organizado, como mini-estados paralelos, chegando de maneira tanto sorrateira como violenta às ações de destruição e do controle ambiental.

É o lado mais perverso da integração do mundo, com seus fluxos de formação da opinião, dos comportamentos delituosos, do lazer sacudido pela drogadição e da exploração sexual das mulheres. O tráfico de pessoas e armas, predominantemente, também não obedecem mais aos códigos de conduta aceitos localmente, mas partilham de um universo novo que a internet, por exemplo, socializa, reprime ou legitima nas instâncias do consumo no mercado.

O exemplo mais cabal do fracasso da política da “guerra às drogas” é o que ocorreu com a Colômbia. Ali, onde as Forças Armadas foram integradas e financiadas pelos Estados Unidos para atuar, tanto na segurança nacional (como seria seu dever constitucional) como no combate às guerrilhas, assim como na segurança interna (alterando as suas funções originárias no Estado-nação) ocorreu uma integração “modelar” do crime organizado em escala global, na qual não se distinguia mais o que era “segurança do Estado”, “crime comum”, “segurança nacional” e “segurança continental” de natureza militar, sem distinção do que seria a “segurança pública”, como valor essencial para uma vida comum solidária e amigável.

Desta proeza resultou que na conjugação da violência política com a violência dos grupos de traficantes, emergiu um só processo de violência político-criminal, com a “politização” do tráfico de drogas (transformando os traficantes em guerrilheiros de extrema direita apoiados inclusive por militares da mesma linha política) e, ao mesmo tempo, a “narco criminalização” da guerrilha, (que teve que acordar com os traficantes o controle do território na luta contra as Forças Armadas do país) retardando sim os protocolos de paz e o fim do morticínio.

A luta contra a fome, uma política externa coerente que preserve a nossa soberania e o nosso estatuto de país democrático, o arcabouço fiscal como um canal de passagem aberto entre as “estreitas margens de manobra”, permitidas pela força da economia liberal-rentista – patrocinada pelo clube dos países mais ricos – nos retirou – brilhantemente, do sufoco programado pela desordem bolsonarista, que avassalou o país durante seus quatro anos de mandato.

A boa gestão Dino-Cappelli, no Ministério da Justiça, enfrentou nada menos do que um golpe de Estado, operou medidas de combate ao crime organizado, ao tráfico de drogas e armas, à corrupção política e financeira das instituições – alvejadas pela ira fascista do bolsonarismo – e reestabeleceu os laços iniciais de uma colaboração federativa na Segurança Pública estrito “sensu”, cujas dificuldades tanto são produtos, como estão correlacionadas com os problemas acima elencados: eles habitam o mesmo universo, mas em planetas diferentes.

Viu-se que a “guerra às drogas” – elemento essencial da vida social do sonho americano, que integram o seu PIB gigante de maneira significativa – não foi planejada para extinguir o vício no seu país, nem a sua produção, mas para desviar o seu conduto exportador para outros portos do mundo.

O combate a qualquer tipo de “crime organizado” – tráfico de drogas e outros que dele derivam – não deve ser um elemento de política de segurança superior, nem deve preceder uma política de segurança pública cidadã, que prepare cada parte do território para ser independente, hostil ao tráfico e aos traficantes. Aquele combate lida com tráfico de armas, drogas, tráfico de pessoas, hoje também de órgãos e de divisas ilegais – foi criado pela política exterior de “segurança” de Richard Nixon em 1971, aprofundada posteriormente por Bush Filho e Bush Pai.

Esta política de guerra às drogas, não só não deu nenhuma contribuição às políticas de segurança pública internas dos países “beneficiários” das suas ações, como gerou uma deformidade na segurança pública (interna) destes países, pois os combates que seriam o início de uma segurança interna forte e competente se transformaram numa guerra aos pobres, com as violentas ocupações territoriais onde o Estado se notabilizou pela violência do Estado-Polícia que, quando se retirava, deixava novos contingentes de jovens à disposição dos traficantes e das milícias. A guerra contra o crime organizado tem o mesmo estatuto de importância que as políticas internas de segurança pública, que devem ser desenvolvidas e aplicadas como um só projeto do Estado soberano.

A “guerra às drogas” criou as bases conceituais para que todos os grupos e pessoas que se vinculassem – por exemplo – ao tráfico de drogas (estejam onde estiverem) fossem “inimigos do Estado” americano. E assim seriam tratados e reprimidos, através de uma “guerra”, política americana que aumentou, não só a militarização crescente das ações das polícias militares de Estados como o nosso, mas produziu – no combate às drogas e depois em ações contra os crimes comuns, um rastro de sequestros, poderes milicianos e lutas de caráter militar entre facções rivais, não raro a serviço de políticos vinculados à criminalidade local, obrigando a intervenção direta das Forças Armadas na segurança pública num brutal desvio de função das corporações militares.

Com respeito e sinceridade disse aqui algumas ideias que já havia manifestado rapidamente ao Ministro Ricardo Lewandowski, quando ele anunciou a aceitação do convite do Presidente Lula, que leva ele e a sua equipe ao “olho do furacão, ressaltando que a movimentação política do presidente – dentro do possível e do real – vai sempre na defesa da democracia e da República.

*Tarso Genro foi governador do estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil. Autor, entre outros livros, de Utopia possível (Artes & Ofícios) [https://amzn.to/3ReRb6I]


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