A confusão que favorece a tirania

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por EUGÊNIO BUCCI*

A indústria da desinformação a serviço dos regimes de força não precisa construir credibilidade, apenas semeia o descrédito generalizado

Num artigo publicado em 11 de março de 2022 no jornal The Washington Post, a colunista Margaret Sullivan expôs com clareza singular uma das táticas mais insidiosas dos líderes autoritários. Especialista em mídia e imprensa, temas de suas colunas no Post, a jornalista demonstra que, para autocratas como Vladimir Putin, há algo de mais valioso do que fazer com que as pessoas acreditem neles: este algo de mais valioso é fazer com que as pessoas não acreditem em mais nada e em mais ninguém. Resumida assim, a fórmula parece um contrassenso. Como, afinal de contas, um tirano pode arregimentar apoio popular, se não faz por merecer a confiança irrestrita das multidões?

Antes de responder, lembremos que nós, aqui no Brasil, conhecemos de perto esse tipo de mando. Neste ponto, vamos nos afastar da linha de argumentação de Margaret Sullivan. Olhemos para o nosso país e vamos entender o contrassenso. Não temos aqui, nos trópicos, um sósia perfeito de Vladimir Putin, mas é inegável que anda nestas terras um personagem que almeja virar Putin quando crescer. Pois então: como é que esses sujeitos agregam seguidores?

Agora a resposta é fácil. Eles não ganham corações selvagens e mentes turvas porque se apresentem como cidadãos confiáveis, íntegros e de boa-fé. Definitivamente, não é assim que eles se apresentam. Eles mentem, e não precisam esconder que mentem. Eles mentem, todo mundo sabe que eles mentem, mas, como suas mentiras – às vezes cínicas, às vezes perversas – ostentam um potencial destruidor, é com eles mesmos que as falanges ressentidas cerram fileiras.

Líderes como Vladimir Putin (e seus imitadores) não precisam ser dignos de crédito irrestrito. Eles não precisam construir laços baseados na verdade e na honradez da palavra – basta que se mostrem brutais o suficiente para destruir todas as instituições do saber e do conhecimento que florescem na democracia (como a Universidade, a ciência, a justiça, as artes e a imprensa), pois, como não se cansam de repetir – e nisso seus adoradores acreditam fervorosamente –, essas instituições não passam de um amontoado de mentiras. Mentindo em nome de combater a mentira, eles arrebanham seus fiéis.

Para os tiranos, a prioridade não é conquistar a credulidade dos incautos, mas fazer com que o maior número de incautos não deposite mais um pingo de confiança em nenhuma instituição da democracia. Vieram para destruir. Seus apelos mais inflamados repousam não em projetos afirmativos, positivos, construtivos, mas na promessa de devastar qualquer resistência que encontrarem pela frente. É verdade que esses apelos costumam vir camuflados em retóricas aparentemente edificantes em torno de entidades mágicas como a “Pátria”, a “Grande Rússia”, “Deus”, “família” ou qualquer Shangri-lá que simbolize idílio ou virtude (sua fantasia de futuro é sempre a restauração de uma glória mística e militar que teria existido no passado), mas, no fundo, o que leva as sociedades a se entregarem a estes demagogos da força bruta é a paixão por dizimar o que, na democracia, tem parte com a verdade.

Voltemos, agora, à jornalista Margaret Sullivan. Ela nos lembra que a filósofa Hannah Arendt (1906-1975) já havia nos alertado, numa entrevista concedida há cinco décadas, para este truque maligno dos líderes autoritários. Em seu artigo “A nova tática de controle da Rússia é aquela que Hannah Arendt apontou há cerca de 50 anos”, ela recupera uma frase mais do que luminosa da pensadora alemã: “Se todo mundo sempre mente para você, a consequência não é que você acredite nas mentiras, mas sim que ninguém mais acredite em nada”.

É por isso que a indústria da desinformação a serviço dos regimes de força não se envergonha de espalhar falácias e fraudes. Ela não constrói credibilidade em ponto algum, não precisa disso, apenas semeia o descrédito generalizado. As fake news servem exatamente para incinerar as vias de acesso à verdade factual. O próprio conceito de verdade dos fatos vai se perdendo. As correntes de apoio ao presidente da República não falam em fatos, mas apenas em “narrativas”. Para elas, a verdade dos fatos não existe, só o que existe são versões. No credo das milícias virtuais, não há mais diferença entre juízo de fato e juízo de valor (entre fatos e opiniões). No lugar do pensamento objetivo e do debate racional, quem entra em cena é o fanatismo. Assim, a indústria da desinformação consegue, pouco a pouco, fazer com que, nas palavras de Hannah Arendt, “ninguém mais acredite em nada”.

Pronto: aí está o canteiro ideal para que modelos de inspiração fascista venham a florescer. “Com um povo assim”, dizia a filósofa (conforme lemos no artigo de Margaret Sullivan), “você pode, então, fazer o que quiser”. Se o povo se convencer de que todo enunciado que tinha o estatuto de verdade factual se reduz a impostura e manipulação, aclamará o primeiro maluco facínora que prometer atear fogo em tudo.

Logo, os pregadores das tiranias só precisam produzir confusão e mais confusão. O resto virá como consequência.

*Eugênio Bucci é professor titular na Escola de Comunicações e Artes da USP. Autor, entre outros livros, de A superindústria do imaginário (Autêntica).

Publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo.

 

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • Um estudo do caso Ailton Krenak1974__Identidade ignorada 21/07/2024 Por MARIA SILVIA CINTRA MARTINS: Prefiro sonhar com Krenak o parentesco com a natureza e com as pedras do que embarcar na naturalização do genocídio
  • Clarice Lispector no cinemacultura a paixão segundo g.h. 22/07/2024 Por LUCIANA MOLINA: Comentário sobre três adaptações cinematográficas da obra de Clarice Lispector
  • O princípio de autodestruiçãoLeonardo Boff 25/07/2024 Por LEONARDO BOFF: Qual ciência é boa para a transformação mundial?
  • Filosofia da práxis como poiésiscultura lenora de barros 24/07/2024 Por GENILDO FERREIRA DA SILVA & JOSÉ CRISÓSTOMO DE SOUZA: Fazer filosofia é, para o Poética, fazer filosofia contemporânea, crítica e temática
  • Que horas são no relógio de guerra da OTAN?José Luís Fiori 17/07/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: Os ponteiros do “relógio da guerra mundial” estão se movendo de forma cada vez mais acelerada
  • Apagão digitalSergio Amadeu da Silveira 22/07/2024 Por SÉRGIO AMADEU DA SILVEIRA: A catástrofe algorítmica e a nuvem do “apagão”
  • A disputa de Taiwan e a inovação tecnológica na ChinaChina Flag 20/07/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: A China já é hoje a líder mundial em 37 das 44 tecnologias consideradas mais importantes para o desenvolvimento econômico e militar do futuro
  • A produção ensaística de Ailton Krenakcultura gotas transp 11/07/2024 Por FILIPE DE FREITAS GONÇALVES: Ao radicalizar sua crítica ao capitalismo, Krenak esquece de que o que está levando o mundo a seu fim é o sistema econômico e social em que vivemos e não nossa separação da natureza
  • A radicalidade da vida estéticacultura 04 20/07/2024 Por AMANDA DE ALMEIDA ROMÃO: O sentido da vida para Contardo Calligaris
  • A questão agrária no Brasil — segundo Octávio IanniJose-Raimundo-Trindade2 19/07/2024 Por JOSÉ RAIMUNDO TRINDADE: As contribuições de Ianni podem auxiliar a reformular o debate agrário brasileiro, sendo que as obras do autor nos apontam os eixos para se repensar a estrutura fundiária brasileira

PESQUISAR

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES