A última cruzada

Blanca Alaníz, serie Día de los muertos en La Merced número 1, Fotografía analógica, Ciudad de México, 2021
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por BERNARDO SEVERGNINI*

No governo de Mario Draghi na Itália todo o repertório de experiências autoritárias que a história transmitiu está sendo usado e aplicado para preservar a ordem econômica global

Como escreve o jornal Washington Post,[i] está em andamento um experimento social na Itália que em breve, se for bem-sucedido, será disseminado em outros países. Portanto, é de se esperar que o modelo implementado na Itália (e também em Israel) represente para o Ocidente a nova fronteira, talvez a última possível, dessa ideologia chamada neoliberalismo. Esta é a missão de Draghi, a razão pela qual ele foi introduzido na política italiana e apresentado com os estigmas do herói. Mas seu trabalho é sujo, é uma tentativa de manter um império que está desmoronando usando métodos rápidos. Uma última cruzada desesperada do neoliberalismo moribundo.

Mario Draghi é a personificação do neoliberalismo. Mais: é o neoliberalismo tornado verbo. Feito religião. Ele demonstrou isso ao longo de sua vida e em seu cargo como chefe de governo não está fazendo nada além de aplicar os princípios de sua ideologia contra o SARS-CoV-2 nas questões econômicas, políticas e legais.

 

A imagem glamorosa do neoliberalismo

Há uma narrativa que o difunde como a superação das ideologias, um sistema em que finalmente abandonamos políticas que não estão mais em condições de governar a vida moderna, em constante evolução. Na era da Internet das Coisas, em que os algoritmos também fazem café e há quem planeje colonizar Marte, o progresso das “progressivas, grandiosas sortes” (magnifiche sorti e progressive[ii]) da humanidade avança tão rapidamente que não há lugar para ideologias, devemos nos libertar dessas cadeias que retardam a mudança. Precisamos de algo mais dinâmico, mais ágil, um sistema mais”resiliente”, como dizem hoje. Não temos tempo a perder com essas velhas ideologias, o negócio aqui é negócio, business, nada de papo!

Essa é a imagem glamorosa do neoliberalismo que é oferecida pela retórica dominante, tão persuasiva que as poucas vozes dissonantes são tratadas como inúteis, tediosos contratempos. Mas mesmo o neoliberalismo nada mais é do que uma ideologia, como as outras, com suas regras muito específicas, seus dogmas, seus preceitos e suas liturgias. E Draghi é um dos sacerdotes mais autorizados do neoliberalismo.

Há quem o liquide apressadamente como um “servo das multinacionais” ou um oportunista que constrói sua carreira protegendo os “poderes fortes”. Não é (só) isso. Draghi é um defensor convicto e tenaz do sistema capitalista, do mercado, da ideologia neoliberal. É um defensor extremista do sistema e de sua exportação e, como ele não é apenas o melhor, mas o único, ele acredita fideisticamente que justamente esse sistema poderá encontrar, com o desenvolvimento de tecnologias adequadas, a mitigação dos graves problemas ambientais e sociais.

 

O princípio do neoliberalismo

O princípio do neoliberalismo quer que o mercado privado governe todos os fenômenos sociais e que o Estado tenha essencialmente a função de “fiador” do sistema. É por isso que, por exemplo, o Governo Draghi estabeleceu, por lei, que, de agora em diante, se as cidades quiserem gerir diretamente a prestação de serviços à população, terão de “justificar” porque não recorrem à iniciativa privada… a gestão da pandemia segue o mesmo princípio: as escolhas draconianas feitas por seu governo, as mais rigorosas de todo o Ocidente, visam estabelecer as melhores condições para a prosperidade do sistema bancário e empresarial privado. Este é o objetivo principal, e não é um mistério.

O próprio Draghi, na coletiva de imprensa de apresentação do “super green pass“, declarou candidamente que as medidas restritivas servirão para evitar o fechamento do comércio, para não anular o ótimo resultado positivo de 6% do PIB obtido este ano e garantir que este Natal seja um triunfo do consumo, como nos velhos tempos. Poucos acenos à saúde em si, que teoricamente deveria ser o tema principal. A saúde passa a ser um aspecto secundário, que deve ser gerenciado em função daquele primário: a manutenção do comércio aberto. Devemos nos vacinar pela economia, mais do que pela saúde. Muitas mortes levariam a novos fechamentos, e isso seria um problema para a economia. O governo parece estar dizendo: “Italianos, não caiam na brincadeira de morrer de covid, se vocês fizerem isso, vamos ter que decretar o lockdown!”.

 

O objetivo principal

É claro que as mortes são um problema, um problema enorme, é até retórico apontar isso. Mas se o objetivo principal fosse realmente salvar vidas, uma longa série de outras medidas seriam colocadas em prática, além da vacina. Medidas necessárias, mesmo que não mais eficazes, mas que não representam um “um grande negócio” e que, por isso, são ignoradas, como a diminuição das salas de aulas super lotadas, a melhoria do transporte público, a implementação da medicina territorial, o aumento dos leitos hospitalares. Todos fatores que têm um grande impacto na contenção da pandemia e seus danos, mas que obviamente não são muito lucrativos.

Pelo contrário, a lógica do mercado faz com que a nível global a pandemia seja gerida quase exclusivamente pelas grandes corporações farmacêuticas, que colocam suas exigências acima do interesse coletivo. Todas as estratégias configuradas globalmente para enfrentar esta pandemia são baseadas na lógica comercial e têm o lucro como objetivo principal.

Um princípio elementar do comércio é avançar para os mercados mais ricos, mercados cujos clientes têm mais possibilidades de comprar os produtos a preços altos. É neste contexto que se enquadra o caso da variante Ômicron, que revelou a situação crítica do sul do mundo. Pois bem, os EUA e a União Europeia (especialmente por meio da ação da Alemanha, França e Itália) continuam se opondo aos pedidos de suspensão de patentes de vacinas para os próximos três anos, que mais de 100 países solicitaram. Em vez de garantir doses baratas (ou gratuitas) aos países pobres, a governança neoliberal global deixa as patentes nas mãos das Big Pharmas para que elas continuem a sugar o máximo possível dos países ricos, que garantem renda segura, sujeitando suas populações a terceira, quarta doses, vacinação de crianças e obrigações injustificadas para aqueles que ainda se recusam a receber a vacina.

Essas escolhas traem os propósitos comerciais da operação, que os governos dos estados são chamados a apoiar, mesmo que com métodos autoritários, se necessário. Esta é a mais recente cruzada do neoliberalismo: usar governos nacionais (e da UE) para sujeitar democracias em benefício dos negócios. Pelo amor de Deus, o controle dos governos é uma técnica que as grandes multinacionais sempre usaram, mas enquanto no passado atuavam na rabeira dos mecanismos da democracia representativa, hoje o método democrático não é mais suficiente. A pandemia foi uma oportunidade de sinalizar ao mundo que agora é a hora de seguir o caminho mais difícil.

O estado de direito hoje, quando atrapalha as perspectivas do grande capital global, é coisa do qual se livrar sem nenhuma cerimônia. Paradoxalmente, a defesa das liberdades e direitos individuais, que desde a Revolução Francesa representou um dogma essencial para a afirmação da doutrina liberal, pode agora ser alegremente sacrificada. O capital precisa de mais. Atenção, não se trata aqui de defender o individualismo (todos temos consciência do valor do convívio, não só para melhorar a qualidade das relações sociais, mas também para otimizar o impacto ambiental), mas é curioso que os turboliberais , que fizeram do individualismo uma bandeira, são hoje os primeiros a subjugar os direitos do indivíduo.

Os países de tradição “liberal” mais antiga, como os EUA ou o Reino Unido, conservam tanto no seu DNA tal consideração pelos direitos do indivíduo que (ainda) não ousaram, para não ofender a sensibilidade dos seus cidadãos, propor restrições à italiana. Mas nós na Itália não corremos esse perigo, não temos essa sensibilidade, e Draghi sabe disso. Nunca tivemos muita dificuldade em oferecer nossa liberdade individual a um “homem forte” que, paternalisticamente, dispõe dela como bem entende. Nenhum lugar seria mais adequado do que a Itália, para experimentar esse novo modelo autoritário, no qual o neoliberalismo, para salvar a si mesmo, é forçado a usar as técnicas manipuladoras e coercitivas de regimes totalitários que no século XX tanto combateram.

Mas essa escolha não deve ser interpretada como uma negação da doutrina liberal. Pelo contrário, representa uma evolução, uma nova missão necessária, uma nova cruzada, talvez a última: para manter-se fiel aos seus dogmas, sobreviver às suas próprias contradições, hoje este sistema precisa cada vez mais forçar a mão, impor-se com violência .

Na era do liberalismo agonizante, o estado de direito e o estado de bem-estar social devem ser cada vez mais distorcidos, cada vez mais inclinados às necessidades dos negócios. O dinheiro público não deve ser usado para garantir serviços às pessoas, mas deve engordar as empresas. Assim, para enfrentar a pandemia, bilhões estão sendo gastos em vacinas de empresas farmacêuticas privadas. A estratégia deve ser apenas a da vacina, e nada mais. Tudo deve ser uma oportunidade de negócio para alguém. E terá que ser daqui até a eternidade (em Israel já estão preparando na quarta dose…).

 

A nova ordem

A adesão à nova ordem deve ser total, absoluta, e sem discussão. Deve ser uma religião. Voltamos a um nível de autoritarismo ainda mais antigo: o fideísta da Igreja medieval. A verdade revelada, o bem contra o mal, o altruísmo contra o egoísmo, a dinâmica pecado-arrependimento-perdão-redenção aplicada aos fugitivos de vacinas, o significado “eucarístico” do soro sagrado, e assim por diante ao longo do caminho do novo evangelho da saúde, aquele revelado pelas multinacionais farmacêuticas.

Em suma, todo o repertório de experiências autoritárias que a história transmitiu está sendo usado e aplicado ao presente para preservar a ordem econômica global. Algumas categorias de trabalhadores italianos, como professores ou militares, já estão experimentando as maravilhas da nova ordem, e em breve será a vez do restante da população. Provavelmente o método usado na Covid-19 é apenas a primeira aplicação de um método que pode ser estendido à gestão de outras emergências,  primeira entre todas, a ambiental.

*Bernardo Severgnini é geografo e professor.

Tradução: Anselmo Pessoa Neto

Publicado originalmente no portal MDF.

 

Notas


[i] https://www.washingtonpost.com/world/europe/italy-vaccination-mandate-workers/2021/10/15/d1b045e2-2d99-11ec-b17d-985c186de338_story.html.

[ii] Sobre a citação “magnifiche sorti e progressive”, Bernardo Severgnini diz: “É uma expressão famosa na Itália. É de uma poesia de Giacomo Leopardi, “La ginestra o il fiore del deserto”, (A giesta ou A flor do deserto) e se tornou quase um provérbio para indicar quem tem confiança cega no futuro, convencido de que o futuro será belíssimo. É comumente usada para descrever a filosofia positivista que diz que a humanidade é destinada a progredir sempre em direção ao melhor, graças à tecnologia. [Nota do tradutor].

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Maria Rita Kehl João Adolfo Hansen Marilia Pacheco Fiorillo Andrés del Río Leonardo Sacramento Ricardo Abramovay Celso Favaretto Rodrigo de Faria Marcus Ianoni Anselm Jappe Alexandre de Lima Castro Tranjan Michel Goulart da Silva Érico Andrade Valerio Arcary Lincoln Secco João Feres Júnior André Márcio Neves Soares Eleonora Albano Bernardo Ricupero Leonardo Avritzer Marcelo Módolo Celso Frederico Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Carlos Tautz Rafael R. Ioris Eleutério F. S. Prado Eugênio Bucci Leda Maria Paulani Denilson Cordeiro Manuel Domingos Neto Francisco de Oliveira Barros Júnior Dênis de Moraes José Luís Fiori Boaventura de Sousa Santos Luís Fernando Vitagliano Paulo Fernandes Silveira Valerio Arcary Bruno Machado Vanderlei Tenório Marcos Aurélio da Silva Ronaldo Tadeu de Souza Osvaldo Coggiola Rubens Pinto Lyra Gabriel Cohn José Machado Moita Neto Chico Whitaker Milton Pinheiro Everaldo de Oliveira Andrade Priscila Figueiredo Bento Prado Jr. Antonino Infranca Yuri Martins-Fontes Henry Burnett José Costa Júnior Ronald Rocha Luiz Roberto Alves Francisco Fernandes Ladeira Paulo Martins Luiz Werneck Vianna Annateresa Fabris João Sette Whitaker Ferreira Luiz Marques Berenice Bento Jean Pierre Chauvin Luiz Bernardo Pericás Ladislau Dowbor Antônio Sales Rios Neto Luis Felipe Miguel Lorenzo Vitral Armando Boito Ronald León Núñez Atilio A. Boron Tarso Genro Samuel Kilsztajn Vladimir Safatle Marjorie C. Marona Caio Bugiato Paulo Nogueira Batista Jr Bruno Fabricio Alcebino da Silva Carla Teixeira João Carlos Loebens José Dirceu Dennis Oliveira Francisco Pereira de Farias Otaviano Helene Airton Paschoa Daniel Costa João Lanari Bo Juarez Guimarães Gilberto Lopes Benicio Viero Schmidt Fernando Nogueira da Costa Luciano Nascimento Manchetômetro Paulo Sérgio Pinheiro Mariarosaria Fabris Henri Acselrad Jorge Branco Liszt Vieira Heraldo Campos Alysson Leandro Mascaro Lucas Fiaschetti Estevez Michael Löwy Alexandre Aragão de Albuquerque Sergio Amadeu da Silveira Igor Felippe Santos Matheus Silveira de Souza Flávio R. Kothe Fábio Konder Comparato Sandra Bitencourt José Micaelson Lacerda Morais Renato Dagnino João Paulo Ayub Fonseca Daniel Afonso da Silva Claudio Katz Marcos Silva Marilena Chauí Eugênio Trivinho Paulo Capel Narvai Andrew Korybko Thomas Piketty Vinício Carrilho Martinez Salem Nasser Luiz Renato Martins Kátia Gerab Baggio Mário Maestri Ricardo Musse Michael Roberts José Raimundo Trindade Jorge Luiz Souto Maior Slavoj Žižek Ricardo Fabbrini Jean Marc Von Der Weid Ari Marcelo Solon André Singer Remy José Fontana Chico Alencar Gilberto Maringoni Tadeu Valadares Julian Rodrigues João Carlos Salles Eliziário Andrade Leonardo Boff Flávio Aguiar Tales Ab'Sáber Daniel Brazil Afrânio Catani Fernão Pessoa Ramos Luiz Carlos Bresser-Pereira Eduardo Borges Antonio Martins José Geraldo Couto Luiz Eduardo Soares Elias Jabbour Walnice Nogueira Galvão Marcelo Guimarães Lima Ricardo Antunes Alexandre de Freitas Barbosa Gerson Almeida Plínio de Arruda Sampaio Jr.

NOVAS PUBLICAÇÕES