A sociologia é um esporte de combate

Pierre Bourdieu. Frame do documentário "La sociologie est un sport de combat"/ Divulgação
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Por AFRÂNIO CATANI*

Comentário do filme de Pierre Carles sobre o sociólogo francês Pierre Bourdieu

O filme de Pierre Carles (1962) acompanha, em seus 140 minutos, parte da trajetória de Pierre Bourdieu (1930-2002), em especial suas atividades de sociólogo engajado em alguns movimentos sociais de seu tempo. O título, emblemático, refere-se a uma consideração realizada por ele logo no início, ao afirmar que “a sociologia serve como um esporte de combate e, como tal, serve para se defender, não deve servir para atacar”.

Mas, defender quem, do que? Defender aqueles indivíduos que se encontram em situações de perigo social real ou iminente diante dos poderes que os oprimem – os governos de direita e/ou de esquerda, que na prática operam de forma semelhante; a mídia, ao elaborar um discurso que ilumina determinadas dimensões sociais e obscurece outras; as associações internacionais trilaterais de crédito e fomento; os organismos patronais etc.

A sociologia pode ajudar a explicar-lhes melhor a situação que vivenciam, as causas sociais que conduziram seus destinos a essa condição de desfavorabilidade. Entretanto, explicar, descrever, mostrar não é solucionar nem transformar – daí, no entender de Pierre Bourdieu, a necessidade dos movimentos sociais organizados.

A fita é repleta de entrevistas concedidas por Pierre Bourdieu a pesquisadores, a programas radiofônicos e televisivos, além de registrar várias de suas participações em debates públicos em instituições acadêmicas e associações culturais vinculadas a outras entidades da sociedade civil. Não se excluem, ainda, reuniões de trabalho com sua equipe de pesquisadores e com seus auxiliares administrativos; aulas e exposições que integram seu métier de professor e rápidos flashes que o mostram em momentos de tensão e de relaxamento.

Pierre Carles não parece tão preocupado com a duração do filme, pois tudo o que considerou relevante nas andanças de Pierre Bourdieu acabou preservando na montagem: a longa explicação do sociólogo sobre sua noção de capital cultural; as considerações acerca de suas origens sociais e formação acadêmica: as conversas com outros intelectuais em que vai delineando seu método de trabalho, a “cozinha da pesquisa” e formas de artesanato intelectual; sua interpretação da dominação masculina, do papel do Estado e das reformas neoliberais, baseadas na dissociação do econômico e do social; o combate à tendência anti-intelectualista, que dá o tom em boa parte dos movimentos sociais e seu orgulho em se reafirmar um “agitprop” que tanto horror causou a intelectuais ligados ao governo socialista francês no início dos anos 2000.

Não se perde de vista, igualmente, extensa sessão de debates em um auditório de um banlieue parisiense, em que Pierre Bourdieu passa por maus momentos, recebendo críticas e reagindo, quando um dos participantes sai em sua defesa: “C’est Bourdieu, pas Dieu!”. E acrescenta bem humorado que em seu duro cotidiano eles também “tentam ser sociólogos, mas são vira-latas”.

Reafirmando que a única maneira de enfrentar tal situação adversa seria a organização de movimentos sociais com objetivos bem definidos, defende a necessidade dos sociólogos fazerem sua própria sociologia, fazerem autossocioanálise. “É fazendo a socioanálise da sua própria experiência que se pode servir sociologicamente. Aliás, o próprio trabalho da pesquisa é uma socioanálise […] Aprende-se muito sobre si mesmo […] Um professor aprende mais sobre seu inconsciente estudando o sistema escolar que estudando a obra de Freud”.

*Afrânio Catani é professor titular aposentado da Faculdade de Educação da USP e, atualmente, professor sênior na mesma instituição. Professor visitante na Faculdade de Educação da UERJ (campus de Duque de Caxias).

Publicado originalmente em Afrânio Mendes Catani; Maria Alice Nogueira; Ana Paula Hey; Cristina C. C. Medeiros (orgs.). Vocabulário Bourdieu. Belo Horizonte: Autêntica, 2017, p. 145-146.

Referência


La sociologie est un sport de combat
França, 2001, documentário, 146 minutos
Direção: Pierre Carles
Produção: Véronique Frégosi e Annie González
Montagem: Virginie Charif, Youssef Charifi, Claire Painchault e Bernard Sasia
Participação de: Pierre Bourdieu, Loïc Wacquant. Serge Halimi, Maria Andréa Loyola, Daniel Mermet, Rémi Lenoir, Patrick Champagne, Edward Saïd, Günter Grass.


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