A retórica da intransigência

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Por CARLOS VAINER*

A escala 6×1 desnuda o estado democrático de direita (ou deveríamos dizer da direita?), tolerante com as ilegalidades contra o trabalhador, intolerante frente a qualquer tentativa de submeter os capitalistas a regras e normas

“a competição dos trabalhadores entre si é o pior lado do atual estado de coisas em seu efeito sobre o trabalhador, a arma mais afiada contra o proletariado nas mãos da burguesia. Daí o esforço dos trabalhadores para anular essa competição por associações, daí o ódio da burguesia em relação a essas associações, e seu triunfo em cada derrota que lhes sobrevém.” (Friedrich Engels)

“O Movimento Sindical, em nome dos trabalhadores brasileiros, propõe à Assembleia Nacional Constituinte a seguinte emenda à Constituição: Artigo 1º — Fica estabelecido que a jornada de trabalho no Brasil será de 40 (quarenta) horas semanais, independentemente da categoria profissional ou do setor de atividade” (Emenda Popular Nº 3 ao Projeto de Constituição da República Federativa do Brasil)

“Turnos de três horas ou uma semana de quinze horas podem resolver o problema por um longo tempo. Pois três horas por dia é tempo suficiente para satisfazer o velho Adão dentro da maioria de nós!”. (John Maynard Keynes)

O debate público provocado pela proposta de emenda constitucional da deputada Erika Hilton (PSOL) para acabar com a escala de trabalho 6×1, na esteira do movimento VAT (Vida Além do Trabalho) liderado pelo recém-eleito vereador carioca Rick Azevedo (PSOL), tem levado a grande mídia corporativa, impressa ou televisada, a oferecer um iluminado palco para que jornalistas, economistas e especialistas de todo tipo ofereçam o espetáculo de seu consenso: não vai dar certo, não funcionará, é inaceitável, é inviável.

Muita gente já chamou a atenção para o fato de que essa encenação não é nova e que os conservadores, os porta-vozes do patronato, desde sempre, cultivam o hábito de advertir a sociedade e os próprios trabalhadores dos riscos de mudanças que pretendam promover, de alguma maneira, melhorias em suas condições de trabalho e de vida.

A justiça exige que consideremos como patrono dessa forma de manifestação do pensamento reacionário Nassau Senior (1790-1864), renomado professor de Economia Política da Universidade de Oxford. Entre suas mais celebradas “contribuições” às ciências econômicas encontra-se a “teoria da abstinência”, segundo a qual a riqueza teria sua origem na privação de consumo: os ricos deteriam riqueza porque haviam virtuosamente aceito abdicar de consumir para acumular, enquanto os pobres viveriam na carência porque, em virtude de uma incontrolável e imoral volúpia consumista, despendiam toda sua renda no consumo.

O professor de Oxford, convicto malthusiano, também se destacou na defesa da chamada “lei de ferro dos salários”, segundo a qual existiria um fundo fixo para pagamento de salários e os trabalhadores receberiam como remuneração o valor resultante da divisão do montante deste fundo pelo total da população. Assim, se a população aumentasse, como de fato aumentava, uma lei natural imporia inexoravelmente a redução progressiva dos salários, sendo inúteis e inviáveis quaisquer pretensões de melhoria salarial.

Sua dedicação aos interesses patronais não foi suficiente para que seu nome viesse a frequentar a história do pensamento econômico, não tivesse sido imortalizado justamente por seu mais cáustico e famoso crítico. Assim, embora sem citá-lo explicitamente, no capítulo “A Assim Chamada Acumulação Primitiva” (O capital, Livro I, capítulo XXIV), em que discute como foram criadas as condições da acumulação previamente à implantação das relações sociais capitalistas, Marx escreve: “Essa acumulação primitiva desempenha na Economia Política um papel análogo ao pecado original na Teologia. Adão mordeu a maçã e, com isso, o pecado sobreveio à humanidade. Explica-se sua [do capital] origem contando-a como anedota ocorrida no passado. Em tempos muito remotos, havia, por um lado, uma elite laboriosa, inteligente e sobretudo parcimoniosa, e, por outro, vagabundos dissipando tudo o que tinham e mais ainda. A legenda do pecado original teológico conta-nos, contudo, como o homem foi condenado a comer seu pão com o suor de seu rosto; a história do pecado original econômico, no entanto, nos revela por que há gente que não tem necessidade disso. Tanto faz. Assim se explica que os primeiros acumularam riquezas e os últimos, finalmente, nada tinham para vender senão sua própria pele. E desse pecado original data a pobreza da grande massa que até agora, apesar de todo seu trabalho, nada possui para vender senão a si mesma, e a riqueza dos poucos, que cresce continuamente, embora há muito tenham parado de trabalhar”.

E Marx, ao longo do capítulo, com rica documentação histórica, mostra como, ao invés de resultar de idílico e virtuoso exercício de abstinência, a riqueza foi acumulada nas mãos de poucos graças à expropriação dos camponeses, à legislação sanguinária que obrigou os expropriados a submeterem-se ao trabalho para um patrão, à captura e tráfico de escravizados.[i]

Marx e a “última hora de Senior”

A menção direta e explícita de Marx a Nassau Senior, porém, aparece na 3a Seção – “A Produção da mais-valia absoluta”, no capítulo sobre A Taxa de mais-valia, em sub-capítulo intitulado “A Última Hora de Nassau Senior”. Antes de expor a tese de Nassau Senior, Marx faz uma rápida apresentação da personagem:

Numa bela manhã do ano de 1836, Nassau W. Senior, afamado pela sua ciência econômica e belo estilo (…), foi chamado de Oxford para Manchester[ii] para aí aprender economia política em vez de a ensinar em Oxford. Os fabricantes elegeram-no como esgrimista de serviço contra o Factory Act [Lei Fabril, de 1933], recentemente publicada, e a ainda mais ousada agitação em torno das dez horas. (…) O professor, por sua vez, estilizou a lição recebida dos fabricantes em Manchester no panfleto Letters on the Factory Act, as it Affects the Cotton Manufacture [Cartas sobre a Lei Fabril e como ela afeta a Manufatura do Algodão], Londres, 1837. Nele pode-se ler, entre outras, a seguinte passagem edificante”

E Marx prossegue com uma citação de Nassau Senior: “De acordo com a lei atual, nenhuma fábrica que emprega pessoas com menos de 18 anos pode trabalhar mais de 11 1/2 horas por dia, isto é, 12 horas durante os primeiros 5 dias e 9 horas aos sábados. A seguinte análise (!) mostra que em tal fábrica todo o lucro líquido deriva da última hora.” (Marx, 1996, t. 2, p. 339).

Nassau Senior expõe um exemplo com o qual pretendeu demonstrar que, numa jornada de 11 horas e meia, o valor produzido pelo trabalhador nas primeiras 10 horas apenas reporia o valor do capital aplicado (máquinas, matérias primas, salários, etc); a meia hora seguinte supriria a deterioração (amortização) da fábrica e das máquinas. Donde, prova-se o que se queria provar: “se as horas de trabalho fossem reduzidas uma hora por dia […] o lucro líquido seria destruído”. E as consequências seriam trágicas: o desaparecimento do lucro interromperia a acumulação capitalista, esta interrupção impediria a continuidade do investimento do capital na produção, as fábricas fechariam, os trabalhadores seriam lançados ao desemprego e à miséria.

Marx em poucas linhas desmonta a “demonstração” de Nassau Senior, mostrando que se a jornada fosse reduzida, o capitalista dispenderia menos em matérias primas, instrumentos de trabalho, amortizações, etc. A consequência da redução de uma hora na jornada de trabalho seria uma pequena redução do “lucro” (mais-valia) e não seu desaparecimento.

A história do capitalismo deu razão a Marx e enterrou as teses de Nassau Senior… mas a lógica que presidia à argumentação deste último parece permanecer mais viva que nunca.

Os epígonos de Nassau Senior

Apresentado como sociólogo especialista em relações de trabalho, professor da Faculdade de Economia da Universidade de São Paulo e doutor Honoris Causa da University of Wisconsin (EUA), José Pastore é peremptório: “a redução da jornada de trabalho como está no projeto em debate no Congresso Nacional não é viável”. Após estimar que esta redução provocaria um aumento de 18% nos “custos do trabalho”, explica que isso “faria com que as empresas tenham pela frente um enorme desafio. Algumas tentariam passar isso para o preço, mas nem todas conseguem. Aquelas que não conseguem talvez tenham que optar pela informalidade, que já é enorme no país, de quase 40%.” (Pastore, 2024)

Ou seja: quem pagaria a conta não seriam os patrões, mas os consumidores, em razão do aumento dos preços, e/ou os trabalhadores, que veriam reduzir-se a oferta de vagas formais de trabalho. Ecoando Nassau Senior, José Pastore profetiza o apocalipse: “uma boa parte [das empresas] simplesmente quebraria. E isso destruiria uma quantidade de emprego monumental.”

No mesmo diapasão, editorial do jornal O Globo pretende jogar água fria no entusiasmo dos defensores da PEC que imaginam “que, para dar conta do trabalho, as empresas contratariam mais funcionários, reduzindo o desemprego”. Nananinanão. Seria bom demais, mas não é isso que aconteceria, “pois os empresários não teriam alternativa senão demitir e o emprego informal cresceria” (O Globo, 2024a). Ou seja, o que nos dizem nesta passagem não é que o desemprego aumentaria, mas que encolheria o emprego formal e cresceria o emprego informal; em outras palavras, aumentaria a violação da legislação do trabalho por parte dos empregadores… os mesmos que seguem sendo amplamente beneficiados com desonerações e outras isenções tributárias de bilhões de reais, sem contrapartida alguma.

Não deixa de ser notável que nem o sociólogo da USP, nem o editorialista de O Globo admitam a hipótese de que os patrões poderiam vir a ter uma pequena redução de sua taxa de lucro, empregariam mais gente, pagariam mais salários, gerando mais renda, favorecendo o aumento da procura de seus produtos e recuperando ao final a pequena perda inicial. A falta de pejo é de tal ordem que se arvoram, de repente, em defensores dos trabalhadores informais, lembrados não como modelos do tão cultuado empreendedorismo, mas como aqueles que “menos têm direitos trabalhistas” e veriam aumentar as desigualdades que os separam dos trabalhadores formais. Que ardorosos combatentes contra a desigualdade, não é mesmo?!

Deixemos de lado editorialistas e especialistas e vejamos o que nos diz em viva voz o patronato. A Confederação Nacional da Indústria ameaça: “reduzir a jornada de trabalho pode provocar uma onda de demissões”. O presidente da Federação do Comércio de Minas Gerais prevê “uma quebradeira das pequenas e médias empresas em todo o país”. O vice-presidente da Federação das Indústrias do Rio de Janeiro vai mais longe e adverte contra o “risco ao crescimento do país”. (Franco, 2024)

Sobre a evolução da produtividade do trabalho

Vale a pena examinar com mais atenção à maneira como nossos Nassaus Seniores contemporâneos manipulam a discussão acerca da relação entre redução da jornada de trabalho e produtividade do trabalho. Embora haja abundantes evidências de que a redução da jornada de trabalho favoreceu um incremento da produtividade do trabalho em vários países, em virtude do menor desgaste, físico e mental e maior satisfação do trabalhador, o patronato e os especialistas tupiniquins questionam estas evidências, fornecendo exemplos duvidosos do contrário.

Em síntese, o que afirmam é que o aumento da produtividade, caso ocorresse algum, estaria muito longe de poder compensar a elevação de custos em que incorreriam os patrões – de “estratosféricos” 18% segundo o professor da Universidade da USP e da University of Wisconsin “(O Globo, 2024a), a mais de 20%, segundo Ulyssea (2024).

Mas ao centrar a atenção na questão da evolução futura da produtividade que decorreria, ou não, da redução da jornada de trabalho, escamoteiam um dado fundamental: a evolução da produtividade do trabalho desde 1988, quando os constituintes rejeitaram a proposta de uma jornada de 40 horas, constante de Emenda Popular no. 3, subscrita pelo movimento sindical, e inscreveram na Constituição as ainda vigentes 44 horas semanais.

Nas discussões acerca da evolução recente da produtividade do trabalho no Brasil são muitos os dissensos e alguns poucos os consensos. Entre os consensos, merece menção aquele que leva autores das mais variadas opções teóricas e políticas a concordarem que o crescimento da produtividade do trabalho entre nós tem sido pequeno e lento se comparado ao de outros países. Entre os dissensos, o principal é aquele que opõe os ortodoxos, que explicam o baixo crescimento do PIB pela baixa produtividade do trabalho, e aqueles, heterodoxos, que ao contrário, atribuem ao baixo crescimento do PIB a lenta evolução da produtividade do trabalho (Cavalcante & Negri, 2015, vol. 2).

Sejam quais forem as explicações para sua lenta progressão, é fato inegável que a produtividade do trabalho cresceu. Este crescimento teria sido da ordem de 30% entre 1995 e 2021, quando se considera o valor adicionado por hora de trabalho (Veloso et al, 2024).Para o período mais largo de 1981 a 2019 o crescimento teria sido de 40%, sendo que as quedas decorrentes da pandemia começaram a ser recuperadas a partir de 2023 (Veloso et al, 2024).

Assim, mesmo que se aceitassem os prognósticos pessimistas de que os custos subiriam de forma estratosférica e a produtividade permaneceria a mesma ou apenas levemente maior, o fato é que nos últimos 40 anos, desde a Constituição de 1988, a produtividade do trabalho avançou de 30 a 40%, sem que os trabalhadores tenham se beneficiado de reduções na jornada de trabalho.

O dicionário Caldas Aulete informa que argumento é o “raciocínio que se pretende baseado em fatos e em relações lógicas (…) usado para se chegar a uma conclusão ou para justificá-la, para convencer alguém de algo” (Aulete Digital). No caso que aqui se discute, a pretensão de basear-se em fatos e relações lógicas certamente não se aplica.

A retórica da intransigência

Em que se basearia, então, a rejeição da proposta de redução da jornada de trabalho? Sem evidências ou lógica nas quais se apoiarem, o que levaria nossos especialistas, professores tão renomados como foi Nassau Senior a sua época, a rejeitarem mudanças? O que os levaria a prognosticar de que o efeito será o oposto do pretendido? (Ulyssea, 2024).

A resposta a esta pergunta está contida num precioso pequeno livro de autoria de Albert Hirschman (1915-2012)[iii] intitulado A retórica da intransigência. De forma rigorosa e consistente, o autor expõe o modelo argumentativo que estrutura o pensamento reacionário, sintetizando-o em três teses principais: a tese da perversidade, a tese da futilidade e a tese da ameaça.

“De acordo com a tese da perversidade, qualquer ação proposital para melhorar um aspecto da ordem econômica, social ou política só serve para exacerbar a situação que se deseja remediar. A tese da futilidade sustenta que as tentativas de transformação social serão infrutíferas, que simplesmente não conseguirão “deixar uma marca”. Finalmente, a tese da ameaça argumenta que o custo da reforma ou mudança proposta é alto demais, pois coloca em perigo outra preciosa realização anterior”. (Hisrschman, 1992, p.15).

Concentremo-nos na tese da perversidade, pois é a que mais recorrentemente tem sido acionada. Em primeiro lugar¸ Albert Hirschman destaca que, via de regra, os reacionários raramente confessam sua ojeriza à mudança proposta; ao contrário, geralmente se apressam a declarar sua simpatia e sua concordância com os objetivos visados. Podemos imaginar o tom condescendente e amigável com que anunciam sua concordância com o princípio. “Sim, dizem eles, a proposta é interessante e os objetivos nobres. Todos queremos avançar, não é mesmo? Quem poderia discordar de que as jornadas de trabalho atuais muitas vezes são extenuantes e que seria importante reduzi-las?”.

Imediatamente, porém, vem o contraponto: “O problema, e há que reconhecer que os problemas existem no mundo real, nem sempre é fácil concretizar as melhores intenções e a insistência pode acabar provocando recuos, em vez de avanços.” É exatamente o que nos diz José Pastore: “A motivação é ajudar o trabalhador, mas no fim das contas acaba prejudicando” (O Globo, 2024a).

Alguns, mais sinceros, abrem o jogo, como Roberto Campos Neto, presidente do Banco Central, que, no 12º Fórum Liberdade e Democracia, que alardeia: “o Brasil precisa ter uma política pró-empresário”, porque, afinal de contas, “a gente não consegue, aumentando as obrigações dos empregadores, melhorar os direitos dos trabalhadores” (O Globo, 2024b).

Albert Hirschman vai ilustrar com vários exemplos os contextos históricos em que os porta-vozes mais qualificados do pensamento conservador contestaram a mudança. Assim, por exemplo, a universalização do direito ao voto, ao invés de favorecer um governo mais representativo e legítimo, abriria o caminho para a submissão da razão e da ordem à ignorância e ao barbarismo das massas.

E como se estivesse participando de nosso debate atual, o autor escreve que é na economia que a tese da perversidade mais se faz presente: “Na economia, mais que em qualquer outra das ciências sociais, a doutrina do efeito perverso está intimamente ligada a um dogma central da disciplina: a ideia de um mercado que se autorregula. Na medida em que essa ideia é dominante, qualquer política pública que tenha por meta mudar os resultados do mercado, tais como preços ou salários, torna-se automaticamente uma interferência nociva em processos benéficos de equilíbrio. Mesmo os economistas favoráveis a algumas medidas de redistribuição de renda e riqueza tendem a considerar as medidas de caráter “populista” (…) como contraproducentes” (Hirschamn, 1992, p. 30).

Preciosa e reveladora a citação de Milton Friedman (1912-2006), Prêmio Nobel de Ciências Econômicas em 1976 e papa da Escola de Chicago, em cuja cartilha aprenderam o beabá e os segredos do mercado o conhecido Paulo Guedes e renomados especialistas já citados: “as leis do salário mínimo são talvez o caso mais claro que se pode encontrar de uma medida cujos efeitos são precisamente o oposto dos pretendidos pelos homens de boa vontade” (Capitalism and freedom, p.31).

A legalidade no estado democrático de direita

A inconformidade de Milton Friedman e dos neoliberais com a existência de uma legislação fixando um salário mínimo e, de modo mais amplo, de leis que disciplinem as relações de trabalho entre patrões e empregados expressa a convicção de que a força de trabalho é uma mercadoria como outra qualquer e que, como todas as demais mercadorias, deve ser livremente comprada e vendida, sem intervenções “espúrias” que restrinjam a liberdade dos indivíduos de contratar. É a isto que chamam de “livre negociação” e é com base na convicção teórica dos economistas e no interesse pragmático dos patrões que desensarilham suas baionetas para superar o que veem como “rigidez” da legislação, em favor da “flexibilização”.

Ao criticar a “rigidez”, Gustavo Franco[iv] aciona a já citada tese da perversidade: “A rigidez nas regras trabalhistas leva à informalidade e segmentações perversas no mundo do trabalho, frequentemente beneficiando uma elite sindical e discriminando minorias e imigrantes <…> Faria muito mais sentido propor algo na direção de mais flexibilidade, e não menos” (Franco, 2024). A proposta de reduzir a jornada, segundo Gustavo Franco, iria na contramão da necessária “flexibilização” da legislação do trabalho, imposta pela reforma da lei trabalhista de Michel Temer e celebrada por ele e seus colegas.

A reforma (Lei No 13.467 de 2017), ocorrida logo após a cassação do mandato da Presidente Dilma Roussef, revogou um conjunto de conquistas consagradas na Consolidação da Lei do Trabalho e “flexibilizou” as condições de contratação e emprego. Ela não cumpriu, entretanto, a promessa de reduzir a informalidade no mercado de trabalho. Muito pelo contrário

Trimestre/Ano% de empregados carteira assinada no setor privado(*)% de empregados carteira assinada no trabalho doméstico
2º trimestre de 201677,5%33,0%
2º trimestre de 202473,6%24,7%
(*) Não inclui os trabalhadores domésticos
Fonte: IBGE. Indicadores IBGE Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua Segundo Trimestre de 2024.

Ou seja: sete anos após a salvadora reforma trabalhista, o percentual de empregados sem carteira assinada aumentou de 3,9% no setor privado e de 8,3% no trabalho doméstico, comprovando que “flexibilização” não passa de fumaça para encobrir a dramática precarização do trabalho.[v]

Mas se deixamos de lado a patranha de que seria o excesso de regulação que promoveria o crescimento da informalidade, o que chama a atenção neste tipo de argumento é que ele supõe que uma lei relacionada às relações de trabalho terá como efeito uma decisão ‘racional” e consciente dos patrões de atuarem ilegalmente, contratando trabalhadores à margem da lei – afinal, é disso que se trata quando se fala de contrato informal, de trabalhador empregado sem carteira assinada.

Se alguém perguntar aos Francos, Pastores, Campos Netos e outros próceres do pensamento reacionário se acreditam que os cidadãos devem cumprir e exigir o cumprimento da lei, sem diferenças de classe, gênero, cor ou religião, certamente responderão que sim, pois são autênticos democratas. Mas, neste caso, eles não apenas afirmam que os patrões descumprirão a lei, como se acomodam com esta infração aberta, deixando claro que, na verdade, somente defendem o cumprimento daquelas leis que não desafiem as leis do livre mercado, estas sim soberanas, impositivas, inquestionáveis, acima das leis dos seres humanos.

E assim avança, entre nós, a implantação do estado democrático de direita (ou deveríamos dizer da direita?), tolerante com as ilegalidades contra o trabalhador, intolerante frente a qualquer tentativa de submeter os capitalistas a regras e normas.

*Carlos Vainer é Professor Emérito do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Referências


Aulete Digital. Disponível em https://www.aulete.com.br/argumento.

Cavalcante, Luiz Ricardo & Negri, Fernanda de. Consensos e Dissensos sobre a Evolução da Produtividade na Economia Brasileira. Brasília, ABDI/IPEA, 2015, vol. 2.

Engels, Friedrich – 1844. A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra. Porto, Edições Afrontamento, 1975 (1844).

Franco, Bernardo de Mello – 2024. “O Coro Ouvido no Debate de 6 x 1”. In: O Globo.

Franco, Gustavo – 2024. “Sobre a PEC dos 6 a 1”. In: O Globo, 24/11/2024.

Hirschman, Albert O. A Retórica da Intransigência: Perversidade, Futilidade, Ameaça. São Paulo, Companhia das Letras.

IBGE. Indicadores IBGE Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua Segundo Trimestre de 2024. IBGE, ABR.-JUN. 2024. Disponível em https://ftp.ibge.gov.br/Trabalho_e_Rendimento/Pesquisa_Nacional_por_Amostra_de_Domicilios_continua/Trimestral/Fasciculos_Indicadores_IBGE/2024/pnadc_202402_trimestre_caderno.pdf

Keynes, John Maynard – 1930. “Possibilidades econômicas para os nossos netos”. In: Ensaios sobre Persuasão, Nova Iorque: W.W.Norton & Cia., 1963, pp. 358-373. Dispnível em https://www.geocities.ws/luso_america/KeynesPO.pdf, 30/11/2024

Marx, Karl. O Capital: Crítica da Economia Política. São Paulo, Editora Nova Cultural (Os Economistas), 1996 [1867].

O Globo – 2024a. “PEC que Impõe Escala de Trabalho 4 x 3 Seria um Erro”. Editorial, O Globo, 16/11/2024.

O Globo – 2024b. “Jornada 6×1: Governo Elogia a PEC e Campos Neto Critica”. O Globo, 15/11/2024.

Pastore, José – 2024. “Reduzir a jornada de trabalho é um impacto econômico. Entrevista de José Pastore a Glauce Cavalcanti”. In: O Globo, 16/11/2024.

Ulyssea, Gabriel – 2024. “PEC da Escala de Trabalho Pode Gerar Efeito Inverso”. In, O Globo, 17/11/2024.

Veloso, Fernando et al – 2024. Produtividade do trabalho no Brasil: uma análise dos resultados setoriais desde meados da década de 1990. In: Blog do IBRE, 22/04/2024. Disponível em https://blogdoibre.fgv.br/posts/produtividade-do-trabalho-no-brasil-uma-analise-dos-resultados-setoriais-desde-meados-da, 30/11/2024.

Veloso, Fernando et al. “Após fortes quedas em 2021 e 2022, produtividade do trabalho volta a crescer em 2023”. Disponível em https://portalibre.fgv.br/noticias/apos-fortes-quedas-em-2021-e-2022-produtividade-do-trabalho-volta-crescer-em-2023.

Wikipedia. Gustavo Franco. Disponível em https://pt.wikipedia.org/wiki/ Gustavo_Franco.

Notas


[i] Os navios de Liverpool transportaram ao longo do século XVIII cerca de 1.500.000 africanos escravizados. Os prefeitos de Liverpool e suas elites eram traficantes de escravos ou ligados ao tráfico. A cidade foi o principal porto pelo qual entravam o algodão que alimentava a indústria da cidade de Manchester e por onde saíam os produtos manufaturados.

[ii] Um dos principais centros da revolução industrial do século XVIII, Manchester foi apelidada no século XIX de Cotonnopolis, pela concentração da indústria têxtil.

[iii] Formado em Economia e Ciência Política pela Universidade de Humboldt, judeu, Hirschman fugiu da Alemanha para escapar ao nazismo. Estudou na Sorbonne e na Escola de Altos Estudos Comerciais, em Paris, tendo-se doutorado em Ciências Econômicas na Universidade de Trieste. Trabalhou no Federal Reserve (Banco Central dos EUA), foi assessor do Banco Mundial e atuou nas universidades de Harvard e Columbia.

[iv] Professor do Departamento de Economia da PUC-RJ e considerado um dos “pais” do Plano Real, Gustavo Franco, foi presidente do Banco Central no governo de Fernando Henrique Cardoso e é sócio fundador da Rio Bravo Investimentos. Após 28 anos deixou o PSDB para se filiar, em 2017, Partido Novo (Wikipedia).

[v] Isso para não falar da presdigitação legal chamada “pejotização”: ameaçado de desemprego o empregado assalariado aceita transmutar-se em MEI, isto é, em empresa. E nesse formato de “informalidade formalizada” vê seus direitos serem surrupiados. Afinal de contas, diferentemente de trabalhadores e trabalhadoras, empresas, mesmo que seja micros e individuais, não ficam doentes, não engravidam, não se cansam… e, em consequência, não precisam de licença saúde, licença maternidade, férias e outros abusos drasticamente estabelecidos pela rigidez da legislação do trabalho.


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