Vidas passadas

Imagem: Courtesy of Twenty Years Rights/A24 Films
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por JOSÉ GERALDO COUTO*

O filme de Celine Song é singelo sem ser simplório

Azarão na insana “corrida do Oscar”, o coreano-americano Vidas passadas, da estreante Celine Song, tem o grande mérito de ser singelo sem ser simplório. Sua expressividade está em sua delicadeza, em sua recusa da estridência.

Por um artifício engenhoso de roteiro, a primeira cena semeia a curiosidade e estabelece uma das ideias básicas do filme, a de que sempre se pode inventar histórias alternativas para cada indivíduo ou grupo de indivíduos. No balcão de um bar, de madrugada, três pessoas na faixa dos trinta anos estão sentadas lado a lado: um asiático, uma asiática e um “ocidental”. De uma mesa a certa distância, um casal que não vemos especula sobre quem serão eles e que relações guardam entre si. Formulam diversas hipóteses, quase como se fossem espectadores diante da tela, no início de um filme. Ou seja: como nós.

A mesma cena reaparecerá perto do final, quando então já saberemos quem eram os três personagens e ouviremos o que estavam conversando ali. É como se o filme tivesse desenvolvido uma das hipóteses levantadas. Até chegar de novo a esse ponto, a narrativa terá retrocedido em três etapas: 25 anos antes, 24 anos antes, doze anos antes…

Esboço de romance

Tudo começa em Seul, quando o menino Hae Sung e a menina Na Young são colegas de escola e quase namorados. Mas esse esboço de romance é interrompido quando Na Young emigra com a família para o Canadá e muda seu nome para Nora. Corta para doze anos depois, quando Nora (Greta Lee), aspirante a escritora e dramaturga, participa de uma residência artística perto de Nova York, enquanto do outro lado do mundo Hae Sung (Teo Yoo) cumpre seu serviço militar.

Não convém antecipar as outras etapas dessas vidas paralelas, conectadas a certa altura pela internet e depois por um encontro “presencial”. Basta dizer que se estabelece um jogo delicado em torno dos conceitos de acaso e destino, condensados na expressão coreana “In-yun”, que segundo Nora vem do budismo e significa algo como destino ou providência, reverberando encontros e desencontros de vidas passadas.

Mas o que poderia ter o peso de uma parábola filosófica se dissolve na suavidade e na ironia. Ao conhecer na residência artística um jovem judeu americano, a própria Nora, depois de explicar o “In-yun”, diz que “é uma coisa que os coreanos dizem para seduzir alguém”.

É com essa leveza de espírito que se narra o que é, na essência, uma história de amor não consumado, como tantas outras da literatura e do cinema. Vidas que poderiam ter sido e que não foram.

Consciente dessa tradição, Celine Song joga com signos recorrentes dos filmes de amor, transfigurando-os ocasionalmente pela ironia ou por pequenos deslocamentos. Um exemplo: em seu passeio por Nova York, Nora e Hae Sung chegam a um parque de diversões. Mas em vez da cena-clichê dos enamorados se divertindo na montanha-russa ou comendo algodão doce, eles se sentam diante de um carrossel melancólico e meio deserto e conversam sobre as vezes em que Nora esteve ali com seu marido Arthur (John Magaro). Quando passeiam de barco pelo Hudson, eles passam pela estátua da Liberdade, mas Hae Sung comenta: “Ela está de costas para nós”.

Contraste cultural

Há sempre um balanço entre o real e sua ficção. Na cama com Nora, Arthur (que também é escritor) imagina o que estão vivendo como uma narrativa literária, em que ele faz o papel do marido inoportuno no caminho dos amantes. A ironia é amarga, mas não perde a leveza e o humor.

O tema do contraste cultural Coreia-EUA não é secundário. Está no cerne no drama. A certa altura Nora funciona como uma intérprete entre Arthur e Hae Sung. Sobre este último ela diz ao marido: “Ele é muito coreano. Sinto-me tão não-coreana quando estou com ele. Mas também, de algum modo, mais coreana”.

A progressão narrativa se dá num equilíbrio entre a decupagem clássica “ocidental” e momentos de contemplação e silêncio característicos de certo cinema asiático, em que os “tempos mortos” ganham vida e significado.

Mas cinema é antes de tudo imagem, e em Vidas passadas há uma que sintetiza todo o drama narrado: é a bifurcação, num bairro periférico de Seul, em que os dois amigos se separam, o pequeno Hae Sung subindo a ladeira à esquerda e a pequena Na Young galgando a escadaria à direita.

Esse plano retorna num flash durante uma conversa entre os dois, um quarto de século depois. Imagem-tempo (para usar sem rigor a expressão de Gilles Deleuze), verso visual, erupção do inconsciente. Cinema de poesia brotando no meio da prosa.

*José Geraldo Couto é crítico de cinema. Autor, entre outros livros, de André Breton (Brasiliense).

Publicado originalmente no Blog de Cinema do Instituto Moreira Salles.

Referência


Vidas passadas (Past Lives)
EUA, 2023, 106 minutos.
Direção e Roteiro: Celine Song
Elenco: Greta Lee, Teo Yoo, John Magaro, Federico Rodriguez


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Rafael R. Ioris Juarez Guimarães Renato Dagnino Afrânio Catani Luiz Bernardo Pericás Ladislau Dowbor Marjorie C. Marona Érico Andrade Matheus Silveira de Souza Fernão Pessoa Ramos Ricardo Abramovay Dênis de Moraes Benicio Viero Schmidt Andrés del Río Michael Roberts Kátia Gerab Baggio Igor Felippe Santos Jean Marc Von Der Weid Luiz Renato Martins Paulo Capel Narvai João Lanari Bo Thomas Piketty Jorge Luiz Souto Maior Rubens Pinto Lyra Osvaldo Coggiola Fábio Konder Comparato Francisco de Oliveira Barros Júnior Tarso Genro Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Luiz Carlos Bresser-Pereira Alysson Leandro Mascaro Ronald León Núñez Eliziário Andrade Mariarosaria Fabris Milton Pinheiro Caio Bugiato João Feres Júnior Leonardo Avritzer Plínio de Arruda Sampaio Jr. Tadeu Valadares Vinício Carrilho Martinez Gilberto Maringoni Marcos Aurélio da Silva Valerio Arcary Airton Paschoa Mário Maestri Luiz Marques Paulo Fernandes Silveira Ari Marcelo Solon Denilson Cordeiro André Márcio Neves Soares Lincoln Secco Luiz Eduardo Soares Leonardo Boff André Singer Atilio A. Boron Annateresa Fabris Daniel Afonso da Silva Carlos Tautz Fernando Nogueira da Costa Remy José Fontana Antonio Martins Rodrigo de Faria Sandra Bitencourt João Paulo Ayub Fonseca Marcelo Módolo Ricardo Fabbrini Luiz Roberto Alves Ronaldo Tadeu de Souza Chico Alencar Chico Whitaker Valerio Arcary Manuel Domingos Neto Salem Nasser Francisco Pereira de Farias José Geraldo Couto Celso Favaretto Gerson Almeida Marilena Chauí Henri Acselrad Tales Ab'Sáber Dennis Oliveira Leonardo Sacramento Daniel Costa Jean Pierre Chauvin Francisco Fernandes Ladeira Paulo Nogueira Batista Jr Ricardo Musse José Micaelson Lacerda Morais Luis Felipe Miguel Bento Prado Jr. Claudio Katz Anselm Jappe Marcelo Guimarães Lima Slavoj Žižek Leda Maria Paulani Alexandre Aragão de Albuquerque Carla Teixeira Lucas Fiaschetti Estevez Eleonora Albano Andrew Korybko José Raimundo Trindade Manchetômetro Julian Rodrigues Antônio Sales Rios Neto Flávio Aguiar Henry Burnett Marcos Silva Paulo Sérgio Pinheiro Marcus Ianoni Luciano Nascimento Gabriel Cohn Flávio R. Kothe Luiz Werneck Vianna Ricardo Antunes Antonino Infranca Eduardo Borges Liszt Vieira Bruno Machado Marilia Pacheco Fiorillo José Luís Fiori Michael Löwy José Machado Moita Neto Alexandre de Freitas Barbosa Otaviano Helene Eugênio Bucci Alexandre de Lima Castro Tranjan Jorge Branco Lorenzo Vitral João Adolfo Hansen Celso Frederico José Costa Júnior Eleutério F. S. Prado Vladimir Safatle Boaventura de Sousa Santos Everaldo de Oliveira Andrade Luís Fernando Vitagliano Berenice Bento Daniel Brazil Sergio Amadeu da Silveira Gilberto Lopes Paulo Martins Maria Rita Kehl Eugênio Trivinho Priscila Figueiredo Vanderlei Tenório Michel Goulart da Silva Heraldo Campos Ronald Rocha Samuel Kilsztajn Elias Jabbour Walnice Nogueira Galvão Armando Boito Yuri Martins-Fontes Bruno Fabricio Alcebino da Silva José Dirceu João Sette Whitaker Ferreira Bernardo Ricupero João Carlos Salles João Carlos Loebens

NOVAS PUBLICAÇÕES