A política necrófila

Clara Figueiredo, série_ Brasília_ fungos e simulacros, congresso nacional, 2018
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por TARSO GENRO*

O Bolsonarismo, de um só golpe, debilitou tanto a democracia como o modo de vida orientado pelos valores da República

Bobbio lembrando a emergência do fascismo no bojo da crise da democracia italiana disse que “os fascistas eram arqui-italianos; em oposição, os antifascistas não se consideravam italianos do mesmo modo. Os fascistas eram de outra Itália.” E segue: “a partir desse conceito das duas Itálias, poderíamos também desenvolver a distinção entre pátria e nação.”

Somos da mesma nação, mas a real pátria bolsonarista – que induz conscientemente a aceitação da morte programada (dos que estão fora do seu conceito de “nação”), certamente não é a nossa. O nosso conceito de nação, na República, é instrumental para nos tornar iguais em direitos; o conceito de pátria, no fascismo, é instrumental para incitar a desigualdade essencial entre os humanos. E assim o pratica quando aceita a morte do outro “nacional” e exerce no cotidiano a sua política necrófila.

Ninguém menos do que Karl Polanyi demonstrou que a destruição das economias reguladas, formatadas no pós-guerra, foi um fato histórico “reacionário” que iria gerar um “choque” na democracia-liberal, “produzindo maior concentração de renda e de poder”, e assim criando as condições para a unidade política entre os movimentos populistas de direita e o “mercado desregulado”. Mercado e fascismo, na ordem global do capital financeiro hegemônico, poderiam ser compatibilizados, tanto por períodos curtos, como por um ciclo inteiro.

Mais além da crise da democracia liberal que ocorre em escala planetária, chamam atenção – aqui no Brasil – alguns episódios canônicos da sua degradação. Um deles é a “naturalização” do ultraliberalismo, retirado do campo da política para se tornar – através do cassino financeiro global – uma técnica para a acumulação privada sem geração de trabalho. E assim afinou-se com movimentos fascistas e protofascistas financiados por amplos setores das classes dominantes.

Qual o “sentido” crítico, que é formulado de forma quase hipnótica, no plano da grande política pelos gestores midiáticos da opinião manipulada? É o seguinte: Bolsonaro não é ruim porque seja fascista, misógino, com tendências genocidas, mas sim porque ele não está oportunizando – de maneira consequente – que Paulo Guedes faça as suas reformas devastadoras do Estado Social até o fim.

Esta postura da direita e dos seus epígonos neoliberais gera uma consequência e duas oportunidades, para a oposição democrática – de esquerda e centro esquerda – na sua relação com um suposto “centro” republicano no país. A consequência é que este “centro”, representado pela caricatura do “centrão”, não pode ser num próximo governo democrático o fiel da estabilidade institucional, porque a tentativa de regeneração republicana das instituições será fulminada por ele, como ocorreu com todos os Governos depois de 88.

Qual a primeira oportunidade? Esta situação concreta possibilita uma divisão de “blocos”, ensejando – através da autonomia que a política pode adquirir em situações de crise – a formação de um bloco “democrático republicano”, de oposição ao Bolsonarismo, com uma agenda ampla e comprometida com a estabilidade democrática: combate à devastação socioambiental, a guerra à devastação humana pela fome, a retomada do crescimento da economia por fora do “rentismo”, com uma política externa que recupere a dignidade nacional no fragmentado espaço global onde todas as crises se inspiram.

Esta agenda não é só da esquerda no cenário nacional de hoje e se estreitarmos a nossa visão de unidade contra o fascismo, daremos uma oportunidade para que a retórica do fascismo se torne uma religião sem Deus, articule-se de maneira definitiva com o “centrão” e as religiões do dinheiro e faça da sua retórica contra o “comunismo” um movimento fanático de permanente tensionamento da democracia até rompê-la e destruí-la por um longo período.

Além desta oportunidade política, que pode ser encampada pelo campo democrático para retirar de Bolsonaro a possibilidade de um segundo mandato, emerge uma outra, no campo da disputa ideológica. É uma ideia que só poderá se tornar força material com uma linguagem unitária de rejeição dos dogmas fascistas, que arruínam as condições mínimas de solidariedade social que definem a República: falas unitárias que contenham valores de um projeto de solidariedade social e igualdade, que rejeitem o fascismo tanto como projeto político e como modo de vida selvagem e violento.

Rosa Luxemburgo, dizendo que democracia só é democracia se ela valer para todos – excluindo aqueles que querem matá-la -; e Bobbio, dizendo que é preciso eliminar os poderes ocultos na República, pois “o poder infinito corresponde à perfeita invisibilidade” foram, nas suas respectivas vidas por este caminho. O Bolsonarismo, de um só golpe, debilitou tanto a democracia como o modo de vida orientado pelos valores da República, como forma ideal de Estado que se alimenta das virtudes da cidadania, que – mesmo não sendo majoritariamente virtuosa – pode sofrer no seu âmago os corretivos da vida democrática.

O “vestibular” para entrar na “terceira via” feito pelos comentaristas da Globo News, aplicados em fazer a equivalência entre o PT e o Bolsonarismo – método aceito pelos vestibulandos ali expostos – para mim deixou claro que é importante que todos os blocos políticos reais apresentem seus candidatos à Presidência. Este processo nos levará para pactos e dissensos no segundo turno – se ele ocorrer – para novos pactos e compromissos, visando salvar pátria e a nação das mãos violentas e incompetentes do Bolsonarismo em crise, para que seja o eleitor o filtro das alianças para governar um novo Brasil republicano, resgatado da metástase fascista.

*Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil.

 

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • Um estudo do caso Ailton Krenak1974__Identidade ignorada 21/07/2024 Por MARIA SILVIA CINTRA MARTINS: Prefiro sonhar com Krenak o parentesco com a natureza e com as pedras do que embarcar na naturalização do genocídio
  • Clarice Lispector no cinemacultura a paixão segundo g.h. 22/07/2024 Por LUCIANA MOLINA: Comentário sobre três adaptações cinematográficas da obra de Clarice Lispector
  • O princípio de autodestruiçãoLeonardo Boff 25/07/2024 Por LEONARDO BOFF: Qual ciência é boa para a transformação mundial?
  • Filosofia da práxis como poiésiscultura lenora de barros 24/07/2024 Por GENILDO FERREIRA DA SILVA & JOSÉ CRISÓSTOMO DE SOUZA: Fazer filosofia é, para o Poética, fazer filosofia contemporânea, crítica e temática
  • Que horas são no relógio de guerra da OTAN?José Luís Fiori 17/07/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: Os ponteiros do “relógio da guerra mundial” estão se movendo de forma cada vez mais acelerada
  • Apagão digitalSergio Amadeu da Silveira 22/07/2024 Por SÉRGIO AMADEU DA SILVEIRA: A catástrofe algorítmica e a nuvem do “apagão”
  • A disputa de Taiwan e a inovação tecnológica na ChinaChina Flag 20/07/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: A China já é hoje a líder mundial em 37 das 44 tecnologias consideradas mais importantes para o desenvolvimento econômico e militar do futuro
  • A produção ensaística de Ailton Krenakcultura gotas transp 11/07/2024 Por FILIPE DE FREITAS GONÇALVES: Ao radicalizar sua crítica ao capitalismo, Krenak esquece de que o que está levando o mundo a seu fim é o sistema econômico e social em que vivemos e não nossa separação da natureza
  • A radicalidade da vida estéticacultura 04 20/07/2024 Por AMANDA DE ALMEIDA ROMÃO: O sentido da vida para Contardo Calligaris
  • A questão agrária no Brasil — segundo Octávio IanniJose-Raimundo-Trindade2 19/07/2024 Por JOSÉ RAIMUNDO TRINDADE: As contribuições de Ianni podem auxiliar a reformular o debate agrário brasileiro, sendo que as obras do autor nos apontam os eixos para se repensar a estrutura fundiária brasileira

PESQUISAR

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES