Por GABRIEL BRITO*
A recuperação do estado não poderá ser feita sem projetos de adaptação e mitigação das mudanças climáticas, sob risco de se recomeçar tudo do zero em outro momento futuro
As chuvas que destruíram o Rio Grande do Sul colocaram a pauta do colapso climático de forma definitiva no cotidiano e na consciência dos brasileiros. A recuperação do estado para suas atividades essenciais levará meses e consumirá todas as energias de uma das unidades mais ricas da federação. E nada poderá ser feito sem projetos de adaptação e mitigação das mudanças climáticas, sob risco de se recomeçar tudo do zero em outro momento futuro. Em resumo, nada poderá ser como antes.
Antes de qualquer possibilidade de se inventariar a tragédia que afetou diretamente a vida de pelo menos 10% da população do estado, o governo Lula anuncia um pacote de ajuda federal que já atinge a cifra de R$ 50 bilhões. O montante é estrondoso e certamente se revelará ainda maior quando as águas baixarem.
Entusiasta da ideologia do Estado mínimo, responsável direta por uma agenda insana de flexibilização de leis ambientais que retrocedeu os controles do uso da natureza ao tempo das missões gaúchas, um atônito Eduardo Leite clamou por um Plano Marshall. A referência não é pouca: trata-se do pacote econômico concedido pelos EUA para a reconstrução da Europa Ocidental, que se encontrava em ruínas após a segunda guerra mundial.
O que nunca foi sólido se desmancha no ar
É curioso observar: sua declaração foi imediatamente endossada pelos comentaristas da mídia oligárquica, mas parece ter sido mero ato-reflexo inconsequente. Isso porque estamos falando em grupos de comunicação claramente dispostos a blindar o “último tucano” e livrá-lo de suas inequívocas responsabilidades na tragédia de proporções bíblicas. Nos dias seguintes, mesmo com o pacote de R$ 50 bilhões do governo federal, o termo desapareceu.
Não é à toa. Nada poderá ser igual. Impossível seguir a vida sob os mesmos parâmetros de desenvolvimento econômico que nos conduziram até aqui. Tradução: estamos diante da morte de ideias que precisam escorrer para fora do tecido social junto com as últimas águas que afogam as cidades gaúchas.
Mais que isso, ao ver Lula agir corretamente diante da tragédia, tanto em termos éticos e humanitários como institucionais e administrativos, uma direita repleta de aventureiros e personalidades cretinas, formada por autênticos sabotadores sociais, se vê sem chão. Além das evidentes responsabilidades pessoais de seus líderes nesses últimos anos de ecocídio generalizado Brasil afora, seu programa de acumulação primitiva será pesadamente questionado por uma sociedade que, apesar de todos os limites, sai do transe coletivo da politização mediada por redes sociais.
A realidade sempre se impõe e mentiras bizarras espalhadas em grupos de Telegram não impedirão a próxima onda de calor que arderá o Centro-Oeste – em chamas pelas mãos de um agrobanditismo que queima as leis locais e o Cerrado –, encontrará novas massas de ar frio do sul continental e desabará sobre os habitantes de um Sul que, meses atrás, já experimentara o ensaio geral do fim do mundo.
Outro fator que leva essa extrema direita a exalar sua sociopatia em momentos de solidariedade de massas é a sua organicidade relativamente artificial. O que se chama de bolsonarismo é uma massa digitalmente politizada que se divide num caleidoscópio de ideologias reacionárias, religiosidade precária, individualismos antiestatais policlassistas, paramilitarismo mafioso e militarismo apegado às facilidades dos poderes de Estado. Não há um partido ao qual todos sejam fieis. O ecossistema é tão complexo quanto transitório e parece sensível a uma série de variantes nas relações sociais e econômicas, que afetam uns e outros de formas diferentes. Não há um horizonte histórico que una a todos de forma clara, duradoura e confiável.
A janela da história
Lula está diante de uma formidável oportunidade de liderar uma repactuação social e econômica, com vistas ao desenvolvimento econômico socialmente justo e inclusivo, em bases de respeito pela terra e pela natureza. Isso não só reanimaria uma base política inibida pelo dogmatismo liberal na gestão da economia, simbolizada num Banco Central sequestrado pelos interesses do rentismo parasitário, como poderia elevar sua aprovação aos níveis sonhados por sua equipe de governo. Em um exercício imaginário mais otimista, parece um passaporte para a reeleição, em meio à comoção transformada em espetáculo por uma mídia que, pateticamente, exige a despolitização da tragédia.
Não à toa, uma direita formada por figuras moralmente desprezíveis tenta chamar a atenção com sua suposta benevolência em favor dos gaúchos. Tenta combinar campanhas de doação com fake news que desprestigiem a ação do governo e do próprio Estado. Para além de um egocentrismo tão ilustrativo destes tempos, tenta-se salvar do naufrágio a ideia do Estado supostamente ineficiente e monstruosamente burocrático, cuja perversão e corrupção chegaria a ponto de bloquear caminhões com mantimentos em estradas para verificação de nota fiscal, enquanto as pessoas comuns morreriam desamparadas.
Aqueles que desprezaram políticas sanitárias na pandemia que matou mais de 700 mil brasileiros e se mantiveram fiéis a um presidente que debochou, fez tudo para sabotar qualquer política preventiva e negou a vacina o quanto pode, agora tentam posar de heróis solidários. O truque não tem fôlego e está claro que a força do Estado, com suas instituições e servidores capazes de coordenar dezenas de ações de salvação e reconstrução simultaneamente, aparece de forma incontestável como a única saída viável.
O Plano Marshall do século XXI
Portanto, Eduardo Leite está certo. Precisamos de um Plano Marshall para reconstruir as inúmeras infraestruturas físicas, como estradas, vias públicas, imóveis, escolas, estabelecimentos de saúde; de créditos a empresas cujas atividades estarão fatalmente comprometidas nestes meses de caos e paralisia e à agricultura produtora de alimentos para o mercado interno; subsídios às famílias que perderam tudo.
Sobretudo, o Plano Marshall do século XXI deverá colocar a política ambiental definitivamente na primeira prateleira: normas, leis, regulamentos deverão ser retomados; deve-se investir em replantio e reflorestamento de áreas degradadas pela ganância de um capitalismo agrário cujos privilégios têm de ser questionados; obras de prevenção a enchentes; estruturação de órgãos de fiscalização e manejo ambiental; prestígio a carreiras historicamente precarizadas e esvaziadas na execução de tais tarefas. Tudo isso precisa passar à prioridade.
Grosso modo, a embocadura de nosso modelo econômico e administrativo do Estado terá de ser substituída por uma ideia de bem estar social e prestígio da coisa pública. É urgente impor uma gestão do solo urbano e rural comprovadamente sustentável e socialmente útil, com reformas agrária e urbana de moldes inéditos e não monopolistas; financiar um sistema público de saúde que no plano imediato será novamente pressionado, inclusive por uma epidemia de necessidades em saúde mental; construir um imenso sistema público educacional que forme cidadãos qualificados e capazes de lidar com o mundo que nos aguarda, no lugar dos autômatos reduzidos à capacidade de responder a ordens emanadas da tela de um celular, sob empregos precários no âmbito da circulação de pessoas e mercadorias, horizonte claramente delineado pela criminosa reforma do Ensino Médio ditada por empresários, simbolizada no lobby de um dos grandes vigaristas da nação, o mestre do golpismo financeiro Jorge Paulo Lemann – que precisa ser imediatamente excluído do núcleo do setor elétrico brasileiro, diga-se de passagem.
Finalmente, deveremos passar a um novo estágio da jurisdição ambiental. A nova ecologia deverá elevar a natureza a sujeito de direitos, com reconhecimento de suas necessidades reprodutivas e rigorosa definição das formas de uso de seus bens. Essa experiência ainda é praticamente inédita na humanidade, tendo sido um dos grandes avanços da última Constituição do Equador. As tensões em torno de sua validação numa sociedade ainda pautada pelo capital são fortes também neste país, mas o plebiscito que aprovou a não exploração de petróleo no Parque Nacional Yasuní, em sua Amazônia, é um vislumbre do futuro. Os pactos ambientais até aqui estabelecidos nos fóruns internacionais ainda não deram conta deste ecologismo que não pode mais ser visto como utopia distante.
Exagero, devaneio? Plano Marshall foi a ponte que fez a Europa transitar das ruínas da guerra e da morte para os chamados anos dourados de bem estar social, momento histórico que fez de suas democracias um modelo sonhado pelos povos do mundo inteiro. Aliás, por lá o triunfo neoliberal também põe tudo a perder, como evidencia este impactante texto de Luiz Marques, autor de livro fundamental para os que querem construir este novo mundo.
Dessa forma, parece compreensível que a definição do governador do Rio Grande do Sul tenha sido afogada por uma mídia focada no “presentismo”. Isto é, omite as atitudes recentes de seus protegidos da direita, que barbarizaram na irresponsabilidade ambiental; ignora as necessidades de futuro ao falar genericamente de reconstrução, mas censura os termos desta reconstrução. Para dissimular os motivos reais da tragédia, passa os dias e noites a mostrar pessoas desesperadas, o resgate do cavalo caramelo, o nível da água, a previsão do tempo e anuncia os próximos capítulos da telenovela do colapso climático.
Aqui, não precisamos perder tempo com exercícios mentais de diferenciação das distintas direitas que operam no Brasil pós-2016. Tanto a mais escrachada como a supostamente moderada colocam em marcha o mesmo projeto econômico oligárquico ecocida e genocida. O alinhamento a Paulo Guedes no governode Jair Bolsonaro e a fidelidade ao desonesto Campo Neto e seu falso monetarismo na direção do BC são ilustrativos.
A oportunidade do governo Lula é histórica. A responsabilidade também. Pois não estamos aqui a apresentar um mero programa eleitoral, e sim um programa de sobrevivência da humanidade. Novos eventos climáticos destruidores virão. Maceió afunda nas minas de sal gema da Braskem. Manaus parou em novembro passado, asfixiada por queimadas que geraram uma imensa estiagem na região, por sua vez responsável pela paralisação da indústria e comércio locais, o que isolou a capital do Amazonas. A Amazônia sangra por todo seu território com queimadas, garimpo ilegal e sequelas de megaobras que se revelaram social e economicamente trágicas – algumas delas entusiasticamente defendidas pela esquerda hegemônica. Isso sem falar nas incontáveis tragédias causadas por chuvas em áreas de serra no Brasil ao longo das décadas.
Portanto, não é insano que todos aqueles interessados em construir uma democracia real e sustentável se mobilizem por uma viragem em toda a orientação de governo. Mais que isso, uma reorientação do modo de produção e sociabilidade humanas. Os dogmas do capital e seus poderes incrustados no Estado já não têm nenhuma utilidade pública, social e coletiva. Trarão prejuízos para os quais ninguém está preparado. Porto Alegre não está pronta para ficar 30 dias alagada.
Assim como São Paulo não está preparada para dias sem energia elétrica sob o descalabro cada vez mais escandaloso da Enel privatizada; Santa Catarina e Paraná não poderão perder novas safras nas próximas chuvas; Amazônia e Cerrado não respirarão para sempre com o agronegócio criminoso que domina o país de Brasília e nos governos estaduais.
As abstrações econômicas e suas obsessões por déficits zero, metas fiscais, juros astronômicos para supostamente controlar a inflação e atrair “investidores” que nunca aparecem, controles de câmbios e dívidas públicas já não dizem respeito algum às nossas necessidades. É hora de um novo pacto civilizatório e existencial.
*Gabriel Brito é jornalista, repórter do site Outra Saúde e editor do jornal Correio da Cidadania.
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