A “revisão” do Plano Diretor da cidade de São Paulo

Imagem: Michelle Guimarães
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Por JOÃO SETTE WHITAKER FERREIRA & ANDRÉ KWAK*

Não há nada, no cenário urbano brasileiro, que permita esperanças, exceto para aqueles que têm o privilégio de viver nos territórios de riqueza das cidades

Estamos caminhando para a barbárie. São retrocessos em todos os campos: desemprego, desesperança, volta da miséria, tudo isso aprofundado por uma pandemia que, como era de se esperar, afeta drasticamente os mais pobres. E esse cenário se materializa nas cidades, palco da nossa tragédia social: pessoas sem-teto expostas à morte pelo frio, pessoas com tetos precários expostas à impossibilidade do isolamento, pessoas com trabalhos precários ou obrigadas a trabalhar expostas à transmissão da Covid, pessoas vítimas do preconceito de cor, de gênero, expostas à violência cotidiana, às balas perdidas que têm na verdade destino certo: os mais pobres, os negros, que vivem no ambiente indigno das favelas, resultantes de séculos de uma urbanização cuja característica funcional é a segregação. Não há nada, no cenário urbano brasileiro, que permita esperanças, exceto, evidentemente, para aqueles que têm o privilégio de viver nos territórios de riqueza das nossas cidades.

Essa lógica urbana não permitirá que se estique a corda das tensões sociais dentro do limite do suportável. Aliás, ela já se rompeu há tempos, mas as camadas de cima demoram para serem afetadas. Em muitas das nossas metrópoles, já assistimos a implosão da barbárie: territórios extensos controlados pelo crime, bastiões de riqueza que parecem fortalezas militarizadas, transportes colapsados, pobreza à luz do dia, sem contar que num país que ostenta estar entre as maiores economias do mundo, temos ainda um nível de oferta de serviços básicos – em especial de saneamento – digno dos países mais atrasados do mundo.

Muita gente acredita que somente o crescimento econômico é capaz de alterar esse padrão estrutural urbano tão perverso. Não é. Pelo contrário, nosso dinamismo econômico se transfere para o urbano na forma de soluções individuais de conforto e qualidade de vida, nunca coletivas, e a dinamização do consumo, ao contrário, exacerba os problemas: mais carros, mais poluição e as doenças a ela ligadas, mais condomínios fechados que renunciam à rua e ao espaço público, mais cercas, mais valorização imobiliária descontrolada e, consequentemente, aumento da expulsão dos mais pobres para as periferias.

A cidade de São Paulo passou por uma tentativa de reorganização para uma maior democracia social e espacial. Viu aprovado um Plano Diretor, em 2014, que foi posteriormente premiado pela ONU, comprovando suas qualidades e seu alinhamento com o que se propõe internacionalmente para o combate à desigualdade urbana. Porém, no Brasil, estamos muito longe de termos um Estado com capacidade reguladora que permita esperar muito dos planos e instrumentos de planejamento. O Plano Diretor de 2002, por exemplo, aprovado na gestão de Marta Suplicy, foi engavetado por oito anos na gestão Kassab, sem que nada acontecesse.

O novo plano de 2014, ainda assim, mostrou um avanço considerável, ao conseguir um pacto mínimo para começar a diminuir a lógica desigual e segregadora, e gerar uma mínima regulação do mercado imobiliário, que vê a cidade apenas como palco de negócios. Porém, como o padrão no Brasil é de uma urbanização de privilégios, em que apenas alguns recortes “nobres” do território são objeto de reiterados e exclusivos investimentos públicos urbanos, qualquer tentativa de organizar as cidades mais democraticamente significa confrontar-se a esses privilégios. O problema é que são justamente os privilegiados é que alimentam, consumindo produtos cada vez mais sofisticados e exclusivos, a máquina de fazer dinheiros do mercado imobiliário. Por isso, quase sempre os planos e outras intervenções públicas que se voltem a diminuir a desigualdade e refrear os privilégios, são imediatamente questionadas pelo setor privado, quando não engavetados por gestões que o representam, como ocorreu com o plano de 2002.

No caso do novo plano de 2014, sem que tenha sido sequer implementado em seus aspectos mais estruturais (como por exemplo a construção maciça de corredores de ônibus estruturais, ao longo dos quais se permitiria um adensamento construtivo e populacional vinculado ao transporte público), aumenta a pressão do mercado para ele seja “revisado”, e a Prefeitura, mais uma vez, mostra-se alinhada com esse setor que tão generosamente financiou sua campanha. Em meio à pandemia, sem nenhuma possibilidade de participação social real (não estamos falando de simulacros de participação), que é exigida por lei, e quando os objetivos deveriam ser evidentemente outros, voltados à refrear os impactos terríveis da pandemia ou, ao menos, tentar iniciar a implementação efetiva de muitos aspectos ainda intocados do plano, a Prefeitura avança fortemente para impor a tal “revisão”. Mas o que se vê é uma ação coordenada que escamoteia uma tentativa de fazer mudanças que nada têm de “revisão”, mas promovem mudanças nas travas que impedem o mercado de fazer aquilo que ele vê como único objetivo na cidade: o lucro. Cabe a pergunta: quais grupos sociais e econômicos têm interesse na revisão no meio da pandemia, com baixa participação popular? E quais as possíveis mudanças na lei que afetariam a vida das pessoas, sobretudo as famílias mais pobres?

É só acompanhar um pouco, na mídia, os objetivos da desejada “revisão”, que as respostas aparecem. De modo geral, intensifica-se a pressão para poder construir mais, sempre mais, verticalizando os miolos de bairros (processo que o plano controlou), passando por cima de regiões já consolidadas, de casario tradicional. O mercado justifica esse movimento dizendo que isso democratiza a cidade, pois oferece mais áreas residenciais nas regiões com infraestrutura, evitando assim o espraiamento para a periferia. Essa é uma manipulação ideológica de um pseudodiscurso democrático. Adensar a cidade no centro expandido, com mais e mais prédios, apenas ensejaria uma democratização real se esses prédios fossem destinados à população de baixa renda, aquela segregada e excluída, que vive no exílio das periferias da cidade. Mas não é disso que se trata. O mercado quer construir e adensar com empreendimentos para a alta renda, que é quem dá lucro. São prédios com apartamentos enormes e pouca gente morando, gerando pouca densidade habitacional e, na prática, apenas destruindo sobrados tradicionais de classe média para colocar no lugar condomínios murados de luxo.

O mercado quer revisar, para menos, os valores da Outorga Onerosa, imposto que cada prédio construído na cidade deve pagar, e cujos recursos são reinvestidos para a construção de moradias populares, infraestrutura urbana e na mobilidade urbana. Ora, o Plano Diretor estipulou um reajuste anual, mas os valores pagos pelas incorporadoras estão consideravelmente defasados, e até hoje, desde que o plano foi lançado, em 2014, foi realizada apenas uma atualização, em 2019, que aumentou os valores em 2%, quando a variação do IPCA entre dezembro de 2014 e dezembro de 2020 foi de 36,97%. Se for para “revisar”, deveria ser para reajustar, e não diminuir.

Outros motivos da desejada “revisão” dizem respeito a travas como as limitações de altura dos prédios nos miolos dos bairros, do tamanho dos apartamentos e do número de vagas de garagem nos prédios ao longo dos corredores de ônibus (uma iniciativa do plano para incentivar o adensamento próximo ao transporte público, diminuindo a dependência do automóvel), ao controle da ocupação das Zonas Especiais de Interesse Social, destinadas à habitação social mas objeto de desejo para construção de empreendimentos de alta renda, à fiscalização dos imóveis deixados sem uso na região central, para fins de especulação (e cuja notificação praticamente cessou desde 2017), e assim por diante.

Também correm por fora do plano ações para diminuir os recursos pagos à Prefeitura e para ter acesso a terrenos públicos bem localizados (como o terreno onde se localiza o DETRAN-SP, entre outros) no âmbito dos PIUs – Projetos de Intervenção Urbanísticas, que modificam as leis e parâmetros em grandes áreas da cidade. Existem na Câmara mais de quarenta projetos de lei que tratam dos PIUs. Um deles, o PL nº 712/2020, estabelece novos valores para o chamado fator de planejamento, utilizado para cálculo do valor a pagar, propondo uma redução que em algumas quadras da área central chega a até 90%. Na mesma lógica, no início de junho, a Prefeitura reduziu em 35% os valores dos CEPACS a pagar na Operação Urbana Água Branca, sem a apresentação dos cálculos necessários para evidenciar a redução de valores que estavam inalterados desde 2013, e que deveriam ter tido, ao contrário, um reajuste de mais de 52%.

Tudo isso ocorre em um cenário em que a Prefeitura tenta visivelmente diminuir a participação popular nos processos decisórios sobre a urbanização da cidade, garantidos na CF de 1988, no Estatuto da Cidade de 2001 e no próprio Plano Diretor, que poderia confrontar-se a tantos privilégios. Os Conselhos Participativos foram esvaziados, ao mesmo tempo que os grupos econômicos que foram os principais apoiadores da campanha eleitoral de Bruno Covas em 2019 aumentam visivelmente sua influência direta na prefeitura. Assim, vemos uma posição privilegiada de representantes do capital imobiliário na Secretaria Municipal de Licenciamento, que designou recentemente, em março, apenas representantes do capital imobiliário como membros do seu Comitê de Gestão.

Como se vê, há muito mais do que uma simples “revisão” nas movimentações que assistimos em torno do Plano Diretor. E o que fica claro é que elas não se mostram nem um pouco interessadas na dramática condição da nossa cidade, e muito menos na necessária e radical mudança da lógica da nossa urbanização que, hoje, segrega e mata parte considerável da nossa população. A barbárie não preocupa. O que importa é a busca pelo lucro.

*João Sette Whitaker Ferreira é professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (FAU-USP).

*André Kwak é doutorando em Planejamento Urbano & Regional na FAU-USP.

 

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