Por EBERVAL GADELHA FIGUEIREDO JÚNIOR*
O uso do termo “pardo” é historicamente complexo e inconsistente, nem sempre pressupondo miscigenações
Wanderson Chaves, no artigo “A questão parda – uma resposta”, publicado no site A Terra é Redonda, levanta comentários a respeito de meu último artigo, publicado no mesmo site. Tendo lido sua resposta, pela qual sou muito grato enquanto autor e pesquisador iniciante, gostaria de fazer aqui meus próprios apontamentos em face dela.
Ao contrário da ativista e pesquisadora Beatriz Bueno (a qual, admito, eu sequer a conhecia antes de ler a resposta), não tenho interesse em teorizar a parditude mera e estritamente enquanto miscigenação. Conforme já abordei, o uso do termo “pardo” é historicamente complexo e inconsistente, nem sempre pressupondo miscigenações.
Entendo que a liminaridade da parditude, portanto, diz mais respeito a sua dimensão conceitual, epistemológica, do que a qualquer suposta composição genética prontamente identificável. Assim, não tenho quaisquer pretensões de “reintroduzir a miscigenação como tópico da luta antirracista” (de onde, pelo menos que eu saiba, ela nunca saiu) ou “disputar os sentidos da negritude”.
Em se tratando de O povo brasileiro (que, juntamente com a supracitada Beatriz Bueno, me parece ser o verdadeiro alvo da resposta), de fato, considero útil o conceito de “ninguendade” por seu caráter não-essencialista. Ele traz consigo certa vertigem, uma incerteza, que expressa bem o status conceitual instável da parditude (se não fosse esse o caso, afinal, convenhamos que não haveria debate algum). Assemelha-se, nesse sentido, à interessante releitura do conceito de nepantla (palavra de origem náuatle para designar um conceito filosófico mesoamericano que pode ser traduzido, grosso modo, como “liminaridade”) no âmbito dos estudos mexicanos e chicanos.[I]
Reconheço, entretanto, as limitações e vicissitudes da teoria ribeiriana. Seu tratamento do fenômeno da mestiçagem é demasiado romântico, com a famosa menção ao Brasil como “uma nova Roma, lavada em sangue de índio e em sangue de negro”. Como outros autores clássicos da sociologia brasileira, há momentos em que ele parece flertar com a miscigenação como mecanismo socialmente pacificador, o que jamais foi o caso. Mas até mesmo Darcy Ribeiro reconhece o caráter sofrido e conflituoso da etnogênese descrita em seu livro, diante do qual, porém, escolhe assumir uma postura de afirmação nietzscheana que julgo preferível ao etnomasoquismo que concebe o povo brasileiro como fruto vergonhoso de um terrível “pecado original” (um “opróbio moral”, como Wanderson Chaves descreve o modo de alguns enxergarem a miscigenação).
Não compartilho da intenção ribeiriana de contrapor moralmente a mixofilia miscigenacionista brasileira/latino-americana à mixofobia segregacionista anglo-americana (convém frisar, apesar disso, que Darcy Ribeiro não deixa de fazer um exercício crítico e sincero de sopesamento do racismo assimilacionista à brasileira frente ao que ocorre nos Estados Unidos, e não acredita na fantasiosa “democracia racial” freyreana[II]).
Quando falo das diferenças entre Brasil e Estados Unidos, trato-as apenas como o que são: diferenças. Preferências e juízos de valor pessoais não vêm ao caso, mas reconhecer essas diferenças é muito importante não apenas em nome da exatidão, mas também porque o Brasil precisa ser pensado a partir de si mesmo, e os Estados Unidos têm o deselegante hábito de pautar, ativa ou passivamente, debates que não lhes dizem respeito.
O caso brasileiro não é o único, tampouco o pior. Basta olhar para o Japão. Há alguns anos, comentadores ocidentais expressaram certa confusão e frustração quanto à parca influência do movimento Black Lives Matter no país, onde a população negra é estatisticamente inexpressiva e se concentra principalmente em Okinawa, na forma de recrutas afro-americanos nas tantas e tão polêmicas bases militares impostas sobre a pequena ilha após a Segunda Guerra Mundial.[III] No caso japonês, a insensibilidade cultural dos comentaristas é de extremo mau gosto, assumindo claros contornos neoconservadores e até mesmo, ouso dizer, francamente neocoloniais.
Wanderson Chaves chega a citar uma questão bastante pertinente que não foi objeto explícito de abordagem em meu texto original: heteroidentificação e cotas raciais. Nesse âmbito, a natureza da parditude é um debate particularmente delicado e de grandes implicações, e isso ocorre pelas mesmas razões que o apagamento de populações indígenas (des)aculturadas, do qual já tratei. A bem da verdade, políticas afirmativas (bem como algumas outras políticas sociais) precisam ser, quase por definição, aplicadas em caráter excepcional.
Cotas raciais fariam pouco sentido em um país onde a maioria da população seria elegível a elas, assim como demarcações de terras em um país de maioria indígena. Não se trata aqui de uma prescrição, mas de um diagnóstico. É claro que minorias sociais não correspondem necessariamente a minorias numéricas, mas, para os fins do Estado e do Capital, é muito conveniente que correspondam. Mesmo que para isso precisem transformar o pardo em um artefato estatístico confuso, às custas dos direitos de pessoas claramente pertencentes à parcela PPI (Pretos, Pardos e Indígenas) da população, como nos tantos “casos isolados” que vêm ocorrendo em nossas universidades públicas.
Essa dinâmica é ainda mais clara no caso da população deficiente/ neurodivergente. Uma das primeiras mudanças ao PL 2639/2021, que visa instituir a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH), foi suprimir a equiparação do TDAH a uma deficiência para todos os efeitos legais.[IV] Afinal, os diagnósticos de TDAH são muito mais comuns do que os de demais transtornos. Para um sistema que tem como consequências exploração e debilitação em massa, a neurodiversidade precisa ser reconhecida o suficiente para a criação e manutenção de um contingente proletário de reserva, mas não a ponto de ensejar conquistas de direitos e melhorias na qualidade de vida dessas pessoas, pois isso seria custoso.[V] Policiamentos identitários em geral operam segundo essa lógica, colocando em xeque a eficiência de políticas afirmativas e iniciativas de reparação histórica nos limites dos arranjos institucionais contemporâneos.
Por fim, concordo com veemência que, em condições ideais, a mestiçagem deveria tornar-se uma “não-questão”, esvaziada de qualquer conteúdo político-moral, restrita à esfera das escolhas individuais de cada um. Infelizmente, também concordo que não tem sido o caso ao longo da história, e temo que, a rigor, esse seja um objetivo dificílimo de se alcançar, dado que a racialidade é um fenômeno social e coletivo por excelência.
Isso não significa, no entanto, que só nos resta o cinismo e a resignação. Por mais que certas aspirações sejam muito difíceis, por vezes até impossíveis, de serem plenamente alcançadas, ainda são elementos importantes de um horizonte moral e político do qual não podemos abrir mão.
*Eberval Gadelha Figueiredo Jr. é bacharel em Direito pela USP.
Notas
[I] Sobre esses resgates contemporâneos do conceito de nepantla, ver, por exemplo: EUFRACIO, G. (2022). I live in Nepantla; I live in the Borderlands. Texas Education Review, 10(2), 50-65. http://dx.doi.org/10.26153/tsw/41906; DAVALOS, K. M. Spiritual Mestizaje: Religion, Gender, Race and Nation in Contemporary Chicana Narrative., Journal of the American Academy of Religion, 82(3), 99–902. https://doi.org/10.1093/jaarel/lfu044; e KEATING, A. (2006). From Borderlands and New Mestizas to Nepantlas and Nepantleras: Anzaldúan Theories for Social Change. Human Architecture: Journal of the Sociology of Self-Knowledge, 4, 3.
[II] Essa discussão pode ser encontrada em: RIBEIRO, D. O Povo Brasileiro: a formação e o sentido do Brasil, 235-236. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
[III] Sobre os comentários ocidentais, ver, por exemplo: VAN DER LIST, B. Vice News: Why the Black Lives Matter Movement Fell Flat in Japan. 2021. Disponível em: https://www.vice.com/en/article/y3gq3g/why-the-black-lives-matter-movement-fell-flat-in-japan. Quanto à situação de Okinawa, ver, por exemplo: MITCHELL, J. The Intercept: NCIS Case Files Reveal Undisclosed U.S. Military Sex Crimes in Okinawa. 2021. Disponível em: https://theintercept.com/2021/10/03/okinawa-sexual-crimes-us-military/; e JOHNSON, A. Night in the American Village: Women in the Shadow of the US Military Bases in Okinawa. Nova Iorque: The New Press, 2019.
[IV] A exclusão da proposta de igualar o portador de TDAH à pessoa com deficiência para todos os fins legais foi brevemente comentada pelo líder do Bloco Parlamentar da Neurodiversidade na Assembleia Legislativa do Paraná, o deputado Alisson Wandscheer: https://deputadoalisson.com.br/2023/12/07/comissao-de-defesa-dos-direitos-das-pessoas-com-deficiencia-aprova-projeto-de-lei-da-politica-nacional-de-protecao-dos-direitos-da-pessoa-com-tdah/.
[V] Sobre o fenômeno mencionado, inserido no contexto mais amplo de uma “teoria marxista da neurodiversidade” ver: CHAPMAN, R. Empire of Normality: Neurodiversity and Capitalism. Londres: Pluto Press, 2023.
A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA