Crônica dos índios Guayaki

Imagem: Andrés Sandoval
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por EDUARDO VIVEIROS DE CASTRO*

Leia a apresentação do livro recém-lançado de Pierre Clastres

Mais conhecido como o pensador da “Sociedade contra o Estado”, como um dos poucos antropólogos, se não o único, que produziu uma reflexão política a partir do marco teórico do estruturalismo – reflexo política que ainda hoje surpreende pela radicalidade –, Pierre Clastres (1934-1977) foi também um excelente etnógrafo de campo.

Esta Crônica dos índios Guayaki nos introduz à experiência formativa que subjaz às amplas concepções do autor sobre a “sociedade primitiva”. Experiência formativa privilegiada – pois os Aché (ou Guayaki) eram então um dos poucos grupos isolados de caçadores-coletores da América do Sul –, descrita neste livro por meio de um experimento literário original, onde a voz indígena entrecorta a todo passo um fluxo narrativo dominado pelo discurso indireto livre, onde a ilustração das teses clássicas da antropologia se mescla com naturalidade e uma evocação ao mesmo tempo lírica e trágica da vida cotidiana deste povo das florestas do Paraguai, e onde a onipresença do socius como horizonte de sentido não mascara jamais a irrupção da singularidade. Clastres nos oferece, assim, uma crônica de leitura apaixonante que é ao mesmo tempo uma sólida etnografia.

Crônica efetivamente, em mais de um sentido: história de um tempo vivido com os Aché, quando estes ainda oscilavam entre a liberdade originária e a servidão genocida: mas história, sobretudo, do tempo vivido pelos Aché, com alegria e desespero, entre o nascimento e a morte.

Crônica admiravelmente rica do ponto de vista etnográfico: estas são histórias onde atores e paisagem estão constantemente a trocar seus papéis, onde os animais e as plantas, os ritos e as técnicas, a cosmologia e a ecologia dividem a cena com homens e mulheres, pais e cunhados, chefes e pederastas, caçadores e canibais.

Para o leitor familiarizado com as sociedades indígenas, este livro é um tesouro de informações, alusões e paralelos, em que os temas clássicos da etnologia tupi-guarani se desdobram em modulações múltiplas, ausências inesperadas e exacerbações intrigantes. Para aqueles que haviam frequentado até agora apenas o Clastres pensador do político, a Crônica dos índios Guayaki pode ser lida como uma espécie de romance filosófico, em parte autobiográfico, onde o autor narra seu encontro com o que viria a ser o principal modelo concreto da Sociedade Primitiva.

E por fim, para o leitor que pretende simplesmente ter uma ideia da “vida como ela é” do ponto de vista de um povo da floresta, aqui se achará o essencial: que lá como cá, o sexo, a comida e a morte são a substância de que é feita a realidade, mas também o sonho: e que esta mesma substância humana é capaz de informar realidades, e sonhos radicalmente outros que os nossos.

*Eduardo Viveiros de Castro é professor titular de antropologia no Museu Nacional da UFRJ. Autor, entre outros livros, de Inconstâncias da alma selvagem (Ubu).

 

Referência


Pierre Clastres. Crônica dos índios Guayaki: O que sabem os Aché, caçadores nômades do Paraguai. Tradução: Tânia Stolze Lima e Janice Caiafa. São Paulo, Editora 34, 2020.

 

 

 

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • Um estudo do caso Ailton Krenak1974__Identidade ignorada 21/07/2024 Por MARIA SILVIA CINTRA MARTINS: Prefiro sonhar com Krenak o parentesco com a natureza e com as pedras do que embarcar na naturalização do genocídio
  • Clarice Lispector no cinemacultura a paixão segundo g.h. 22/07/2024 Por LUCIANA MOLINA: Comentário sobre três adaptações cinematográficas da obra de Clarice Lispector
  • O princípio de autodestruiçãoLeonardo Boff 25/07/2024 Por LEONARDO BOFF: Qual ciência é boa para a transformação mundial?
  • Filosofia da práxis como poiésiscultura lenora de barros 24/07/2024 Por GENILDO FERREIRA DA SILVA & JOSÉ CRISÓSTOMO DE SOUZA: Fazer filosofia é, para o Poética, fazer filosofia contemporânea, crítica e temática
  • Que horas são no relógio de guerra da OTAN?José Luís Fiori 17/07/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: Os ponteiros do “relógio da guerra mundial” estão se movendo de forma cada vez mais acelerada
  • Apagão digitalSergio Amadeu da Silveira 22/07/2024 Por SÉRGIO AMADEU DA SILVEIRA: A catástrofe algorítmica e a nuvem do “apagão”
  • A disputa de Taiwan e a inovação tecnológica na ChinaChina Flag 20/07/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: A China já é hoje a líder mundial em 37 das 44 tecnologias consideradas mais importantes para o desenvolvimento econômico e militar do futuro
  • A produção ensaística de Ailton Krenakcultura gotas transp 11/07/2024 Por FILIPE DE FREITAS GONÇALVES: Ao radicalizar sua crítica ao capitalismo, Krenak esquece de que o que está levando o mundo a seu fim é o sistema econômico e social em que vivemos e não nossa separação da natureza
  • A radicalidade da vida estéticacultura 04 20/07/2024 Por AMANDA DE ALMEIDA ROMÃO: O sentido da vida para Contardo Calligaris
  • A questão agrária no Brasil — segundo Octávio IanniJose-Raimundo-Trindade2 19/07/2024 Por JOSÉ RAIMUNDO TRINDADE: As contribuições de Ianni podem auxiliar a reformular o debate agrário brasileiro, sendo que as obras do autor nos apontam os eixos para se repensar a estrutura fundiária brasileira

PESQUISAR

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES