Sérgio Moro e Flávio Dino

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por LUIS FELIPE MIGUEL*

Entre o futuro ministro do STF e o futuro ex-senador deveria haver um abismo de convicções políticas e princípios morais, que os colocaria em campos opostos e irreconciliáveis

Sérgio Moro e Flávio Dino foram antagonistas na sabatina-pantomima no Senado. Para os blogs petistas, Dino “humilhou” o futuro ex-senador. A direita ensaiou dizer o contrário, mas esfriou logo que apareceram as conversas de celular confirmando que o conje tinha votado a favor da indicação – isto é, tinha virado comunista de novo.

Nos momentos informais, porém, Sérgio Moro e Flávio Dino eram abraços e risos. Totalmente in love.

É estranho ver tanta proximidade entre duas pessoas que encarnariam projetos políticos absolutamente antagônicos – um ministro da Justiça que queria salvar a democracia e um futuro ex-senador que dedica sua vida a destruí-la.

É estranho, mas não é incomum. Em 2017, por exemplo, causou surpresa o beijo que Chico Alencar deu em Aécio Neves ao encontrá-lo no jantar em homenagem a Ricardo Noblat. (O jornalista Ricardo Noblat, que desde a ascensão de Jair Bolsonaro voltou a envergar o figurino de paladino da democracia e hoje é só elogios a Lula, havia sido entusiasta do golpe contra Dilma Rousseff, pedindo até golpe militar caso necessário, e era então notório puxa-saco do usurpador Michel Temer. Chico Alencar era e voltou a ser um combativo deputado do PSOL. Aécio é Aécio.)

Não esqueço, ainda do século passado, da foto em que um José Genoíno com um sorriso enorme e os braços abertos se prepara para cumprimentar ninguém menos do que Jarbas Passarinho, que acabara de ser nomeado ministro do governo Collor. Na época, Genoíno liderava a ala esquerda do PT. Ganhou respeito por Jarbas Passarinho ao durante os trabalhos da Constituinte. Segundo reportagem da época: “Ele é imparcial quando preside, eu disputava com Fiuza e ele soube conduzir muito bem’, diz Genoíno. Os dois só evitam conversar sobre guerrilha do Araguaia, para evitar ‘constrangimentos’”.

Esse tipo de comportamento é um resultado esperado do regime representativo, um dos elementos que faz com que ele funcione como um colchão que amortece os conflitos sociais – para o bem e para o mal. Os políticos devem ser capazes de negociar entre si. Logo, precisam se falar. Mas também precisam ser honestos na relação com seus representados – e manter coerência entre palavras e ações.

É comum pensar que a democracia representativa surgiu como uma meia sola: já que temos territórios e populações grandes demais para uma democracia direta, vamos fazer o povo governar por meio de representantes. Na verdade, como mostraram Ellen Wood, Bernard Manin e outros, a lógica foi a inversa: era preciso ter territórios e populações grandes para afastar o risco da democracia direta.

Mesmo quando provêm das classes populares, o que a dinâmica da concorrência eleitoral torna raro, os eleitos passam a integrar uma elite, diferenciada de sua base. Por mais que divirjam, estão numa condição comum a todos. Competem, mas convivem e tendem a criar laços pessoais, mais ou menos como numa turma de escola. Então chegamos a cenas assim, em que adversários políticos trocam afabilidades.

Como a política não é só razão, também é paixão, é claro que isso interfere na ação dos representantes. Suas divergências ficam parecendo uma farsa. Na verdade, parece que nós, os bobos, brigamos por aqui, enquanto eles se divertem entre eles.

Em suma: se olharmos por um lado, podemos chamar de “civilidade”, algo positivo para a democracia. Se olharmos por outro, vamos chamar de “domesticação do conflito político”, levando à acomodação e à hipocrisia.

O problema é a fronteira entre urbanidade e chamego. Não é de se esperar que líderes políticos troquem socos entre si. Mas um juiz ladrão, um corrupto potencialmente assassino, um entusiasta do AI-5 – não há uma repulsa moral instintiva, que bloquearia essas manifestações de afeto?

E as ofensas que trocam nas redes sociais, as acusações, a indignação tonitruante, tudo isso é teatrinho? Mas é um teatrinho irresponsável, sobretudo numa situação em que vemos seus seguidores, os cidadãos comuns, se agredindo nas ruas e nas casas, por vezes literalmente se matando. Talvez fosse melhor mais comedimento em ambas as dimensões. Menos agressividade verbal para a plateia e menos agarramento nos bastidores.

Eu não sou político. Não tenho as qualidades necessárias para tal. Cumprimento civilizadamente os meus colegas, mas mantenho distância daqueles com quem não sinto mínima afinidade. Já para o político, da forma como a política é feita, a afabilidade fácil e superficial parece ser obrigatória.

Sérgio Moro e Flávio Dino minimizaram a cena como mera civilidade. Sei não. Entre o futuro ministro do STF e o futuro ex-senador deveria haver um abismo de convicções políticas e princípios morais, que os colocaria em campos opostos e irreconciliáveis. Tanto riso, tanta alegria não cabem aí.

*Luis Felipe Miguel é  professor do Instituto de Ciência Política da UnB. Autor, entre outros livros, de Democracia na periferia capitalista: impasses do Brasil (Autêntica).

Publicado originalmente nas redes sociais do autor.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • O triste fim de Silvio Almeidasilvio almeida 08/09/2024 Por DANIEL AFONSO DA SILVA: O ocaso de Silvio Almeida é muito mais grave que parece. Ele ultrapassa em muito os eventuais deslizes deontológicos e morais de Silvio Almeida e se espraia por parcelas inteiras da sociedade brasileira
  • A condenação perpétua de Silvio AlmeidaLUIZ EDUARDO SOARES II 08/09/2024 Por LUIZ EDUARDO SOARES: Em nome do respeito que o ex-ministro merece, em nome do respeito que merecem mulheres vítimas, eu me pergunto se não está na hora de virar a chave da judicialização, da policialização e da penalização
  • As joias da arquitetura brasileirarecaman 07/09/2024 Por LUIZ RECAMÁN: Artigo postado em homenagem ao arquiteto e professor da USP, recém-falecido
  • O caso Silvio Almeida — mais perguntas que respostasme too 10/09/2024 Por LEONARDO SACRAMENTO: Retirar o ministro a menos de 24 horas das denúncias anônimas da Ong Me Too, da forma como foi envolvida em licitação barrada pelo próprio ministro, é o puro suco do racismo
  • Silvio de Almeida e Anielle Francoescada espiral 06/09/2024 Por MICHEL MONTEZUMA: Na política não há dilema, há custo
  • Silvio Almeida — entre o espetáculo e o vividoSilvio Almeida 5 09/09/2024 Por ANTÔNIO DAVID: Elementos para um diagnóstico de época a partir da acusação de assédio sexual contra Silvio Almeida
  • A bofetada do Banco CentralBanco Central prédio sede 10/09/2024 Por JOSÉ RICARDO FIGUEIREDO: O Banco Central pretende aumentar a taxa Selic, alegando expectativas de inflação futura
  • Ken Loach – a trilogia do desamparocultura útero magnético 09/09/2024 Por ERIK CHICONELLI GOMES: O cineasta que conseguiu capturar a essência da classe trabalhadora com autenticidade e compaixão
  • Silvio Almeida: falta explicarproibido estacionar 10/09/2024 Por CARLOS TAUTZ: Silvio Almeida acusou a Mee Too de ter agido para influenciar uma licitação do MDH por ter interesse no resultado do certame
  • A chegada do identitarismo ao Brasilcores vivas 07/09/2024 Por BRUNA FRASCOLLA: Quando a onda identitária varreu o Brasil na década passada, os seus oponentes tinham, por assim dizer, uma massa crítica já formada na década anterior

PESQUISAR

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES