A reformulação das Forças Armadas

Imagem: Victor Moragriega
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Por RENATO DAGNINO*

Quais seriam e que importância possuem no seio da corporação os militares dispostos a se engajar nos projetos de P&D

O momento que vive nossa sociedade é marcado pelo impacto dos testemunhos sobre as tentativas de golpe de Estado dos militares, de assassinato de agentes públicos etc. dados a conhecer a partir do final de novembro de 2024.

E, também, por algo que, como estudioso das atividades de Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) e produção militar, me preocupa. A ideia de que a reprodução desses eventos pode ser evitada mediante a atribuição dessas atividades aos militares.

Declarações nesse sentido, de personalidades da esquerda, e de jornalistas de grande influência, têm ocupado espaço crescente espaço midiático. É de Luís Nassif este parágrafo publicado em 22 de novembro de 2024: “A reformulação das Forças Armadas deve se dar a partir da… necessidade premente de se fortalecer os setores tecnológicos, especialmente do Exército… [ela] passa pela busca da autonomia tecnológica, … para focar no objetivo maior de aparelhamento tecnológico … [dado que ] o que as três forças têm de melhor são seus engenheiros, seus institutos de tecnologia, a possibilidade de acordos tecnológicos com a universidade e institutos de pesquisa civis…”.

Sua referência imediata é trabalho de Manuel Domingos Neto, um dos mais importantes especialistas brasileiros em estudos de defesa que tem feito ressurgir a ideia de que orientar a atenção dos militares (dotados de cultura profundamente antidemocrática e prática organizacional sabidamente inadequada) para as atividades de Pesquisa e Desenvolvimento e produção militar levaria a que diminuíssem sua propensão intervencionista.

Início destacando que a capacidade dessa ideia, assumir o caráter de uma policy advocacy e influenciar significativamente a política pública, se beneficia das narrativas divulgadas pelo complexo militar-industrial-acadêmico e da literatura mainstream dos países centrais. Seu propósito de mostrar que a carga orçamentária militar advinda dos seus objetivos geopolíticos pode ser compensada pelos desdobramentos econômicos e tecnocientíficos (spin-offs) das atividades de Pesquisa e Desenvolvimento e produção militar para o mundo civil se mantém inalterado há muitas décadas.

Essas narrativas, embora sistematicamente questionadas por estudos fundamentados em sólidos marcos analítico-conceituais e em evidência empírica cuidadosamente analisada por estudiosos de Economia da Defesa dos países centrais desde os anos de 1970, parecem ter sido aqui sistematicamente ignoradas.

Um dos argumentos daquela policy advocacy alegado para justificar, a proposta da rede de revitalização da Indústria de Defesa Brasileira (IDB) que ensejou a Estratégia Nacional de Defesa (END) de 2008 foi a possibilidade de reproduzir o êxito que ela teria alcançado. Esse argumento, que ainda anima quem defende aquela ideia, desconsidera os inúmeros trabalhos baseados nessa literatura crítica mostrando que, mesmo nos seus anos dourados, entre os anos de 1982 e 1988, quando o término da Guerra Irã-Iraque fez com que a Indústria de Defesa Brasileira praticamente deixasse de existir, desdobramentos daquela natureza nunca ocorreram.

Entre as evidências nunca questionadas, convém citar que (i) embora sendo uma espécie de enclave exportador, sua exportação nunca foi mais do que 0,5% do total; (ii) a exportação propalada pela elite cívico-militar da ditadura, que chegou divulgá-la como sendo de 5 bilhões de dólares anuais alcançou um valor de pico, em 1987, de 570 milhões de dólares, sendo sua média anual no período 1975-1988 em que ela efetivamente existiu de 186 milhões de dólares; (iii) seu tamanho econômico era também muito menor do que o divulgado: sua participação na produção industrial nunca ultrapassou 0,9%; e sua participação no PIB nunca alcançou 0,15%.

Tampouco foi questionado o argumento acerca da possibilidade de que os improváveis êxitos tecnocientíficos da Indústria de Defesa Brasileira pudessem vir a impactar positivamente nossa empresa periférica já consideravelmente transnacionalizada, e desde sempre importadora de tecnologia. Argumento cuja pertinência se intensificou em função do encolhimento e diminuição da intensidade tecnológica de nossa indústria manufatureira que se seguiu. Ao se enfraquecer, a montante, sua competência para absorver eventuais desdobramentos tecnocientíficos da Indústria de Defesa Brasileira e, a jusante, sua capacidade de fornecer insumos materiais e humanos para sua consolidação, foi ficando ainda mais patente a falácia daquelas narrativas.

Num artigo publicado no site A Terra é Redonda, onde denuncia a “jornada macabra” com uma maestria que, como cidadão eu elogio e agradeço, Manuel Domingos Neto registra em tom normativo (e cito sem pretender descontextualizar) que: “para recompor sua imagem, o quartel terá que responsabilizar os que, por décadas, açularam as entranhas do ultraconservadorismo e exaltaram a ditadura” e que “cabe debater a construção da legitimidade do quartel porque, sem instrumento de força respeitado, o Estado soberano e democrático é uma quimera”.

E, retomando o que vem defendendo, escreve num registro propositivo e aludindo ao assunto aqui tratado, que: “precisamos de mísseis hipersônicos, aeronaves, barcos, drones e satélites inteiramente fabricados aqui, com o saber brasileiro. A dependência externa em armas e equipamentos atesta o fracasso da Defesa Nacional”.

Reiterando sua importância, exatamente a mesma frase aparece num artigo publicado com o mesmo teor em 9/12/2024.

E é aqui que, como estudioso das atividades de P&D e produção militar, me sinto na obrigação de criticar a ideia de que para evitar “jornadas macabras” devemos mais uma vez tentar atribuir essas atividades aos militares.

Analistas entre os quais me incluo são de opinião de que depois do projeto de revitalização da Indústria de Defesa Brasileira, ratificado pela Estratégia Nacional de Defesa e que sintomaticamente não chegou a ser implementado, alterou-se significativamente a septuagenária relação de forças entre os que ”açularam as entranhas do ultraconservadorismo e exaltaram a ditadura” e os que, ainda antes dela, buscaram “a construção da legitimidade do quartel” pela via defendida pela ideia que aqui critico.

Os primeiros, levaram a cabo a conhecida estratégia que hoje se desnuda e que me abstenho de comentar. Os outros, trocaram a proposta nacional-desenvolvimentista por um comportamento supostamente utilitarista, de adquirir equipamentos estrangeiros sem levar muito a sério o que estão comprando.

Apenas para ficar numa das forças, cito o caso da FAB, a força na qual partidários daquela proposta tida como virtuosa foram capazes de, convivendo e negociando com os primeiros, diferenciar-se da em geral malsucedida trajetória nacional de ligar a pesquisa e produção.

Ao fazê-lo registro, entre outros eventos, que a FAB abandonou o desenvolvimento de um VANT nacional, em prol da aquisição dos de Israel mediante uma associação com uma empresa que, como levantado pelo Ministério Público é dirigida por familiares de primeiro grau dos seus comandantes. Abandonando o ancestral projeto do satélite nacional do INPE, comprou um satélite estrangeiro.

Em função de sempre alegadas restrições de orçamento (talvez oriundas dos gastos com pessoal das Forças Armadas dele consumir quase 80%, enquanto nos EUA ele é de 22%), outros projetos de relativamente alta intensidade tecnocientífica foram engavetados. As mesmas restrições cercaram a compra dos Gripens, cujo pacote de transferência de tecnologia foi totalmente desconfigurado. A tentativa de venda da Embraer que só não ocorreu por que a Boeing desistiu, é mais um exemplo desse comportamento supostamente utilitarista, mas que é notório nos países centrais onde os militares são censurados por gostarem de brinquedos cada vez mais caros.

Se fôssemos procurar nas outras duas forças, que bem menos do que a FAB se engajaram em atividades que poderiam justificar a ideia que aqui se questiona, talvez eventos ainda mais deletérios apareceriam. O que levaria a duvidar da existência de um setor das Forças Armadas interessado em atender ao chamamento que, com a melhor das boas intenções, fazem alguns estudiosos do campo, e as personalidades da esquerda e jornalistas que citei no início.

A título de conclusão, mas para explicitar uma possível controvérsia e iniciar um debate público, chamo a atenção para o que parecem pensar sobre o assunto formuladores da Nova Indústria Brasil (NIB) destinada a orientar as ações do governo federal nos próximos dez anos.

Sua 6ª missão, a “missão da defesa”, ao contrário do que ocorre no mundo inteiro quando dela se trata não destaca as necessidades de equipamentos das FAs derivadas dos cenários de conflito ou das oportunidades do mercado externo etc.

Embora se enfatize a expressão tecnologias críticas para a defesa, os formuladores da Nova Indústria Brasil não parecem propensos a promover atividades relacionadas a “mísseis hipersônicos, aeronaves, barcos, drones e satélites inteiramente fabricados aqui, com o saber brasileiro” de modo a diminuir “a dependência externa em armas e equipamentos [que] atestam o fracasso da Defesa Nacional”.

O elemento aparentemente mais importante da 6ª missão são dois vultosos programas que pouca relação possui com a P&D e produção militar. Entendidos como Instrumentos Específicos para o Alcance da Missão, eles são o Laboratório de Contenção Biológica, orientado à área da saúde, que levará à construção do Laboratório NB4 de Máxima Contenção Biológica, hospedado no Centro Nacional de Pesquisa em Energia, e Materiais e o Reator Nuclear Multipropósito, que é associado à expressão Projeto Modelo da Tecnologia Nuclear a Serviço da Vida, orientado áreas de saúde, indústria, agricultura, meio ambiente e energia.

A observação do ambiente mundial e sua comparação com o que ocorre em nosso país parece ter levado aqueles formuladores a perceber o quão irrealista e custoso seria seguir insistindo, com a expectativa de benefícios socioeconômicos oriundos de transbordamentos econômicos e tecnocientíficos do setor militar para o civil prometidos por propostas como as da rede de revitalização e da Estratégia Nacional de Defesa.

Uma outra concepção de defesa parece estar levando-os a acreditar que a materialização dessa expectativa de benefícios socioeconômicos deve ser alcançada mediante medidas de política visando à realização de atividades como aquelas que sugerem.

Parece também que vem aumentando o convencimento da tecnocracia civil (que abrange esses formuladores), oriundo de uma leitura que mescla juízos políticos e morais acerca do comportamento dos militares, da ideia que aqui se critica. Assim, orientar a política de defesa do País para objetivos civis e colocar num plano bastante secundário propostas que visam à orientação dos militares para a P&D e produção militar, seria uma forma mais republicana de implementação daquela ideia.

A questão que fica é semelhante àquela anterior. Quais seriam e que importância possuem no seio da corporação os militares dispostos a se engajar nos projetos do Laboratório de Contenção Biológica e do Reator Nuclear Multipropósito, atividades tão distantes daquelas que, como mostra o que está vindo à tona, tanto os beneficiam?

Para finalizar convido quem me leu até aqui para prosseguir com esta indagação sobre a melhor forma como nós, cidadãos interessados em construir um outro futuro, devemos participar neste debate.

*Renato Dagnino é professor titular no Departamento de Política Científica e Tecnológica da Unicamp. Autor, entre outros livros, de A indústria de defesa no governo Lula (Expressão Popular). [https://amzn.to/4gmxKTr]


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