A sociabilidade da competição

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por DENNIS DE OLIVEIRA*

O bolsonarismo é a nova racionalidade governamental do neoliberalismo.

Muitos ainda devem estar se perguntando como uma pessoa que abertamente foi contra as medidas recomendadas para combater a pandemia, causando, assim, a morte de quase 700 mil pessoas; que gerou uma crise social imensa a ponto de pessoas entrarem na fila para comprar ossos; e que faz um discurso violento, racista, LGBTfóbico e em defesa do armamento, ter chances reais de vencer uma eleição presidencial. E ainda que perca, seus partidos apoiadores elegeram 250 deputados federais, formando a maior bancada parlamentar e ainda elegeram vários governadores.

Alguns aspectos que precisam ser considerados neste cenário.

O primeiro é de natureza sócio-econômica. O neoliberalismo implica mais que um paradigma de reprodução de riquezas. Como bem dizem os pensadores franceses Pierre Dardot e Christian Laval em A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal (Boitempo), o neoliberalismo é uma nova razão do mundo, ou emprestando um conceito foucaultiano, uma nova governamentabilidade. A governamentabilidade é o encontro de um paradigma de estrutura de poder (Estado e instituições) com uma sociabilidade imposta pelo capital.

Esta sociabilidade imposta pelo capital é marcada pelo paradigma da concorrência em todas as dimensões da vida. Desde os sonhos pessoais até as agendas pretensamente coletivas se inserem no paradigma da concorrência. Por isto que a categoria “capital” que, originariamente, se inseria dentro de um marco econômico (o capital como categoria inerente ao capitalismo, ao controle dos meios de produção que possibilitam a extração da mais-valia) se dissolve e se transforma em capital humano, capital social, capital político, capital simbólico; como se todo e qualquer ser humano possuísse um “tipo” de capital que se transformaria em recurso para a concorrência. Em outras palavras, é a total supremacia da ideologia do “mercado” como locus privilegiado para dirimir todos os conflitos.

É fato que isto não ocorreu do nada. A fragmentação e precarização do trabalho enfraqueceu a identidade de classe proletária (o que Marx chama de “classe em si”) e, por conseguinte, a luta de classes, para o que se chama imprecisamente de identitarismo e “opressões múltiplas”. Embora se fale muito de “racismo estrutural”, “machismo estrutural”, entre outras coisas, nunca a agenda antirracista e antimachista foi hegemonizada por propostas pós-estruturalistas. Consciência negra, emancipação, equidade se deslocaram para empoderamento e uma visão de representatividade muito mais articulada a “visualidade” que análises críticas dos sistemas de poder.

Robert Samuelson disse nos anos 1990 que “a guerra contra a pobreza acabou, os pobres perderam.” Revoltante. Hoje há grupos que dizem: “a favela venceu”. Tranquilizador. Mas entre revolta e tranquilidade, existe um ponto de encontro – a lógica de competição entre setores dissociada das dimensões relacionais. Sim, porque “pobreza” e “favela” são produtos de uma totalidade em que há relações de conflito. A vitória contra a pobreza ou de quem mora na favela implica na resolução deste conflito social que gera pobreza e favelas. Em outras palavras, pobres vencerem significa acabar com a pobreza e favela vencer implica em deixar de existir favelas. Nem uma coisa, nem outra aconteceu simplesmente porque esta totalidade que gera pobrezas e favelas continua existindo. O seu nome: capitalismo.

O mesmo se aplica ao conceito extremamente banalizado de “racismo estrutural”. Falar em racismo estrutural significa que há um processo reprodutor do racismo que se insere na lógica da estrutura social. Por isto não se derrota racismo estrutural com “emponderamento” e “representatividade” (= visualidade). Racismo estrutural se enfrenta com o questionamento das estruturas que se alimentam desta lógica. No livro Racismo estrutural: uma perspectiva histórico-crítica (Ed. Dandara) apontei que esta lógica é a da superexploração do trabalho como mecanismo de reprodução de riquezas do capitalismo dependente.

Enquanto se mantiver este modelo de reprodução de riquezas, o racismo estrutural permanece e ele se manifesta não apenas porque uma pessoa negra que tem uma posição importante é barrada na entrada de uma instituição, mas também pela naturalização de paisagens como crianças negras pedindo esmolas ou trabalhando como flanelinhas nos cruzamentos das grandes avenidas das cidades.

Mas existe um segundo componente que dá base ao fascismo. Foram os gargalos não equacionados na transição da ditadura militar para a democracia no final dos anos 1980. Quando foi lançado em 1978 nas escadarias do Teatro Municipal, o Movimento Negro Unificado contra a Discriminação Racial (MNU-CDR) denunciava já a violência policial praticada por aparatos repressivos inflados para manter a ditadura militar. Em outras palavras, os aparatos repressivos serviam não só para reprimir os opositores à ditadura como também a população preta em geral, moradora das periferias.

O assassinato de Robson Silveira da Luz, em 4 de maio de 1978, na delegacia do bairro de Guaianases, em S. Paulo foi um dos fatos que levaram à manifestação que criou o MNU-CDR. A transição de acordos teve como uma das consequências não só o ajuste de contas com os crimes praticados pelo Estado ditatorial mas a manutenção de pessoal e toda a tecnologia de repressão nos sistemas de segurança pública que levou o país, mesmo com mais de 30 anos de vigência da Constituição democrática ostentar dados de ter um jovem negro morto a cada 21 minutos.

A manutenção do sistema repressivo atende de certa forma a demanda por resposta a uma consequência direta do neoliberalismo: a intensificação da concentração de renda. Aumentando a miserabilidade, os conflitos sociais tendem a se acirrar. Um sistema repressivo, portanto, é a garantia de “controlar” estes cinturões de miséria. Da mesma forma que durante o período do escravismo colonial no Brasil, o Estado mantinha um sistema de vigilância sofisticado para reprimir os que “ousassem” rebelar-se e/ou fugir das senzalas. Hoje, as senzalas são as periferias – por isto, elas precisam, na ótica do capital, serem controladas.

Em uma sociabilidade da competição, o Estado tem o papel de controlar eventuais rebeldias dos que “perderam” ou sequer foram chamados a jogar, assim como garantir que esta competição ocorra sem qualquer tipo de controle ou norma. Por isto, que na leitura dos facistas impor restrições a circulação de pessoas por conta da pandemia do Covid-19 é “autoritarismo”.

Assim como impedir que atos racistas, machistas ou LGBTfóbicos é tolher a liberdade de expressão. Na sociabilidade da competição tudo vale. Desregulamentação e aumento da repressão são as duas faces da moeda do fascismo contemporâneo no Brasil. É o arranjo institucional da governamentabilidade que o bolsonarismo expressa e por isto o seu apoio. Compreender isto é fundamental para que se pense as melhores estratégias de como enfrentá-lo.

*Dennis de Oliveira é professor no curso de Jornalismo da Escola de Comunicações e Artes da USP. Autor, entre outros, livros de Racismo estrutural: uma perspectiva histórico-crítica (Dandara).

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Luciano Nascimento Luiz Renato Martins Valerio Arcary Caio Bugiato Antônio Sales Rios Neto Daniel Afonso da Silva Marcos Aurélio da Silva João Carlos Loebens Ronald Rocha Paulo Fernandes Silveira Fábio Konder Comparato Everaldo de Oliveira Andrade André Márcio Neves Soares Eugênio Trivinho Ronald León Núñez Carla Teixeira Dênis de Moraes Vanderlei Tenório Benicio Viero Schmidt Manchetômetro Celso Favaretto Antonio Martins Carlos Tautz Paulo Capel Narvai Maria Rita Kehl Lucas Fiaschetti Estevez Fernão Pessoa Ramos Lorenzo Vitral Renato Dagnino Tadeu Valadares Chico Whitaker Gabriel Cohn Leda Maria Paulani Paulo Nogueira Batista Jr Salem Nasser Alexandre Aragão de Albuquerque Tarso Genro Ronaldo Tadeu de Souza Érico Andrade Paulo Martins Ricardo Musse Bruno Fabricio Alcebino da Silva Marilia Pacheco Fiorillo Mariarosaria Fabris Leonardo Avritzer Fernando Nogueira da Costa Thomas Piketty Plínio de Arruda Sampaio Jr. Francisco de Oliveira Barros Júnior Paulo Sérgio Pinheiro Ricardo Abramovay Vinício Carrilho Martinez Dennis Oliveira Jorge Luiz Souto Maior Rafael R. Ioris Luiz Eduardo Soares Vladimir Safatle Lincoln Secco João Feres Júnior Airton Paschoa Kátia Gerab Baggio Jean Pierre Chauvin Bruno Machado João Carlos Salles José Costa Júnior Daniel Costa Berenice Bento Andrés del Río Gilberto Lopes Marcelo Módolo José Machado Moita Neto Eleonora Albano Elias Jabbour Marjorie C. Marona Luís Fernando Vitagliano Ricardo Fabbrini Chico Alencar José Dirceu Luis Felipe Miguel João Adolfo Hansen Sandra Bitencourt Gilberto Maringoni Gerson Almeida Henry Burnett Luiz Carlos Bresser-Pereira Alysson Leandro Mascaro Ari Marcelo Solon João Paulo Ayub Fonseca Leonardo Boff Francisco Fernandes Ladeira Michael Löwy Rodrigo de Faria Luiz Marques Leonardo Sacramento Atilio A. Boron Eliziário Andrade Celso Frederico José Geraldo Couto André Singer Annateresa Fabris Boaventura de Sousa Santos José Micaelson Lacerda Morais Eduardo Borges Walnice Nogueira Galvão Milton Pinheiro Antonino Infranca Ladislau Dowbor Anselm Jappe Eugênio Bucci Alexandre de Oliveira Torres Carrasco João Lanari Bo José Raimundo Trindade Tales Ab'Sáber Luiz Werneck Vianna Luiz Roberto Alves Jorge Branco Igor Felippe Santos Eleutério F. S. Prado Manuel Domingos Neto Liszt Vieira Matheus Silveira de Souza Andrew Korybko Luiz Bernardo Pericás Michel Goulart da Silva Priscila Figueiredo Michael Roberts Denilson Cordeiro Daniel Brazil Slavoj Žižek Alexandre de Lima Castro Tranjan Claudio Katz Sergio Amadeu da Silveira Afrânio Catani Francisco Pereira de Farias Heraldo Campos Marcos Silva João Sette Whitaker Ferreira Jean Marc Von Der Weid Osvaldo Coggiola Juarez Guimarães Ricardo Antunes Mário Maestri Henri Acselrad Valerio Arcary Armando Boito Remy José Fontana Flávio Aguiar Flávio R. Kothe Yuri Martins-Fontes Bernardo Ricupero Alexandre de Freitas Barbosa Marilena Chauí Samuel Kilsztajn Otaviano Helene Bento Prado Jr. Julian Rodrigues José Luís Fiori Marcus Ianoni Marcelo Guimarães Lima Rubens Pinto Lyra

NOVAS PUBLICAÇÕES