É um equívoco acreditar que João Gilberto e a Bossa Nova se equivalem. Ele foi muito além, corrompendo por dentro os princípios desse movimento
Por Henry Burnett*
Muitos autores se debruçaram sobre a vinculação histórica entre a bossa nova e o projeto nacional-desenvolvimentista idealizado a partir de Brasília, isso é hoje quase um lugar comum da crítica musical e das ciências sociais. O que precisamos entender, e ainda gastar muita tinta, é o percurso que nos levou daquela identificação alvissareira original que nutria o ponto mais alto do nosso otimismo civilizacional, à total inversão de perspectiva, restando uma incompatibilidade irreconciliável entre a política e a estética musical do período.
É como se o bolsonarismo tivesse a capacidade de derreter o concreto que Oscar Niemeyer fez levitar e moldasse uma muralha sem janelas que evitasse a entrada de todos os indesejados da nação, quais sejam, negros, índios, LGBTQs, estudantes, professores, artistas etc.
Difícil pensar em João Gilberto enjeitado, mas arrisco dizer era isso que ele era, e bem antes da ascensão do autoritarismo eleito, e não apenas por partidários da violência, mas por uma parcela significativa dos espectadores, milhares dos quais talvez nunca tenham ouvido o cantor. Não foi preciso um plano de ação para consolidar seu gradativo desaparecimento, para que o silêncio fosse total, para que sua música fosse ignorada junto com inúmeros direitos do povo brasileiro.
O bolsonarismo não é apenas o resultado de um esvaziamento político, de um movimento de classe que juntou pontas aparentemente inconciliáveis da direita e cujo resultado é um misto de força e falta de rumo de alguns segmentos ideológicos conservadores. Com ele vem à tona uma bestial falta de sensibilidade, uma violência sem rosto definido que também é parte do que somos e que parece ingênuo ainda reivindicar como um traço de identidade brasileira.
João Gilberto foi e será ainda analisado de muitas formas. Esta que arrisco aqui é apenas uma delas, titubeante como todas, arriscada como qualquer outra que tenta se aproximar de seu legado e de sua dimensão.
A necessidade da música hoje
Repensar sua obra a partir deste momento histórico leva a uma inescapável conclusão: o Brasil atual não precisa de sua música, pois ela pertence aos domínios da resistência crítica. Não é fácil medir essa necessidade.
Chico Buarque, por exemplo, tensiona a corda entre sua obra e uma retidão ideológica inamovível. Sentimos fundo quando uma de suas canções desloca nosso mero ato de ouvir, como no caso de Sinhá (parceria com João Bosco) e Caravanas, esta talvez seja a canção mais importante da década junto com Pacto de sangue (Jards Macalé e Capinan); são canções que se fundem com a história passada e presente, diagnosticam e deslocam nossa percepção do real.
Alguns artistas desenvolvem e expressam tal crítica dentro da linguagem da canção, por necessidade e urgência, mas esse não foi o caso de João Gilberto, pelo menos não de forma direta e incisiva, como em Chico e Macalé, para ficar em apenas dois exemplos entre tantos possíveis.
Ainda assim, não sendo uma crítica direta e facilmente notada, é difícil encontrar um contemporâneo, e não apenas na música, que não preste reverência à estética do mestre, cuja influência tornou-se um clichê de tão repetida. Isso vale tanto para os canônicos quanto para cancionistas abaixo dos 50, chegando às novíssimas gerações renovando timbres e sonoridades, mas fieis àquela aparente simplicidade inventada por João. Em resumo, o traço estético-político de sua obra fomenta, desde sempre, obras engajadas e comprometidas com o país, cada uma a seu modo. É a prova de que há muitas formas de se fazer política.
Penso que a sua passava fundamentalmente pelo respeito e tratamento rigoroso do repertório esquecido de compositores que teriam continuado proscritos pelo mesmo mecanismo que exaltava a bossa nova como novidade avassaladora contra o passado arcaico da canção, criando uma divisão entre o velho e o novo, o moderno e o atrasado, polaridade que João parece ter desde sempre rejeitado.
Ao contrário, defendeu aquele período criativo mais recuado reavivando seus compositores sepultados e mostrando a integridade da canção popular urbana do século XX, hierarquicamente indiscernível em suas interpretações. Ao redefini-las, ele reescreveu a história da canção urbana, implodindo o que poderíamos chamar de “historicismo musical”, que tenderia a privilegiar o sucesso e a exposição como critérios de reconhecimento. Não há paradoxo maior quando pensamos na bossa nova como ruptura com o passado.
A trajetória de João Gilberto
Sabemos mais ou menos como João Gilberto chegou à síntese imortalizada no par violão/voz que o consagrou. Inicialmente emulou seus cantores preferidos, Orlando Silva, por exemplo, atuou em grupos vocais, como os Garotos da Lua e outros, mas logo abandona essas experiências e “desaparece”, como sabemos através das reconstruções cronológicas de sua vida e obra.[i]
Naquele momento um elemento fundamental de sua criação se impõe em definitivo: a solidão. Foi o recolhimento, o cultivo de si, a atenção minimalista que parecem ter se conjugado na forma de expressão mais plena. Compôs pouco, pequenos “mini-manifestos” como Bim bom, Hô-Bá-Lá-Lá, algumas canções esparsas, como Você esteve com meu bem? (Veja o registro de todas as suas composições por Itamara Koorax e Juarez Moreira em The Complete João Gilberto Songbook, Motema Music, 2009; 12 no total). Suas composições não são o bastante para entender o todo do feito, embora sejam emblemáticas e fundamentais.
O recolhimento que o levou ao acabamento formal máximo tornou-se a base de um comportamento reativo estúpido por parte da imprensa e de parte do público. Tirando os críticos que, não raro, possuíam laços de amizade com João, a imprensa amplificou uma opinião pública que zombava da conduta (anti-)social de João Gilberto, de sua “loucura”, de suas manias, enfim, de sua solidão, um direito que foi gradativamente sendo proibido depois da hegemonia das redes sociais, como mostrou a perseguição a Belchior, que “sumiu” sem avisar.
Durante décadas, a maioria das notícias aprofundava esse lugar-comum, criando uma caricatura, uma personagem excêntrica, uma aberração que destoava de nossa vocação solar exibicionista. No fundo, talvez não fosse possível compreender como o inventor da bossa nova podia ser tão pouco bossa-novista – mais um equívoco: acreditar que João Gilberto e o movimento da bossa nova se equivalem ou se esgotam um no outro. Ele foi muito além dos princípios que orientavam o movimento, de certo modo os corrompeu por dentro.
Respeitando os critérios históricos que colocam os três primeiros discos como epicentro de sua revolução musical (Chega de saudade, Odeon 1959; O amor, o sorriso e a flor, Odeon 1960 e João Gilberto, Odeon 1961), considero que ele só atingiria o nível máximo de expressão em discos ulteriores, como o “álbum branco” (João Gilberto, Polydor 1973; João, Polygram 1991 e João voz e violão, Universal Music 1999). Claro que isso está ligado com uma audição tardia, de quem não foi impactado pela trilogia inicial no calor da hora.
Além disso, há que se ter em conta todos os processos de tratamento técnico que João julgou abusivos e corrosivos para o som final dos discos-emblema da bossa nova, uma batalha que durou toda sua vida, desde que ele rejeitou solenemente a alcunha de “Mito” – o paralelo com Jair Bolsonaro é digno de nota –, título da famosa compilação que ele nunca perdoou ter sido forjada sem o seu consentimento. Os três álbuns tardios, sem dúvida, tem apuro técnico superior, sobretudo o de 1999, único registro de voz e violão gravado em estúdio, que teve como técnico de gravação Antônio “Moogie” Canázio. João caminhava lentamente em busca do som e da adequação voz/violão perfeitos, como um caminho vital.
Uma pesquisa rápida nos ajuda a pensar como a busca obsessiva de João Gilberto pela captação perfeita de sua execução não podia ser compreendida, apenas ridicularizada. Em 2003, na coluna ooops do jornal Folha de S. Paulo, lemos:
“João “Resmungão” Gilberto.
No último dia 24 de julho, a Folha Online e o UOL publicaram com exclusividade a notícia de que o cantor e compositor João Gilberto ficou enfurecido quando fazia um show Hollywood Bowl [sic], em Los Angeles (após 40 anos), porque os organizadores não haviam cumprido um item do contrato…
João “Rabugentão”.
O documento previa que João Gilberto cantaria em um microfone austríaco AKG modelo 414 (que custa mais de 2 mil euros = R$ 6 mil reais). O modelo usado no palco, no entanto, era bem mais antigo e João ameaçou deixar o megateatro de 17 mil lugares lotado, no meio do show.
João “Prestigiadão”.
Bem, a reportagem chegou à Áustria. Mais precisamente na fábrica da AKG, conforme informou esta semana à coluna o representante da empresa no Brasil. Lisonjeada com a deferência do lendário músico brasileiro com a marca, a AKG decidiu criar uma série de microfones exclusivamente para ele. O novo modelo vai se chamar AKG-414JG (JG, claro, de João Gilberto).
João “Reclamão”. Agora, para o João ficar realmente feliz só falta inventarem uma série especial de caixas acústicas para retorno de palco, uma linha exclusiva de mesas, uma produção especial de cabos e plugs e, claro, o nascimento de um técnico de som com poderes paranormais”.[ii]
Não julgo que Ricardo Feltrin, então editor-chefe da Folha Online, tenha escrito isso por mal, a ironia não era exclusividade. Na verdade, ele apenas amplificava e reproduzia um anedotário que já era, em 2003, bastante conhecido e que, obviamente, como se diz, vendia jornal. Na meca do show business, Los Angeles, devia ser quase incompreensível que a sonorização não estivesse a contento.
Não era a primeira e nem seria a última vez que João Gilberto reclamaria do som. Poderia utilizar um sem número de textos sobre essas cenas, que até no YouTube podem ser encontradas, mas o que me interessa no exemplo é o final do comentário, por conta de um fato também incorporado ao anedotário e que ganha hoje ares de profecia. João encontrou, naquele mesmo ano do concerto no Hollywood Bowl, o “técnico de som com poderes paranormais”; chama-se Ken Kondo e morava do outro lado do mundo, no Japão.
João Gilberto no Japão
Foi exatamente em 2003 que João conheceu Kondo, japonês que sonorizou o concerto João Gilberto in Tokyo, comercializado em CD no Brasil pela Universal desde 2004 e último álbum lançado no país. Desde então, é o que se ouve dizer, o técnico virou item do contrato de João Gilberto. Sempre que fosse se apresentar, o contratante precisaria mandar buscar Kondo no Japão. Em 2008, João fez sua última apresentação no Brasil, no Auditório Ibirapuera, e o sonoplasta nipônico estava lá.
Entrevistado por Ivan Finotti, editor do extinto caderno Folhateen, da mesma Folha de S. Paulo, Kondo disse que João é “uma pessoa simples. E o que temos no palco é simples. São dois microfones”. Toshihiko Usami, diretor de palco que trabalhava em parceria com Kondo (o 02, inciso 1 do contrato), relata na mesma entrevista a Finotti que “é um som de violão bem baixinho [fala baixinho] e o som do vocal é bem baixinho também [começa a sussurrar]. Temos que amplificar isso e há algumas dificuldades quando isso acontece”.
Usami diz ainda que “nós mixamos os dois microfones de uma forma para o monitor e de um jeito diferente para o P.A., e reitera, “como eu mencionei, o som não é alto. O monitor não pode estar muito alto ou vai haver feedback. O que temos sempre que pensar é, durante o todo o show, onde está o limite para o monitor e onde está o limite para o P.A. E tudo muda quando as pessoas chegam e lotam o lugar. Nessa hora, todo o som e eco do local ficam diferentes”.[iii]
Apesar da dificuldade, a dupla compreendeu, na última fase produtiva de João Gilberto, o que afinal o mestre queria ouvir no palco, algo que ninguém conseguira nas décadas anteriores, nem nos EUA, reconhecidos por suas gravações antológicas que resistem ao tempo, e muito menos no Brasil. Acontece que o que é simples para um japonês não é o que nós entendemos por simples.
Tecnicamente Kondo e Usami utilizavam três legendários microfones “condenser” AKG 414 (JG?), um banco e um apoio para os pés, de modo que João pudesse deixar o violão no ângulo exato, em harmonia não apenas com os microfones, mas também com seu corpo. Quem está no palco não ouve o que a plateia ouve através do P.A., o que exige dois níveis de confiança, pois ninguém duvida que o zelo com o som não era uma questão de vaidade, mas de respeito com quem o assistia. Em geral utilizados para gravações em estúdio, os 414 levavam ao limite uma exigência bem antiga, quando João pediu pela primeira vez dois microfones para gravar, um para a voz e outro exclusivo para o violão, para desespero dos técnicos da época.
Imaginemos agora transportar o ambiente de uma sala de gravações, acusticamente preparada e isolada, para um auditório onde cabem milhares de pessoas. Não há nada de simples nisso, é antes uma questão de ouvir bem. São microfones que captam sons a muitos metros de distância. Colocados um acima do outro, é como uma bolha sonora dupla, atravessando uma a outra o tempo inteiro. A palavra-chave é equilíbrio.
Todavia, não se trata apenas de técnica, nem sequer de excentricidade, pois o AKG 414 não é dos microfones mais caros do mundo. Tom Jobim disse à cantora Joyce que a recepção da bossa nova no Japão era fácil de entender. Joyce relembrou a fala de Tom em uma entrevista para a revista Época. “Ele dizia que bossa nova é sutil e delicada como o Japão, e é exatamente isso”. Bingo!
Lembremos outro elemento, ainda sobre a questão técnica. João Gilberto utilizou diversos modelos de violão ao longo de sua carreira, mas se atentarmos para o encarte do CD João, de 1991, há quase 30 anos, podemos ver repousado sobre um tapete (persa?,) dentro da sala de gravação, um violão Di Giorgio Tárrega, que João passou a utilizar de certo momento em diante e que nunca mais abandonaria, até o último registro, em Tóquio.
O modelo estabeleceu o limite do aprimoramento sonoro que ao longo dos anos foi sendo mais e mais refinado. O texto mais interessante que li sobre este violão foi escrito por Fernando Romeiro, que traz informações preciosas colhidas na loja da Di Giorgio no bairro de Santana, em São Paulo.[iv] O modelo teria sido construído no final da década de 1960, e desde 1969 estaria com João.
São informações que, em geral, interessam aos músicos, mas nesse caso é essencial. Aderbal Duarte, compositor, arranjador e violonista, informa no texto de Romeiro que o Tárrega de João não tem nada de especial, pois tendo experimentado o instrumento percebeu que o violão teria até mesmo imperfeições, cordas trastejando e outros pequenos problemas. A verdade é que o modelo pode ser encontrado ainda hoje, novo, fabricado pela mesma Di Giorgio, mas são instrumentos distintos.
Sabemos que nas décadas passadas esses instrumentos, muitas vezes, eram construídos por um único luthier, saíam da fábrica com uma discreta assinatura de quem trabalhou neles, ainda que sem maiores garantias de procedência; ainda hoje podemos encontrar modelos assinados, embora a luteria brasileira esteja muito a frente das fábricas tradicionais, em sonoridade e acabamento. Não é uma característica na indústria brasileira, as guitarras Fender também são feitas em linha de montagem na maioria absoluta dos casos. Exceção às “Custom Shop” e aos modelos de luthiers, como as Telecasters assinadas por J. W. Black, que podemos ver nas gravações solo de Bill Frisell, por exemplo.
Poderíamos perguntar por que um músico internacionalmente respeitado não utilizava, por exemplo, um violão de luthier? Quantos artesãos não dariam tudo para construir esse violão dos sonhos com as melhores especificações sob medida para João Gilberto? Seria a opção por um violão brasileiro imperfeito mais uma idiossincrasia? Ou uma sutil forma de reverenciar nossas mazelas? Ou seu Tárrega tinha de fato o som ideal?
Impossível saber. O que podemos notar é que o violão de João Gilberto, sobretudo no registro em Tóquio, tem um som extremamente equilibrado, sem excessos, sem destaques nas primas (agudas) ou nos bordões (graves), enfim, um instrumento aparentemente perfeito para a composição do ambiente de acompanhamento do canto falado de João; nacionalismos à parte. Não é um violão de concerto, com projeção sonora etc., é um violão – tomadas as devidas proporções – que usaríamos numa roda de viola com os amigos.
O violão não vinha sendo usado nas últimas décadas por acaso, era o casamento perfeito com a voz à beira do sussurro como muitas vezes se ouve. De certa maneira, o cultivo de um violão como este é mais um ensinamento anti-fetichista do mestre zen. Mas, para aqueles que, como eu, amam os instrumentos e suas histórias, vale dizer que João não utilizava mais, salvo engano, o encordoamento La Bella 850-B, mas o que parece ser um aprimoramento dessas cordas pouco usadas por quem toca violão de nylon, com as primas pretas e os bordões dourados; o som pastoso, uniforme, era simplesmente ideal.
Ele parece ter optado ao final, em sua busca infinita, pelo encordoamento Folksinger 830, também da marca La Bella, que tem como “endorser” outro velho sábio, Willie Nelson. As primas pretas e os bordões dourados agora receberam leves ajustes de tensão e “ball-end”, pequenas bolas que dispensam o trançado das cordas no cavalete, como no sistema das cordas de guitarra elétrica, garantindo maior sustentação na afinação. Como é possível saber isso? Olhando atentamente para o cavalete onde se fixam as cordas. Mas onde podemos ver isso com esse nível de detalhe?
O canto do cisne
Todos nós que passamos a vida inteira ouvindo João Gilberto incontáveis vezes, que esperamos pacientemente um registro novo, um vídeo disponibilizado no YouTube por alguém em algum lugar do mundo, que nos refestelamos com gravações caseiras de péssima qualidade somente pelo prazer de ouvir João tocando, fomos surpreendidos, é meu caso, pela notícia de que seu último concerto em Tóquio em 2006, gravado no Hall A do Tokyo International Forum nos dias 8 e 9 de novembro, tinha sido gravado em vídeo e estava sendo lançado em Blu-ray, no Japão – aquele lançado em CD em 2004 foi o registro do primeiro concerto em Tóquio um ano antes, em 2003, e que, para qualquer apreciador de João, já era o registro mais perfeito de sua música.
Minha reação foi de quase desespero. Com tiragem limitada, seria quase impossível conseguir comprar o Blu-ray no Brasil. Na primeira sondagem, encontrei uma oferta por 499,99… Euros. Corri para a internet e encontrei um teaser de pouco menos de um minuto,[v] com João interpretando “Morena boca de ouro”, de Ary Barroso.
Foi um choque. Não havia nenhum registro parecido. O melhor que já tinha visto foi gravado, aparentemente de modo amador ou não autorizado, mas com cuidado suficiente, naquele último concerto no Auditório Ibirapuera, disponibilizado na íntegra no YouTube.[vi] Mas nada comparável ao que se via no fragmento do Blu-ray. Os japoneses registraram o último concerto em Tóquio com o que havia de mais moderno em som e vídeo do planeta. Aqueles poucos segundos eram suficientes para saber disso. A atenção aos detalhes das mãos, do violão, o foco na tez envelhecida de alguém que eles reverenciavam foi registrada com um realismo primoroso.
Em alguns dias, começou a aparecer no YouTube alguns vídeos extraídos do Blu-ray, em boa resolução, 720p, já era um alento – aparentemente o formato Blu-ray nem sequer “pegou” no Brasil. Pude ver na íntegra os vídeos de “Chega de saudade” (Tom Jobim e Vinicius de Moraes), “Retrato em branco e preto” (Tom Jobim e Chico Buarque) e “Águas de março” (Tom Jobim), esta numa versão que ainda vai render muitas teses, com João praticamente recitando a letra em longos trechos, retomando e saindo da melodia como nunca antes, um desbunde.
De fato, estamos diante do seu canto do cisne, mas muito longe da lenda antiga que diz que o cisne branco cantaria, perto da hora de sua morte, uma bela e triste canção depois de uma vida em silêncio. Se o silêncio de João nunca foi compreendido em seu país, é porque estamos longe de qualquer contenção, de qualquer possibilidade de ouvir de modo integral, como nossos irmãos japoneses.
Se ouvimos a gravação no Ibirapuera é impossível não notar o barulho excessivo da plateia, sua vontade de interação, a emoção à flor da pele que nos identifica; mas quando ouvimos o CD de 2004, em Tóquio, mesmo quando as canções mais conhecidas começam e são identificadas, a plateia aplaude por quase incontáveis 1,5 segundo, como se qualquer coisa além disso encobrisse o essencial; parece que os aplausos são editados de tão breves. São duas formas distintas de ouvir e cultivar.
A sensação é que João escolheu o Japão para se despedir porque encontrara na terra distante não apenas o respeito que nunca recebeu aqui, mas sobretudo porque seu projeto estético se realizava finalmente com tudo o que ele cultivou ao longo da vida. Ao invés de um canto de despedida, o que se ouve é um João arrebatado, com domínio absoluto da execução e da interpretação, senhor de sua arte.
Mas não se trata apenas de cuidado técnico, de resto encontrado nos grandes teatros mundo afora, inclusive no Brasil. Penso ser de outra ordem essa reverência, como apontou Tom Jobim. Estamos diante de uma conexão que talvez não pudesse acontecer em outro lugar a não ser no Japão, mas distinta das cenas que conhecemos daquele povo quando vemos as declarações de apreço por nossa música, como os grupos de choro executando à perfeição Pixinguinha ou Jacob do Bandolim, ou pessoas aprendendo português não como língua comercial, mas como língua sentimental, simplesmente para entender e cantar nossas canções; são declarações que não vem de hoje.
Mas com João a contemplação atingiu um patamar distinto. Em um dos concertos, ao término da apresentação, João foi aplaudido por 25 minutos, uma despedida emocionante, honrosa, digna de um dos grandes artistas do século XX. Visto daqui, de um país arruinado pela violência, caminhando a passos largos para a barbárie, só nos resta a vergonha.
*Henry Burnett é professor do departamento de filosofia da Unifesp.
Notas
[i]Ver Walter Garcia (org.). João Gilberto. São Paulo: Cosac Naif, 2012.
[ii] https://www1.folha.uol.com.br/folha/colunas/ooops/ult340u662.shtml.
[iii] https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1508200841.htm.
[iv] https://pt.slideshare.net/gabrielvandresen1/106528103-violaojg.