Por WAGNER PIRES*
As universidades seguiram e se tornaram mais relevantes, e só não fizeram mais porque estão atadas às estruturas carcomidas erigidas pela elite brasileira
“Oh senhor cidadão, \ Eu quero saber, eu quero saber \ Com quantos quilos de medo, \ Com quantos quilos de medo \ Se faz uma tradição?”
(Tom Zé).
Essa pergunta feita na canção Senhor cidadão vem muito a propósito quando falamos da Universidade no Brasil. No começo de julho foi encerrada uma das maiores greves da Educação federal em décadas. Docentes, técnicas e técnicos, bem como estudantes das universidades e institutos federais enfrentaram um governo que, tendo sido eleito para fazer com que a investida neoliberal sobre os direitos parasse, acabou, uma vez no poder, aplicando a mesma lógica com um verniz social.
No entanto, neoliberalismo e melhoria das condições de vida da classe trabalhadora e a garantia de direitos aos mais pobres são incompatíveis. O próprio PT reconhece isso e são muitas as vozes dissonantes, mas a cúpula do governo tem ouvidos mais apurados para a grita do mercado do que para o lamento dos trabalhadores. O arcabouço fiscal, elevado a dogma, corrói os construtos sociais que se tentou estruturar e o desencanto começa a se ampliar entre as bases.
Isso tem acontecido nas universidades, onde o enfrentamento duro dado pelo governo a comunidade universitária, uma das principais bases eleitorais de Lula e que se empenhou em sua eleição, na busca de, derrotada a extrema direita, voltar a uma situação próxima à normalidade. No entanto, vemos um desencanto. A greve foi vitoriosa, apesar dos esforços do governo de silenciar as trabalhadoras e trabalhadores e o movimento estudantil.
No entanto, ficou um gosto amargo na garganta de muitas lutadoras e lutadores. Ainda é preciso avançar. Revolucionar as estruturas do modelo de universidade brasileiro para que este possa avançar. O governo recompôs orçamentos, anunciou investimentos na expansão e estruturação, no chamado PAC das universidades, prepara o projeto de Lei que reformula a carreira Técnica Administrativa em Educação e afirma manter os canais de diálogo com as categorias em aberto.
Mas ainda falta mexer nas estruturas da universidade. Retirar-lhe o ranço e as estruturas carcomidas erigidas nos pouco mais de duzentos anos de Educação Superior brasileira, pela elite brasileira, que sempre se posicionou contra o avanço da Educação Superior e da Ciência.
Durante séculos, a elite se conformou em pendurar nas paredes um diploma de bacharel que lhe permitisse encobrir sua barbárie com um certo refinamento acadêmico. Eram bacharéis que pouco ou nada faziam pelo país a não ser viver de rendas, auferidas pelos escravizados e depois pela brutal exploração de trabalhadoras e trabalhadores assalariados. Tomemos Brás Cubas, personagem de Machado de Assis, como exemplo de como a maio parte da elite tratava a universidade: “A Universidade esperava-me com as suas matérias árduas; estudei-as muito mediocremente, e nem por isso perdi o grau de bacharel; deram-mo com a solenidade do estilo, após os anos da lei; […] era um acadêmico estroina, superficial, tumultuário e petulante, dado às aventuras, fazendo romantismo prático e liberalismo teórico, vivendo na pura fé dos olhos pretos e das constituições escritas. No dia em que a Universidade me atestou, em pergaminho, uma ciência que eu estava longe de trazer arraigada no cérebro, confesso que me achei de algum modo logrado, ainda que orgulhoso”.
Ainda não haviam universidades no Brasil, quando Machado de Assis escrevia. Tínhamos Faculdades isoladas, na verdade escolas profissionais que formavam em sua maior parte médicos, advogados e engenheiros. Apesar de voltadas à formação profissional, em algumas dessas faculdades ainda se fazia alguma ciência, mais por conta da atuação de alguns docentes, do que por orientação nesse sentido. E para a elite, estas eram mais que suficientes.
Em fins do século XIX, a campanha contra a criação das universidades chega aos jornais, com intelectuais escrevendo diatribes contra a universidade, a ponto de exclamar que o Brasil não precisa delas, sendo mais do que suficiente a estrutura já existente, baseada nas escolas superiores e faculdades isoladas.
Apesar das oposições, as universidades começam a surgir na década de 1920. Em projetos elitistas, voltados para interesses das classes dominantes, que combatiam ferrenhamente qualquer tentativa de se ter uma universidade mais livre, mais aberta e democrática. Assim, a Universidade do Distrito Federal, no Rio de janeiro, solapada pela ditadura do Estado Novo e a Universidade de Brasília, descaracterizada pela Ditadura Militar. Atrelada pelos militares aos modelos pensados no EUA, a universidade brasileira, se engaja na luta pelo fim da ditadura e neste momento se constroem os sindicatos de docentes e de técnicos, escrevendo um novo capítulo da história dessas universidades.
Um capítulo marcado por lutas em defesa da educação, porque, uma vez livre dos coturnos militares, a Universidade se vê sob o ataque neoliberal, que a deixa à mingua nas primeiras décadas de governos democráticos.
Quando no princípio do século XXI, surge a política de expansão, acompanhada da política de cotas, a Universidade brasileira passa por uma transformação que desagrada a muitos, dentro e fora delas. Fala-se na perca da qualidade, com a chegada dos cotistas, com a ampliação para localidades afastadas dos grandes centros. Muitos decretavam o fim das universidades.
No entanto, as universidades seguiram. E se tornaram ainda mais relevantes. E só não fizeram ainda mais, porque atadas às camisas de forças que lhe foram sendo colocadas através dos anos. Ainda assim incomodam.
Os conservadores a odeiam. Acusam-na de perverter a juventude e destruir os bons costumes. Os liberais gritam incessantemente contra o seu financiamento pelo fundo público, uma vez que este deve ser direcionado apenas para a especulação financeira, deixado a Universidade a ingrata tarefa de se colocar à venda pelos trocados que o mercado se dispuser a lhe ofertar. A extrema direita, em seu esforço de falsificar a história, colocar a tecnologia a seu serviço e ludibriar a própria ciência, reforça o ataque à universidade. E muitos outros fazem coro a esses.
E o que a universidade tem para se contrapor a todos esses ataques? Enfrentar a tantos inimigos? Uma comunidade acadêmica combativa e atuante, que a despeito das dificuldades segue fazendo ciência e tecnologia das mais relevantes no mundo. E que precisa se livrar do peso morto que algumas normativas antigas lhe impõem.
São tralhas e velharias antiquadas que se mantém de pé sobre a desculpa da tradição. Neste momento, precisamos avançar, defendo o que realmente é tradição universitária e o que é uma imposição anacrônica e que só impede que novas práticas e novos atores possam tomar as universidades em suas mãos. Porque a tradição, a verdadeira, não impede que a universidade alce voos mais altos.
Esses voos mais altos dizem respeito a democratização da universidade, trazendo a paridade para o dia a dia das instituições, colocando em igualdade, dentro dos conselhos e nas eleições a igualdade de docentes técnicos e estudantes. Manter, nos tempos atuais, os docentes como detentores do poder dentro da Universidade é contraproducente. Porque neste momento, entendemos que estudantes são sujeitos que constroem o conhecimento junto com docentes e técnicos. Estes compõem um corpo qualificado e com os mais diversos saberes e que atua em toda a universidade, com expertises que resultam em maior envolvimento com o ensino, a pesquisa e a extensão.
Saberes e fazeres de toda a comunidade acadêmica devem ser revistos, repensados, retirando e lançando fora os entraves à democracia, que são entraves ao fazer universitário. Uma tarefa que exige que a Universidade olhe para si mesma e efetue, por si, por sua comunidade acadêmica, a sua renovação. Para que ela abandone de vez a universidade voltada para as elites e, no dizer de Che Guevara, se pinte de povo.
Realizar isso é fazer uma grande revolução na Universidade. Reafirmando sua laicidade e seu caráter de Instituição Pública, Gratuita e de Qualidade, socialmente referenciada. Uma Universidade a serviço da população brasileira e das demandas das classes trabalhadoras.
Daí a necessidade de cobrar do governo que a prioridade à educação saia do papel e que não se toque nas universidades. O ajuste neoliberal não pode ser feito às custas do futuro da nação. Derrotamos o Teto de Gastos. Uma medida irracional e que trouxe males imensos para as universidades e a população mais pobre. Nos levantaremos também contra o Arcabouço Fiscal, a medida sofisticada que, no entanto, é incompatível com a garantia de direitos e com a necessária inclusão social que o Brasil precisa.
*Wagner Pires é doutorando em educação na Universidade Federal de Pelotas (UFPel).
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