Depois do coronavírus

Imagem: Elyeser Szturm
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por Leonardo Boff*

Enquanto crescer o aquecimento global e aumentar a devastação de habitats naturais não teremos imunidade: os animais nos transmitirão mais vírus.

Muitos já sentenciaram: depois do coronavírus não é mais possível levar avante o projeto do capitalismo como modo de produção nem do neoliberalismo como sua expressão política. O capitalismo é somente bom para os ricos; para os demais é um purgatório ou um inferno e para a natureza, uma guerra sem tréguas. O que nos está salvando não é a concorrência (seu motor principal), mas a cooperação, nem o individualismo (sua expressão cultural), mas a interdependência de todos com todos.

Mas, vamos ao ponto central: descobrimos que a “vida” é o valor supremo, não a acumulação de bens materiais. O aparato bélico montado, capaz de destruir por várias vezes a vida na Terra se mostrou ridículo perante um inimigo microscópico invisível, que ameaça a humanidade inteira. Seria o Next Big One (NBO) do qual temem os biólogos, “o próximo Grande Vírus”, destruidor do futuro da vida? Não cremos. Esperamos que a Terra tenha ainda compaixão de nós e nos dê apenas uma espécie de ultimato.

Já que o vírus ameaçador provém da natureza, o isolamento social nos oferece a oportunidade de nos questionarmos: qual foi e como deve ser nossa relação face à natureza e, em termos mais gerais, face à Terra como Casa Comum? Não são suficientes a medicina e a técnica, por mais necessárias. Sua função é atacar o vírus até exterminá-lo. Mas se continuarmos a agredir a Terra viva – “nosso lar com uma comunidade de vida única”, como diz a Carta da Terra (Preâmbulo) – ela contra-atacará de novo com pandemias mais letais, até uma que nos exterminará.

Ocorre que a maioria da humanidade e dos chefes de Estado não tem consciência de que estamos dentro da sexta extinção em massa. Até hoje não nos sentíamos parte da natureza e nós humanos a sua porção consciente; nossa relação não é para com um ser vivo – Gaia – que possui valor em si mesmo e deve ser respeitado, mas de mero uso em função de nossa comodidade e enriquecimento. Exploramos a Terra violentamente a ponto de 60% dos solos terem sido erodidos, na mesma proporção as florestas úmidas e causamos uma espantosa devastação de espécies, entre 70-100 mil por ano. É a vigência do “antropoceno” e do “necroceno”. A continuar nesta rota vamos ao encontro de nosso próprio desaparecimento.

Não temos alternativa senão fazermos – nas palavras da encíclica papal “Sobre o cuidado da Casa Comum” – uma “radical conversão ecológica”. Nesse sentido o coronavírus é mais que uma crise como outras, mas a exigência de uma relação amigável e cuidadosa para com a natureza. Como implantá-la num mundo montado sobre a exploração de todos os ecossistemas? Não há projetos prontos. Todos estão em busca. O pior que nos pode acontecer seria, passada a pandemia, voltarmos ao que era antes: as fábricas produzindo a todo vapor mesmo com certo cuidado ecológico. Sabemos que grandes corporações estão se articulando para recuperar o tempo e os ganhos perdidos.

Mas há que conceder que esta conversão não pode ser repentina, mas processual. Quando o Presidente francês Emmanuel Macron disse que “a lição da pandemia era de que existem bens e serviço que devem ser colocados fora do mercado” provocou a corrida de dezenas de grandes organizações ecológicas, tipo Oxfam, Attac e outras pedindo que os 750 bilhões de Euros do Banco Central Europeu destinados a sanar as perdas das empresas fossem direcionados à “reconversão social e ecológica” do aparato produtivo em vista de mais cuidado para com a natureza, mais justiça e igualdade sociais. Logicamente isso só se fará ampliando o debate, envolvendo todo tipo de grupos, desde a participação popular ao saber científico, até surgir uma convicção e uma responsabilidade coletiva.

De uma coisa devemos ter plena consciência: enquanto crescer o aquecimento global e aumentar a população mundial devastando habitats naturais e assim aproximando os seres humanos aos animais, estes transmitirão mais vírus. Seremos seus novos hospedeiros, situação para a qual não estamos imunes. Daí pode surgir pandemias devastadoras.

O ponto essencial e irrenunciável é a nova concepção da Terra, não mais como um mercado de negócios colocando-nos como senhores (dominus), fora e acima dela, mas como um super Ente vivo, um sistema autoregulador e autocriativo, do qual somos a parte consciente e responsável, junto com os demais seres como irmãos (frater). A passagem do dominus (dono) a frater (irmão) exigirá uma nova mente e um novo coração, isto é, ver de modo diferente a Terra e sentir com o coração a nossa pertença a ela e ao Grande Todo. Junto a isso o sentido de inter-retro-relacionamento de todos com todos e uma responsabilidade coletiva face ao futuro comum. Só assim chegaremos como prognostica a Carta da Terra a “um modo sustentável de vida” e a uma garantia de futuro da vida e da Mãe Terra.

A atual fase de recolhimento social pode significar uma espécie de retiro reflexivo e humanístico para pensarmos sobre tais coisas e a nossa responsabilidade diante delas. O tempo é curto e urgente e não podemos chegar tarde demais.

*Leonardo Boff, ecoteólogo, é autor, entre outros livros, de Como cuidar da Casa Comum (Vozes, 2018).

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

MAIS AUTORES

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Manchetômetro Yuri Martins-Fontes Luiz Eduardo Soares Ricardo Fabbrini Paulo Sérgio Pinheiro Tales Ab'Sáber Jorge Luiz Souto Maior Eleutério F. S. Prado Francisco Pereira de Farias Érico Andrade Flávio Aguiar José Micaelson Lacerda Morais Leonardo Sacramento Ronaldo Tadeu de Souza Fernão Pessoa Ramos Eugênio Bucci Liszt Vieira Remy José Fontana Sandra Bitencourt Lorenzo Vitral Dênis de Moraes Elias Jabbour Everaldo de Oliveira Andrade Henry Burnett João Adolfo Hansen Chico Alencar José Luís Fiori Julian Rodrigues Marilena Chauí Alexandre Aragão de Albuquerque Mário Maestri Gabriel Cohn Alexandre de Lima Castro Tranjan Matheus Silveira de Souza Paulo Fernandes Silveira Marjorie C. Marona Luciano Nascimento Michael Löwy Luiz Werneck Vianna Daniel Costa Plínio de Arruda Sampaio Jr. Kátia Gerab Baggio Denilson Cordeiro Berenice Bento Ronald León Núñez Heraldo Campos Anselm Jappe Chico Whitaker Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Celso Frederico Alexandre de Freitas Barbosa Samuel Kilsztajn Leonardo Avritzer Luiz Renato Martins Marcos Aurélio da Silva Daniel Brazil Bento Prado Jr. João Carlos Loebens Tarso Genro Ricardo Musse Atilio A. Boron Leda Maria Paulani Henri Acselrad Marilia Pacheco Fiorillo Andrés del Río Otaviano Helene Bernardo Ricupero André Márcio Neves Soares Milton Pinheiro Igor Felippe Santos Thomas Piketty Juarez Guimarães Ricardo Antunes Luiz Roberto Alves Afrânio Catani Gerson Almeida João Carlos Salles João Paulo Ayub Fonseca Priscila Figueiredo Sergio Amadeu da Silveira Marcos Silva Marcelo Guimarães Lima Bruno Machado Mariarosaria Fabris José Machado Moita Neto Valerio Arcary João Feres Júnior Osvaldo Coggiola Luís Fernando Vitagliano Rodrigo de Faria Eliziário Andrade Lincoln Secco Armando Boito Eleonora Albano João Lanari Bo Rubens Pinto Lyra Paulo Nogueira Batista Jr Luiz Marques Luis Felipe Miguel Caio Bugiato Antonio Martins João Sette Whitaker Ferreira Jean Pierre Chauvin Michael Roberts José Costa Júnior Lucas Fiaschetti Estevez Celso Favaretto Paulo Martins Walnice Nogueira Galvão Fábio Konder Comparato Annateresa Fabris Tadeu Valadares Antônio Sales Rios Neto Michel Goulart da Silva Manuel Domingos Neto Ricardo Abramovay Ladislau Dowbor Alysson Leandro Mascaro Rafael R. Ioris Jorge Branco Bruno Fabricio Alcebino da Silva Luiz Bernardo Pericás Renato Dagnino Marcelo Módolo Flávio R. Kothe José Geraldo Couto Claudio Katz Carla Teixeira Gilberto Lopes Airton Paschoa Dennis Oliveira Carlos Tautz Francisco Fernandes Ladeira Leonardo Boff André Singer Ari Marcelo Solon Eugênio Trivinho Marcus Ianoni Andrew Korybko Francisco de Oliveira Barros Júnior Luiz Carlos Bresser-Pereira Jean Marc Von Der Weid Gilberto Maringoni Ronald Rocha Boaventura de Sousa Santos Vladimir Safatle Antonino Infranca Benicio Viero Schmidt Maria Rita Kehl Slavoj Žižek José Raimundo Trindade Eduardo Borges Fernando Nogueira da Costa José Dirceu Valerio Arcary Paulo Capel Narvai Daniel Afonso da Silva Vinício Carrilho Martinez Vanderlei Tenório Salem Nasser

NOVAS PUBLICAÇÕES