Por JOSÉ RAIMUNDO TRINDADE*
A Ficção científica é o gênero literário que talvez mais nos faça pensar em saídas para problemas possivelmente insolúveis
Introdução
A Ficção científica não é o gênero literário mais comemorado pelos críticos, o que explica que somente um dos seus grandes nomes tenha sido até hoje agraciado pelo Nobel.[i] Por outro, não há literatura que mais nos faça pensar em saídas para problemas possivelmente insolúveis, e muitas vezes construir um imaginário de fantasias, seja otimista seja pessimista para o futuro, passado e presente da humanidade.
Em grande medida as obras clássicas de Ficção científica são caracteristicamente otimistas sobre o destino da humanidade, mas também diversas se colocam no campo distópico. Diga-se que a relação com as condições de convívio social e até a manutenção da ética humana são elementos importantes na percepção dos ficcionistas e, não somente o tratamento da evolução tecnológica.
Nosso interesse será em estabelecer certa problematização sociológica e econômica a partir de um roteiro de obras ficcionais, sendo que quatro pressupostos constituem o tempero mais interessante para interação com as mesmas: (i) a leitura ficcional se torna mais interessante quanto mais desafios são postos para nossa imaginação, não seria ficção se fosse obvio; (ii) a melhor ficção combina ruptura temporal, mudança sociológica e reconfiguração espacial; (iii) a interação com os fatos da realidade não ficcional, estabelecendo uma identidade semiótica com história; (iv) produção de novas identidades civilizacionais e arranjos tecnológicos diferenciados. Consideramos que esses quatro fatores constituem o cerne de uma sociologia da ficção científica e abordaremos cada um dos aspectos em conformidade ao tratamento das obras que iremos brevemente apresentar.
A ruptura temporal se dá tanto em movimentos de alterações históricas abruptas ou em saltos temporais tênues. Muitas vezes esses movimentos são rupturas mais radicais e podem se processar em tempos curtos, como “se dias valessem por anos e anos valessem por séculos”, como prognosticou Vladímir Lênin. A lógica de rupturas temporais sempre assombrou a humanidade, sejam os pensadores aristotélicos e religiosos, sejam os materialistas, epicuristas e ateístas.
Na Ficção científica a condição humana se expressa na continua modificação da relação espaço-tempo, de tal forma que tempos e espaços diversos se sobrepõem e se integram. As rupturas podem ser meramente espaciais, como as viagens lineares no universo sempre em expansão, ou temporais-espaciais quando se integra múltiplas dimensões.
As mudanças sociológicas são também parte das formas de ver dos diferentes autores, sendo que parcela considerável da ficção científica modela o tempo histórico conforme uma sociologia pouco dinâmica, o que é curioso já que as maiores alterações na história são dos padrões sociais, por mais que isto tenha se alterado bastante em autores mais recentes como Cixim Liu e Charles Melville. Acrescente-se a isso pouca ênfase no tratamento de configurações econômicas.
Os arranjos sociais e econômicos de parcela considerável das ficções científicas são estabelecidos numa espécie de tempo contínuo do capitalismo, exceto pela possibilidade de formas distópicas, cuja definição seria de barbárie caótica estabelecida. Como já referido, alguns dos autores mais recentes buscaram construir um diálogo mais amplo com alterações sociais, crises econômicas e ambientais, porém os clássicos dessa literatura são poucos afeitos a tratar das condições e rupturas econômicas e sociais. Por fim, a reconfiguração espacial, algo que os autores tratam, em grande medida, na forma de choques entre civilizações de níveis tecnológicos próximos e com formações espaciais integradas.
A saga do século XX
Nossa breve excursão se inicia com dois autores vitorianos, figuras que transitando do auge do inebriante século XIX emergem no século XX ainda bastante incertos com as possibilidades da humanidade e de sua ciência, em grande medida positivistas, mas irrequietos. Julgo que Júlio Verne (francês) e H.G. Wells (inglês) são em grande medida exemplares da produção de uma Ficção científica que exploram os fatores acima que nos guiam, especialmente as transições ou rupturas espaciais e temporais.
Júlio Verne (1828-1905) é o exemplo típico de um pequeno burguês parisiense de meados do século XIX. Na primavera de 1851encontramos Júlio Verne nos cafés ocupados por tropas bonapartistas, porém na companhia de figuras como Victor Hugo e Alexandre Dumas. Na cabeça daquele homem mapas e viagens fantásticas. Foi assim que em uma tarde de 1868, Verne tem a magnífica ideia de supor a ida do homem à lua. Este libelo as viagens espaciais, intitulado Da Terra à Lua, se torna, talvez, a obra inicial de compreensão do papel geopolítico futuro dos EUA, sem contar a impossível caneta de Marx e sua correspondência jornalística com o New York Tribune, que já estabelecia o que se tornaria no século XX, esse que agora é o Império em agonia imposto pelos ventos asiáticos e pela metamorfose ambiental e sanitária que satura o ar em toda e qualquer parte do planeta.
Da Terra à Lua tem um início fantástico e que nos faz vislumbrar como o capitalismo do século XX se desenvolverá: a indústria armamentista e a produção de guerras permanentes. A guerra de secessão estadunidense tinha acabado de se encerrar e Júlio Verne a acompanhou, tal como Karl Marx, meticulosamente o avanço da indústria bélica, porém seu interesse romanesco o desviou para uma possibilidade que será um marco: a viagem espacial e a dificuldade de construir uma logística que possibilitasse este salto tecnológico.
Esse autor, que já tinha previsto o submarino, no fantástico 20 mil léguas submarinas e a manipulação genética na fabulosa ficção A Ilha Misteriosa, antecipa a viagem a Lua em cem anos (1868/1968), sendo também um apaixonante romance entre a pesquisa e a praticidade científica, inclusive antevendo a necessidade de combustível químico que lance uma capsula espacial, quanto, curiosamente, o uso da Flórida (onde fica Cabo Canaveral) como ponto de lançamento de veículos espaciais: “o jato incandescente se elevou numa altura prodigiosa, as chamas iluminaram toda a Flórida e, por um tempo incalculável, a noite foi substituída pelo dia em quase toda a região”.
Em um salto vamos a Marte e a presença virótica tão central atualmente, pelas canetas de H. G. Wells (1866-1946), temos em A Guerra dos Mundos, a melhor descrição da disputa geopolítica, tecnológica e de diversidade biológica que se pode dar em termos planetários ficcionais. Neste clássico publicado em capa dura em 1898, temos a antecipação mais ambiciosa das forças em colisão de mundos diferentes e da presença fantástica de um vírus redentor. Sim é uma virose que derrota as forças de ocupação marcianas e possibilita a continuidade e domínio da humanidade no sistema solar.
Em um único livro esse biólogo romancista, porque Wells era cientista e trabalhava com o principal biólogo do final do século XIX, o “cão de Darwin” e avô de Aldous Huxley, Thomas Huxley, consegue nos vislumbrar com a antecipação das guerras robóticas (vejam os atuais drones), das reações viróticas e, principalmente, da recomposição de relações de poder num quadro de disputa entre forças muito desiguais, porém com fatores de imprevisibilidade da natureza que alteram os movimentos históricos.
Neste fantástico a Guerra dos Mundos, ele interpõe a metáfora de que a lógica capitalista de consumo desenfreado é assemelhada a forma de seres fantásticos em grande medida somente “cérebros” e distantes da condição de vida natural, distantes de todas “essas flutuações orgânicas de humores e emoções”, como ele descreve. Antecipa, portanto, a inteligência artificial e essa proximidade de uma humanidade desumanizada, o que os marcianos de Wells idealmente representam, porém, por fim são derrotados por um primitivo vírus!
Wells anteriormente tinha imaginado a impossibilidade da viagem linear no tempo, algo que a física relativística de Einstein vai demonstrar, e com a crítica a noção da história progressiva, algo que Marx já tinha demonstrado, em seu Máquina do tempo (1895), sendo que a evolução humana nos leva a um sistema de castas geneticamente diferenciadas, suprimindo, no limite, a humanidade.
Entramos no século XX, esse nosso criador e destruidor de almas e papéis, um século que como afirmou Eric Hobsbawm, extremou a humanidade e aproximou ficção e realidade como nunca na história humana, sendo o capítulo nuclear talvez a maior antecipação de final civilizacional na história intergaláctica.
Os autores vintentinos (nascidos no século XX) são talvez de outras realidades, talvez de universos paralelos e que mediante dobras espaciais ou buracos interuniversos nos presentearam com formidável imaginação. Vou me deter em sete autores que constroem um mosaico impenetrável das realidades em mutação daquele e deste século derivado: Huxley; Orwell; Hesse; Dick; Bradbury; Adams e Asimov.
Aldous Huxley, neto do Huxley que era mentor do Wells, inaugura a ficção distópica que se torna o padrão ficcional dos dias atuais. Porém, esse autor era de uma grandiloquência formidável, sua lógica e interatividade com o tempo complexo o torna um romancista sem igual e talvez, insuperável. Admirável Mundo Novo é uma obra prima, reúne ao mesmo tempo a fantasia dramática de Shakespeare, o realismo de Charles Dickens e a angústia feroz de Alan Poe.
Admirável mundo Novo deve ser lido em suspiros, a lógica do autor mistura cognição sociológica expressa na forma e sociedade vislumbrada: controle social, psicologia integrada, desigualdades falsamente suprimidas pelo exílio espacial. A disputa social, entre o isolamento daqueles que estavam submetidos a radiação atômica, um tipo de vírus tão ou mais mortal presente no nosso agora e futuro próximos, ou o esquecimento da história, coisa que Huxley vai retomar em O macaco e a essência, seu último romance que pensa como a humanidade terá o fim antes de se pensar enquanto civilização, algo que as diversas ondas fascistas e neoliberais estabelecem como padrão na atual fluência temporal.
Esse autor distópico formidável será seguido por um ficcionista sociológico por essência, agente da humanidade e radical socialista: George Orwell. Eric Arthur Blair tinha lutado na guerra civil espanhola, e no belíssimo e trágico romance do cubano Leonardo Padura aparece como um jornalista que luta pela causa republicana, uma fantástica e emocionante configuração do construtor de futuros como pensava Marx do Manifesto Comunista.
1984 é hoje em tempos críticos da humanidade uma opera a liberdade e uma espécie de vaticínio ao futuro próximo. A incapacidade de controle não mais existe e o “grande irmão” se torna a essência da própria vida contra o algoz que se naturaliza: é o controle social pleno pelas redes sociais e pela ideologia neoliberal. A fantasia construída pelo autor, ao nosso ver, a que mais previu o fim da condição humana estabelece outra dificuldade: será possível a humanidade continuar existindo com o fim da criatividade e seu completo controle pelas máquinas e inteligências artificiais?
Ray Bradbury vem aumentar essa angústia, autor conhecido por Fahrenheit 451, mas em A cidade inteira dorme temos o mais doloroso momento da ficção científica, coisa da angústia de um capitalismo construindo uma humanidade mais e mais vazia, assim: “havia mil pessoas nas vitrines, rígidas e silentes, e três pessoas na rua, os ecos seguindo-as como tiros vindos das fachadas das lojas…”. A construção de uma ficção sociológica alcança o auge neste autor, possibilitando, pela primeira vez, observar o fim da lógica capitalista e a caótica construção da barbárie, uma dinâmica que já tinha em Huxley a propriedade da afirmação do fim da humanidade. Mas a humanidade não se curva nunca a qualquer fim teleológico ou distópico.
Será nesta desconstrução fantástica que o mago da fantasia psicológica se imporá. Philip Dick viverá o suficiente para pensar a deformação da psique humana e o estabelecimento de mundos radicais e grotescos. Vale com certeza ler dois trabalhos fantásticos desse mago: O caçador de androides e O homem do Castelo alto.
O que há de melhor nestes dois trabalhos é a dificuldade da humanidade se ajustar frente as crises avassaladoras que ela própria produz, estabelecendo o que é a sequência de uma civilização perdida pela sua incapacidade de controlar a tecnologia, ou talvez mais corretamente, o controle completo do capital sobre a humanidade. Dick deve ter se encontrado com Marx em alguma outra dimensão e, assim, estabelecido como a compressão espaço-temporal desintegra a humanidade. Os personagens de Dick com almas tão efêmeras e baseadas em click’s nervosos ficcionais talvez nos digam que já estejamos neste mundo.
Após tanto azar da humanidade vale muito chegar ao otimismo do mais celebre e fantástico ganhado do Nebula, o prêmio Nobel da Ficção científica. Não há como desmerecer esse gênio e tão pouco celebrado pelos nãos nerds. Refiro-me a Isaac Asimov e sua contribuição ficcional para o destino da humanidade. Asimov seria uma espécie de fio continuador de Verne e Wells, seja pelo otimismo futurista da humanidade, seja pela criatividade dos autores, sem desmerecer a loucura criativa dos demais. A obra extensa desse autor nos faz levar para duas produções fantásticas: Fundação e Os próprios deuses.
A trilogia Fundação é uma obra inigualável, seja pela aventura histórica que oferece, seja pela construção psicológica dos personagens e da possibilidade idílica da humanidade. Asimov está para o século XX como Homero estava para antiguidade. Nestes dois autores a humanidade se supera e se reconstrói. No clássico Grego a “Odisseia” se estabelece como vitória da racionalidade sobre o mítico. Em Asimov Fundação reestabelece a racionalidade humana e se expande para além do mítico.
Fundação constitui a principal obra histórica de longa duração – como pensava Braudel – da ficção científica mundial. Isso até o surgimento do chinês Liu, para aqueles que têm medo de russos e chineses a ficção científica dos séculos XX e XXI será pouco acolhedora. Asimov estabelece cinco eras humanas, estaríamos na primeira, a ruptura com a era do capitalismo, que ele denomina de “isolacionismo cósmico” somente se dará conforme o “velho” com a destruição nuclear de dois terços do planeta, algo que a nossa atual trágica vivência com o significado da destruição nuclear sabe que o que restará será um vazio cósmico.
Fundação se constitui numa epopeia que inicia no ano “11.988 da Era galáctica”. Asimov nos apresenta para uma humanidade vitoriosa que se interpôs nos Cosmos e habita agora em inúmeros planetas. A tese central do autor é que a humanidade literalmente saiu na frente na disputa do Universo, tese essa que o mesmo somente desenvolverá em outra obra muito curiosa: O fim da eternidade.
A espécie humana se decidiu por explorar o espaço e construir seu futuro autônomo das viagens temporais e definiu a ordem de expansão na Galáxia, estabelecendo uma cultura diferenciada e habitando planetas com certa diversidade, porém centrados em uma hegemonia controlada a partir de um planeta central: “Trantor”. A Terra ficou no passado histórico, pouco conhecido e que será objeto específico de reencontro num momento peculiar de crise da humanidade interplanetária.
A outra obra do autor russo erradicado nos EUA, que considero magnética é Os próprios Deuses. A ausência de humanidade e a descoberta de saídas para os principais problemas da nossa civilização está exposto nesta ficção. O autor se despoja completamente do século XX e está em outro universo temporal, antecipa a ficção dos multiversos e trata sociologicamente, mesmo que de forma positiva, a interação entre universos em conflito. Nesta obra, pela primeira vez a ficção científica deixa de estar no Universo plano de continuidade linear, e passamos a ter um Universo multidimensional e torto, quase próximo ao caos existencial.
Quando Asimov escreveu seus primeiros romances ficcionais em torno do uso da inovadora energia nuclear parecia que o otimismo humano tinha chegado ao máximo, pelo menos naquela parte ocidental da humanidade capitalista, sabemos hoje que pueril ilusão, mas mantêm-se a criatividade de Asimov. A “catástrofe limite” forçará a humanidade a caminhar para segunda e terceiras eras de sua expansão cósmica. Detalhe interessante em Asimov é que os tempos não são lineares, sendo que diferentes realidades convivem em tempos paralelos. O “velho” foi o primeiro a conceber multiuniversos, algo que a física do século XXI curiosamente vai pensar, e a atual ficção tornou comum.
É esse Asimov caótico que estabelece o tragicômico e sem igual Douglas Adams. O incoerente Mochileiro das Galáxias possibilita viajar pelo tempo incontínuo sem sair do lugar, por conta de que o Universo se expande e retroage permanentemente, ou seja, o universo pulsa. A comicidade de Arthur Dent e sua crítica avassaladora ao capitalismo enquanto forma humana primitiva, e ao Universo em destruição permanente faz desta obra uma leitura que suaviza qualquer angústia, mostrando que podemos e haveremos de viajar pelo universo e chegar até seus impossíveis confins, mesmo que o último restaurante esteja nas “bordas da Galáxia”. Para se viajar no Universo não podemos requerer tecnologias mecânicas ou quânticas, a única forma são as tecnologias da imaginação e da projeção da ruptura das ideias caóticas, a metafisica retornando ao mundo do caos.
Entretanto temos que pensar como a cientificidade e racionalidade ocidentais se integram ao jogo imaginativo do Mundo oriental, algo que, como relataremos, será o cerne, na nossa leitura, da Ficção científica do século XXI. Hermann Hesse é uma leitura difícil, mas central para se pensar o futuro da ficção científica no ocidente. Fato curioso é que essa obra O Jogo das Contas de Vidro é o único romance futurista que ganhou o Nobel.
O que nos interessa, porém, é que no exercício ficcional da continuidade da humanidade três forças estabelecidas por Hesse atuam de forma avassaladora em Qualquer dia destemperança e incoerência racional humana: (i) “a renúncia à criação de obras de arte”, uma subordinação fascista total a negação do que é a própria humanidade. Aqui Hesse e Huxley parecem se encontrar; (ii) a negação da liberdade e a afirmação da universalidade autoritária enquanto condição histórica e; (iii) a crítica filosófica a alienação, numa perspectiva de que somente a construção definitiva da “árvore humana” possibilitaria a ruptura com o “egoísmo” que impossibilita as viagens para outros universos.
Nestes três elementos Hesse se aproxima mais de Epicuro e Marx que propriamente de um distópico, por mais que ao final seu romance nos leve ao desfecho da humanidade.
A leitura da ficção científica dos dois últimos séculos se torna neste momento crítico da humanidade um exercício mais que necessário. Aprender o futuro da humanidade está em conceber futuros dispersos e condições caóticas que somente a ficção científica possibilita a abertura de mentes e ideias para superar o presente angustiante.
Cixin Liu é da nova lavra da Science fiction juntamente com o excelente China Melville. O problema dos três corpos inaugura uma nova forma de conceber a relação humana com o cosmos, a partir daqui a relação humana não será de domínio universal e mesmo Deus se torna definitivamente “einstiano”, ou seja, todo o peso da “relatividade universal” se impõe e o “não estamos sozinhos” e “nossa vizinhança” existente se torna um espetáculo dramático fantástico.
Cixim Liu nos levanta diversas questões difíceis ao longo de sua trilogia: (i) a humanidade resulta de experimento biológico único?, ou se soma a outros experimentos galácticos?; (ii) os contatos humanos são de projeção universal, ou seja, somos uma espécie mais que magnífica, como pensava Asimov, ou somos uma simplória condição cósmica como pensa Liu?; (iii) como evoluirá nossa espécie nos próximos cinco mil anos? e qual a melhor forma de interagir com o planeta Terra frente as possíveis distopias colocadas? Uma questão que foge completamente as fantasias e se torna tão pesada no momento presente desta humanidade confusa e perdida.
A ideia de crise e sua possível solução movem tanto em Asimov quanto em Cixim Liu, em ambos parece estar presente a condição “mágica” para dificuldades humanas de se fazer coletivamente um ethos diferente do que os autores vivenciam em seu presente. As soluções de crises nas duas sagas se dão a partir de compreensões da intervenção coletiva distintas. Para Asimov o peso da individualidade e de possíveis soluções somente a partir de uma única psique é muito forte; algo muito distinto em Liu, neste somente soluções coletivas e complexas podem ser razoáveis frente as limitações que a civilização de Trissolaris nos impõe.
O século XXI – psicohistoriadores, sófons e a geopolítica interplanetária
Fundação é um marco ficcional por muitos aspectos, sendo que o tratamento histórico de longo prazo que o autor possibilita constitui o principal traço. O romance inicia com uma frase marcante: “havia quase vinte e cinco milhões de planetas habitados na Galáxia” todos subordinados a um gigantesco centro de poder que ficava no planeta “Trantor”. Essa especificação geopolítica é algo que Asimov absolveu da sua leitura histórica do esgotamento do Império Romano, transpondo os movimentos de crise e esfacelamento daquela experiência histórica para um quadro de presença humana, mas não da humanidade, em toda a Via Láctea. O debate em torno de diferentes ou possíveis outras humanidades.
O Império Galáctico já existia faz dez mil anos, constituído a partir de um núcleo de quatro planetas exteriores que mais tarde se denominariam os “quatro reinos”. O desenvolvimento tecnológico se baseou em uma pretensa evolução quase linear das condições que se estabeleceram no primitivo planeta Terra, que não era reconhecido como berço das “humanidades”.
A humanidade se construiu ao longo dos últimos cem mil anos, tempo curtíssimo considerando o tempo cósmico e assim ao ingressarmos no século XXI nos deparamos com uma nova e intrigante sina, agora intergaláctica e com a humanidade prisioneira de sua não audácia, isso nos remete ao maior ficcionista, até aqui, do atual século: Cixin Liu.
O autor chinês parte de duas hipóteses: (i) as civilizações são curtas, em termos de tempos cosmológicos e; (ii) existem inúmeras. Na percepção dele infinitas civilizações em escalas diferentes de desenvolvimento e acesso ao controle das variáveis espaço-temporais. A lógica de desenvolvimento histórico sociológico exposto pelo autor marca a diferença em relação aos autores ocidentais do século XX, não há mais uma humanidade suprema e sim uma entre muitas civilizações em disputa.
Cixin Liu relaciona seis pontos que são chaves para entender padrões civilizacionais: (a) relaciona a história aos movimentos científicos. A ciência não é neutra, ela é uma interatividade histórica e, portanto, relação de poder societal; (b) as relações humanas são fragmentadas seja pelo cotidiano, seja pelo imaginário crescente das redes sociais; (c) a vida e o pensar são diversos. Assim, não sabemos até quanto os arbustos das nossas casas podem atém pensar, de tal forma que o raciocínio é diverso, com incontáveis de outras formas de expressão.
(d) O universo é dialético, ou seja, a escala de expansão universal é contínua, mas sujeita a uma lógica imprevisível e de incertezas. Conceber o Universo como expansivo contínuo e dialético implica afirmar que a revolução cósmica é permanente; (e) por fim, Cixin Liu nos fala da necessária transformação radical humana. Estamos em permanente mudança e nada nos fará interromper a revolução cósmica e humana, exceto a morte. Queremos morrer? (f) quais os limites da inventividade humana. Estamos próximos ou distantes desses limites, ou, em termos do autor, quais são nossos sofons?
Os livros de Cixin Liu: O problema dos três corpos; O fim da morte e A floresta sombria, são o melhor que imaginamos nestas primeiras décadas do XXI, algo que Asimov admiraria. A ficção científica permanece como uma leitura necessária.
*José Raimundo Trindade é professor do Instituto de Ciências Sociais Aplicadas da UFPA. Autor, entre outros livros, de Agenda de debates e desafios teóricos: a trajetória da dependência e os limites do capitalismo periférico brasileiro e seus condicionantes regionais (Paka-Tatu).
Referências
Aldous Huxley. Admirável mundo novo. São Paulo: Globo, 2014.
Cixin Liu. O problema dos três corpos. Rio de Janeiro: Suma, 2006.
George Orwell. 1984. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
Herman Hesse. O jogo das contas de vidro. São Paulo: Record, 2000.
Isaac Asimov. Fundação. São Paulo: Aleph, 2000.
Júlio Verne. Obras Completas. São Paulo: Nova Fronteira, 2000.
Leonardo Padura. O homem que amava os cachorros. São Paulo: Boitempo, 2013.
Philip Dick. O caçador de androides. São Paulo: Editora Moderna, 2005.
Ray Bradbury. Fahrenheit 451. São Paulo: Globo, 2000.
Nota
[i] Herman Hesse é premiado com o Nobel com o O jogo das contas de vidro.
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