Por HENRIQUE AMADOR PUEL MARTINS & CAUÊ BAASCH DE SOUZA*
Uma abordagem distinta do senso comum
Já era sabido que a sociedade ocidental contemporânea vem produzindo há alguns anos uma fauna curiosa de pessoas com visões de mundo anti-científicas, dando crédito a asneiras como astrologia, homeopatia, movimento anti-vacina, terraplanismo, negação das mudanças climáticas, etc. Com a pandemia, essa questão foi amplificada enormemente com o fenômeno dos assim chamados negacionistas, que começaram a considerar a pandemia de Covid-19 como algo fabricado e que não seria mais do que uma “gripezinha”, sendo portanto contra as medidas de segurança sanitária.
A partir de 2021, com a chegada das vacinas, estas entraram no rol de elementos (junto com máscaras, confinamento, distanciamento) cujas eficácias muitos começaram a questionar. Frente a esses questionamentos, por muitas vezes pouco embasados e às vezes mal intencionados, a resposta era sempre algo na linha de que a ciência já falou que é dessa e dessa forma. Frente a um tal consenso científico, não caberia espaço para questionamento dos leigos. Enquanto a esquerda e democratas honestos em geral faziam o esforço legítimo de combater pessoas de má fé espalhando desinformação, o jeito que procederam (e ainda procedem) contribui ironicamente para legitimar uma posição a que historicamente a esquerda se opôs: a neutralidade da ciência.
Sobre isso, cabe um breve parêntese teórico. Tratando sobre a natureza do conhecimento científico, na tradição marxista-leninista (ou pelo menos sob a luz da potente contribuição de Lukács) à qual os autores se filiam, podemos identificar dois conceitos importantes, aparentemente opostos mas que de fato são complementares: a objetividade da ciência e sua orientação programática não neutra. O primeiro conceito se refere ao fato da ciência ser a forma de práxis humana que busca desenvolver um reflexo desantropomorfizante da realidade, primando pelo nível da universalidade, dentre os três graus de generalidade do ser (singularidade, particularidade, universalidade).
Em outras palavras, a teoria é uma reprodução ideal do movimento real da matéria. Sendo a realidade objetiva, seu reflexo na mente humana será tão mais adequado quanto menos influenciado for pela subjetividade dos humanos que a investigam – portanto a expressão “reflexo objetivo”. Por outro lado, isso não quer dizer que a ciência seja neutra. Essa classificação já não diz respeito ao conteúdo ontológico que a ciência descreve, mas à sua orientação programática, isto é, como produto social, de que modo e para quais fins ela é empregada.
Na medida em que a ciência é produzida em uma sociedade marcada por conflitos de classes e segmentos sociais com interesses particulares, deve-se ter claro que o emprego social da ciência fica de alguma forma condicionado a tais conflitos. Portanto, ao mesmo tempo em que a ciência versa sobre uma realidade objetiva ela possui diferentes orientações programáticas conforme é apropriada e empregada pelos diferentes segmentos sociais – nesse sentido preciso é que a ciência não é neutra.
Dizer que a ciência não é neutra, entretanto, não pode ser uma afirmação que por si só busque amparar uma desqualificação de determinado resultado científico que contraria o grupo social ou político a que pertencemos. Ao contrário, deve ser não mais do que um princípio norteador para conduzir uma investigação concreta que busque desvelar os interesses particulares que orientam programaticamente o emprego daquele resultado em questão.
O princípio da não neutralidade da ciência por si só não autoriza a esquerda a desprezar os estudos que mostram a segurança de determinados agrotóxicos pois estes casam com o interesse do agronegócio. Nem a direita pode desprezar os estudos que indicam a falência do modelo vigente de guerra às drogas e encarceramento em massa pois isso seria do interesse dos narcotraficantes, por exemplo.
Falamos isso aqui para retomar a questão dos assim chamados negacionistas da pandemia. Muitos dos que desprezam sumariamente toda e qualquer objeção desses cidadãos parecem desconsiderar que de fato a distribuição ultra massiva de vacinas está em total conformidade com os interesses da indústria farmacêutica – que por sinal, é um dos ramos maiores e mais monopolizados do capitalismo mundial. Isso não quer dizer que a pandemia e a campanha de vacinação em massa sejam necessariamente conspirações produzidas pelos monopólios farmacêuticos ou algo na direção disso.
Por outro lado, certamente não deve ser ignorado que esses interesses são reais, as corporações são sim poderosas e podem muito bem influenciar governos, mídia e população para que a gestão da pandemia siga um curso específico de acordo com esses interesses. Esse é um conjunto de fatores que, novamente, não deve ser tomado como verdade por contraste, mas como um norte para a investigação.
Em se tratando da produção, discussão, aplicação da ciência, devemos tomar uma série de cuidados. Por um lado é evidente que questões técnicas exigem estudo e profissionais levam anos em formação e pesquisa para estarem aptos a proferir uma opinião sobre determinado assunto, de modo que é extremamente desonesto quem equipara a validade da opinião qualificada com a opinião de qualquer leigo. Por outro lado, todo ser humano é dotado de intelecto e portanto é capaz de raciocinar com sua própria cabeça – a razão é democrática.
Qualquer pessoa, seja como representante singular do gênero humano, seja como cidadão de direito de seu país tem o direito de questionar absolutamente qualquer coisa e obter respostas condizentes com o mérito de seu questionamento. Quem não quiser tirar conclusões por conta própria (até porque ninguém tem tempo pra conduzir investigações sobre absolutamente todas as afirmações científicas que ouve), tem o direito de simplesmente confiar na opinião da maioria dos especialistas. Mas ninguém estará errado em se manter cético sobre uma questão, e confrontar a opinião da maioria com a opinião de outros especialistas e com seus próprios questionamentos. Lembramos: argumento de autoridade é uma falácia lógica. Quer dizer, algo não é verdadeiro porque foi dito por um especialista, mas inversamente alguém é considerado especialista porque diz muitas coisas que podem ser verificadas como verdadeiras.
Intimamente relacionado a isso está uma questão muito importante que é a relação conturbada entre democracia e tecnocracia. O regime vigente no Brasil e em boa parte do mundo é a democracia burguesa, organizada com instituições liberais. Ela é burguesa porque é esta a classe social que em última instância controla e orienta seus aparatos, mas é democracia pois permite em um certo grau a participação da população a eleger políticos que, supostamente, representam seus interesses e em função desses governam e legislam.
A gestão do Estado, seja no capitalismo ou no futuro socialismo, exige também um grau de aporte técnico, para desenvolver políticas públicas que se baseiem não apenas na vontade dos representantes e representados, que em muitos casos pode se mostrar superficial e até mesmo contraproducente sob a luz de investigações científicas. Entretanto, na democracia as camadas intelectuais e técnicas não fazem mais do que aconselhar os políticos ou executar aquilo previamente definido por eles. Se os cientistas querem fazer política (stricto sensu) diretamente, precisam passar pelo crivo do voto popular. Quando os órgãos técnicos decidem as políticas públicas de forma independente ou à revelia dos poderes eleitos, o que temos de fato é uma tecnocracia.
É exatamente com isso que muitos democratas, na melhor das intenções, estão hoje inadvertidamente flertando. Em nome de ampliar as justas e necessárias medidas de controle e combate à pandemia, muitos estão combatendo a legitimidade do governo eleito em tomar ou não tomar decisões, como se a palavra da ANVISA fosse suficiente e inquestionável. Foi o que vimos no recente caso da audiência pública sobre a vacinação infantil. Não há dúvidas que é completamente inaceitável a postura do governo federal e de seus apoiadores em criar constrangimentos e ameaças aos técnicos da ANVISA.
Também entendemos que uma audiência pública não era algo estritamente necessário para esse assunto e cumpriu um certo papel protelatório para o governo. Entretanto também é verdade que, diferentemente do que a oposição alardeou, não é nenhum absurdo fazer uma audiência pública, trata-se de uma opção legítima do governante. Mais próximo do absurdo é de fato a ANVISA, órgão de Estado subordinado ao Ministério da Saúde, ter se recusado a participar de tal audiência pois já teriam informado os dados técnicos e portanto nada teriam a acrescentar no espaço. Repetimos: é inadmissível que um governo patrocine ameaças a quaisquer trabalhadores e, ao mesmo tempo, o órgão técnico achar que sua posição dispensa o debate político é sim um desvio tecnocrático que não devemos deixar passar batido.
Tendo dito todas essas questões preliminares, podemos passar propriamente para a discussão sobre o mérito das questões relativas às estratégias adotadas globalmente para combater a pandemia. No Ocidente, essa estratégia consistiu, no início, basicamente em confinamentos e distanciamento social com uso compulsório de mascaras. Em alguns países asiáticos como China, Coreias, Vietnã, tais ferramentas foram conjugadas com uma estrutura de testagem massiva e abrangente, de modo que os casos novos logo eram identificados, isolados e, por isso, a estratégia de distanciamento podia ser abrandada, sendo aplicada ao mesmo tempo a uma quantidade comparativamente menor de pessoas.
A partir de 2021, a essa estratégia foi adicionado o início das inoculações em massa de vacinas de diferentes tecnologias sendo produzidas por empresas farmacêuticas de diversos países, produzindo uma disputa geopolítica por mercados no interior da pandemia. A distribuição global heterogênea da capacidade industrial e a manutenção das patentes fez com que as doses fossem produzidas em um ritmo muito aquém da demanda. Com esse cenário configurado, tivemos um movimento de divisão mundial, na qual os países ricos avançavam na imunização de suas populações, enquanto os países pobres amargam a continuidade da pandemia com taxas de imunização muito pequenas.
Ao largo disso, outra coisa que é importante notar é que apesar de tantas vacinas desenvolvidas, muito pouco se fala sobre a produção de medicamentos para tratar a COVID-19, coisa que, se também estivesse disponível, traria uma feição bastante diferente para a forma que encaramos a pandemia. Não temos condições de dizer se o preterimento do desenvolvimento de tratamentos radica de razões técnicas ou político-financeiras, mas cabe lembrar que houve e ainda há uma campanha muito forte contra qualquer tentativa de utilização de medicamentos já existentes para tentar tratar a doença.
Certamente existe muita picaretagem, tanto de indústrias que querem vender seus medicamentos como tratamento, como de governos negacionistas como o nosso que apoiou irresponsavelmente a aplicação de medicamentos como forma de mitigar a seriedade da pandemia e as necessárias medidas de isolamento. Entretanto, sem querer bancar uma afirmação que foge de nosso alcance técnico, devemos saber que há sim evidências (portanto não provas finais, mas indícios) de que por exemplo a ivermectina pode proteger a pessoa dos efeitos adversos da COVID-19 quando é administrada como profilaxia ou tratamento precoce.
No endereço https://ivmmeta.com está hospedada uma plataforma que registra em tempo real uma meta-análise de, até o momento, 81 estudos pelo mundo do uso da ivermectina, apresentando resultados em geral positivos. Reiteramos que não estamos aqui colocando nossa mão no fogo em favor de afirmações que não possuímos condições técnicas de avaliar, apenas queremos mostrar que as coisas não são tão preto no branco, como se qualquer menção à ivermectina como medicamento para a COVID-19 fosse necessariamente pseudo-ciência e negacionismo, como a mídia (convencional e alternativa de esquerda) faz parecer.
Juntando essas duas reflexões (distribuição desigual de vacinas no mundo e ausência de tratamento oficial), obtemos uma receita perfeita para o lucro das grandes corporações. A população mundial sem acesso à vacina continua produzindo variantes novas que prolongam a pandemia, enquanto os países com acesso a recursos continuam comprando doses e mais doses de vacina, com cada vez mais reforços. Elas, que são patrocinadas como a única forma legítima de se proteger do vírus, diferentemente de várias vacinas a que estamos acostumados, possuem a inconveniência sanitária de não atenuarem drasticamente a taxa de transmissão. Deste modo, se tornam muito convenientes financeiramente, uma vez que são administradas em toda a população, mas não eliminam totalmente a pandemia, de modo a prolongar sua demanda.
Pode ser que de fato seja uma coincidência, ou mesmo devido à característica do vírus, que com tantas fabricantes diferentes, usando várias tecnologias distintas, todas as vacinas produzidas até agora tenham essa característica. Mas quando se trata de interesses financeiros de tamanha magnitude devemos sim manter uma certa reserva em acreditar piamente em tudo que as corporações (farmacêuticas e midiáticas) nos contam. Ter senso crítico e um ceticismo saudável não torna ninguém teórico da conspiração ou negacionista.
Nada do que foi dito aqui quer colocar em dúvida a eficácia das vacinas em proteger as pessoas – elas são fundamentais. Queremos, entretanto, mostrar ao leitor que existe muito espaço para contestação sobre sua segurança sem com isso entrar no campo do negacionismo. Infelizmente existe muita má fé em grupos resistentes à vacina, de modo a por muitas vezes veicularem suas desconfianças por meio de manipulações grosseiras e notícias falsas. Essa prática precisa ser repudiada e combatida, mas deve-se ter o discernimento de ver que nem todo questionamento às vacinas contra a COVID-19 faz parte do movimento anti-vacina em geral (que de fato é uma excrescência), nem são necessariamente movidas por informações falsas.
Entrando no mérito das vacinas que estão disponíveis no Brasil, é importante destacar que não apenas elas são provenientes de fabricantes diferentes, como em alguns casos são produzidas com tecnologias diferentes. A Coronavac utiliza a tecnologia convencional e já muito estudada do vírus inativo. A Astrazeneca emprega a tecnologia nova (empregada desde uns 10 anos atrás) do vírus enfraquecido (adenovírus). A Pfizer emprega a novíssima (primeira na história) tecnologia de transporte de uma nanopartícula de lipídio contendo uma molécula de RNA mensageiro correspondente à proteína necessária para identificar e combater o SARS-Cov 2. Trata-se de uma tecnologia inovadora que permite um efeito muito rápido e nada tem a ver com alteração genética como algumas notícias falsas maliciosamente espalharam. Apesar da genialidade da inovação, não conhecemos ainda seus efeitos primários e colaterais no longo prazo. Iremos discutir um pouco sobre as evidências reais que estão disponíveis na internet para os cidadãos fazerem suas pesquisas e tirar suas conclusões.
Apesar dessas diferenças, devemos lembrar que o poder público impediu as pessoas de escolherem a vacina que seria inoculada em seus corpos. Não apenas impediu, mas se criou todo um preconceito, como se a pessoa querer escolher aquela substância com a qual se sentisse mais seguro a tornasse uma negacionista, a responsável por atrasar a vacinação dos demais e outros disparates.
Muito se repercutiu com a aprovação das vacinas na fase III de seus testes, permitindo que elas começassem a ser comercializadas, mas pouco se fala que após essa etapa o protocolo científico, para considerar a vacina plenamente testada, exige-se ainda a fase IV. Esta é quando após um medicamento ou procedimento diagnóstico ou terapêutico ser aprovado e levado ao mercado, testes de acompanhamento de seu uso são elaborados e implementados em milhares de pessoas, possibilitando o conhecimento de detalhes adicionais sobre a segurança e a eficácia do produto. Um dos objetivos importantes dos estudos fase IV é detectar e definir efeitos colaterais previamente desconhecidos ou incompletamente qualificados, assim como os fatores de risco relacionados.¹
Não temos quaisquer notícias sobre como anda a fase IV de testagem das vacinas. A razão disso deve ser que todas as vacinas que usamos aqui foram aprovadas pela ANVISA e começaram a ser aplicadas na população antes da conclusão da fase III de testes. A Coronavac está concluindo seus testes desta fase agora em 2022², enquanto as da Pfizer e da Astrazeneca apenas em 2023³.
Portanto, para todos os efeitos, todas elas são vacinas experimentais, como reconhece a própria ANVISA, no artigo 3º de sua Resolução RDC 475 de 10/03/2021: “Os medicamentos e vacinas contra Covid-19 autorizadas temporariamente para uso emergencial para a prevenção da Covid-19 serão destinadas ao uso em caráter experimental, preferencialmente, em programas de saúde pública do Ministério da Saúde”.4
E, de fato, olhando o parecer5 da ANVISA que autorizou a vacina Comirnaty (a da Pfizer) vemos afirmações que talvez possam chocar quem veio se informando apenas pela mídia convencional e alternativa de esquerda, como: “Eficácia e segurança em população pediátrica, gestantes e indivíduos imunossuprimidos: A segurança e a efetividade da vacina Comirnaty em participantes <16 anos de idade não foram estabelecidas no momento do registro sanitário. A experiência com a utilização da vacina Comirnaty em mulheres grávidas é limitada”. […]
“Administração concomitante com outras vacinas: Não existem dados sobre a administração concomitante da vacina Comirnaty com outras vacinas”.
“Eficácia contra infecção assintomática e transmissão do vírus SarsCov-2: Não há evidências de que a vacina Comirnaty previna a infecção assintomática e transmissão do vírus SarsCov-2 de pessoa para pessoa”.
“Eficácia contra Covid-19 grave: Não foi possível concluir qual o grau de eficácia da vacina Comirnaty contra a Covid-19 grave”.
“Eficácia e segurança em longo prazo: A eficácia e segurança da vacina Comirnaty em longo prazo não foram estabelecidas”.
Como se isso não bastasse, pelo mundo inteiro encontram-se cada vez mais notificações de casos, ainda que poucas em número absoluto, de miocardite e pericardite após a inoculação da vacina de mRNA, principalmente em jovens. É de notar que esse fenômeno está recebendo cada vez mais atenção dos pesquisadores6, sendo possível facilmente achar estudos sobre o assunto pipocando na internet. Entretanto, nada disso foi reportado pelas fabricantes em seus ensaios clínicos, cabendo a agências como a norte-americana FDA7 e a brasileira ANVISA8 fazer essa divulgação (que por sinal, não obteve grande repercussão pelas mídias). Em fevereiro de 2022, uma agência governamental do Reino Unido publicou um estudo9 que aponta que a cada milhão de doses aplicadas em crianças de 5-11 anos a quantidade de internações em UTI evitadas é quantitativamente equivalente aos casos de miocardite que produz.
Apesar de tudo isso que expomos, é importante ressaltar que o intuito aqui não é promover no leitor a desconfiança sobre as vacinas ou desincentivá-lo de se imunizar. Para deixar isso bem claro, é interessante reproduzirmos o trecho inicial da conclusão da ANVISA no parecer citado anteriormente: “Apesar da incompletude de dados de desenvolvimento esperados para o registro de um produto biológico, devido ao desenvolvimento célere das vacinas contra Covid-19 e à necessidade de sua disponibilização de forma urgente à população e considerando também os dados apresentados até o momento sobre o produto em tela, pode-se concluir que, apesar da necessidade de complementação de dados de qualidade importantes, não se vislumbra um risco à saúde da população relacionado aos dados faltantes no momento que seja superior à não utilização da vacina”.
Os dados clínicos apresentados demonstram que a vacina Comirnaty induz respostas imunes robustas e confere proteção contra a COVID-19 em indivíduos ≥16 anos de idade, com eficácia demonstrada de 95,0 % a partir de 7 dias após a Dose 2, conforme os dados clínicos apresentados, provenientes do estudo clínico pivotal.
Portanto, toda a questão aqui gira em torno de desmitificar o preconceito sobre aquelas pessoas que optaram por não se vacinar. Há sim os negacionistas bestas e de má fé, há aqueles desinformados sendo manipulados por notícias falsas e há aqueles que fizeram suas pesquisas e concluíram que para si não valia a pena o risco de tomar as vacinas experimentais. Entendendo a situação dessa forma, será que seria prudente já tornar a vacinação contra a COVID-19 obrigatória, incluindo-a no Programa Nacional de Imunizações? Considerando que, como dito, as vacinas não completaram ainda sua terceira fase de testes, muito menos a quarta, talvez seja correto esperar mais um pouco. Mesmo de um ponto de vista pragmático, as taxas de vacinação da população já estão consideravelmente altas e historicamente o sucesso da vacinação no Brasil esteve ligado muito mais ao convencimento da população do que à imposição.
Certamente o Ministério da Saúde do governo Bolsonaro não está guiado por considerações tão racionais ao até agora não incluir a vacinação contra a COVID-19 como obrigatória, mas essa escolha é uma prerrogativa legal do poder executivo. Aqueles que julgam que ela deve ser obrigatória têm todo o direito de pressionar por isso, mas é incorreto, como querem alguns grupos e instituições, tratar essa vacina como obrigatória só porque a ANVISA as aceitou como parte da estratégia nacional de combate ao coronavírus – novamente, isso é um desvio tecnocrático.
Diretamente relacionado a isso está a questão da exigência de comprovação de vacinação para acessar determinados espaços da cidade. Essa é uma forma de tornar obrigatória a vacinação, contornando os devidos trâmites da República, afinal, começa-se a restringir mais e mais o acesso à cidade para os cidadãos que exerceram seu direito de escolher não se vacinar. Sobre isso, cabe entendermos bem a relação entre direitos coletivos e individuais para não endossarmos uma visão liberal.
Entendemos que os interesses da maioria devem sim prevalecer sobre os do indivíduo, mas isso deve ser feito formal e deliberadamente, não de forma arbitrária, se não o que teremos é uma ditadura – e no caso concreto em questão, não seria um regime comandado pelo povo trabalhador, mas por um consórcio jurídico-tecnocrático. Ademais, a situação fica ainda mais complicada quando se trata da restrição de acesso não a um bar ou estádio, mas instituições de ensino, nas quais as pessoas têm sua vaga assegurada como direito constitucional. É absurdo querer amparar no vago (mas inquestionavelmente importante) conceito de autonomia universitária (constitucionalmente delimitada como “didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial”) a decisão de impedir estudantes não vacinados de estudarem com seus colegas e servidores de exercerem seu ofício.
Mais absurda que essa é a restrição imposta a crianças não imunizadas, ainda no início do processo de vacinação infantil, de frequentarem as escolas e serem atendidas por políticas tão essenciais quanto as de alimentação. Tal exclusão arrisca até mesmo aumentar a vulnerabilidade das famílias, ao transferir a elas o custo da alimentação das crianças e a responsabilidade pelos seus cuidados durante o dia de trabalho.
Para além das questões jurídicas, temos ainda a questão da pouca eficácia de tal exigência para efetivamente conter a propagação do vírus. Como já citado aqui, a própria ANVISA declarou que a vacina da Pfizer não apresentava comprovação da prevenção da transmissão do vírus – isso em meados de 2021, agora temos a dominância da ômicron que é ainda mais transmissível. Ou seja, tudo que a exigência de vacinação faz é permitir que pessoas vacinadas e infectadas possam entrar tranquilamente nos locais. Muito mais efetivo e democrático seria um complexo de protocolos de distanciamento, higienização periódica, arejamento, testagens e isolamento dos infectados.
O que parece estar por trás dessa onda de adesão ao modelo de exigência do comprovante de vacinação é muitas vezes um sentimento de revanche contra os não vacinados, que implícita e simploriamente são identificados como sendo todos bolsonaristas e negacionistas. Como dito, há interseção entre esses grupos, mas não são idênticos. Mesmo que o fossem, apoiar que o Estado burguês promova a restrição de direitos civis de nossos adversários políticos não é algo interessante de se fazer, pois isso fortalece não a nós, mas ao aparato e à legitimidade de controle social do Estado, abrindo perigosos precedentes.
Por fim, há que se considerar ainda que a defesa do passaporte vacinal é mais um elemento que contribui na dinâmica de polarização social torta que vive o Brasil nos últimos anos. Torta porque se apresenta como uma rinha entre “progressistas” versus “conservadores” e dessa forma não corresponde à polarização social fundamental e inescapável do modo de produção capitalista – há burgueses e proletários dos dois lados dessa polarização aparente. Nesse sentido, notemos para quem está servindo essa polarização atual, se não para Bolsonaro manter mobilizada e coesa a sua base ultra-conservadora. Mais do que para Bolsonaro pessoalmente, essa dinâmica é funcional para a dominação burguesa em nosso país na medida em que fragmenta o tecido social, com elevadas tensões internas que não se identificam com, e divertem da luta de classes, e em particular da dominação imperialista.
A gestão da pandemia no Brasil foi sim desastrosa e fizemos certo em cobrar dos governos federal, estadual e municipais o devido cumprimento das medidas sanitárias de proteção, mas passaporte vacinal pouco tem a ver com isso. O essencial agora é continuar com protocolos que de fato mitiguem a circulação do vírus e acompanhar o que tendencialmente parece ser o fim da pandemia, com a drástica redução da virulência do SARS-CoV-2.
*Henrique Amador Puel Martins é doutorando em matemática na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
*Cauê Baasch de Souza é analista programador da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Notas
[2] https://clinicaltrials.gov/ct2/show/NCT04456595
[3] https://clinicaltrials.gov/ct2/show/NCT04516746; https://clinicaltrials.gov/ct2/show/NCT04368728
[4] https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/resolucao-rdc-n-475-de-10-de-marco-de-2021-307999666
[5] https://consultas.anvisa.gov.br/#/medicamentos/25351023179202157/
[6] https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/34877217/