Por RENATO ORTIZ*
O volume das interações torna-se a tal ponto estridente que é necessário sobreviver ao ensurdecimento das informações
Levantei cedo, tomei o trem-bala e cheguei a Kyoto no final da manhã; felizmente Yoshino foi prudente, enviou-me por fax, em japonês, as instruções para eu chegar ao Nichibunken. O chofer de táxi não teve problemas em encontrá-lo, uma jovem estava à minha espera, foi gentil, ciceroneou-me pelo centro, almoçamos juntos, apresentou-me a biblioteca e emprestou seu cartão magnético para eu fazer algumas fotocópias, instruiu-me ainda como chegar ao hotel “Oaks” na parte central da cidade.
O International Research Center for Japanese Studies é imponente, uma construção enorme, exala riqueza, fica fora da cidade no alto de uma colina. Ambiente bucólico, mata e pássaros. O edifício contém uma grande biblioteca, salas de trabalho e conferência, escritórios para os pesquisadores, teatro, onde esporadicamente se encena peças nô e kabuki. Há ainda um complexo para o alojamento dos professores visitantes e os escritórios do pessoal administrativo.
Foi construído no estilo moderno, é equipado com computadores, bases de dados e material para projeção de vídeos, slides, filmes. O instituto atua como unidade de pesquisa, não há docência, possui um quadro fixo de pesquisadores e recebe visitantes, além de estudantes de doutorado. Pagam regiamente aos professores convidados; fui informado que a qualquer momento poderia apresentar minha candidatura por três a seis meses. O centro impressiona pelo tamanho e as facilidades oferecidas ao pesquisador, mas tenho dúvidas em relação a esse tipo de empreendimento. Isolar o trabalho intelectual no alto de uma colina seria recomendável, as boas ideias floresceriam melhor em um ambiente tão rarefeito?
O trabalho intelectual se realiza no texto, sem ele as ideias flutuam em sua abstração, a escrita as traduz em realidade palpável. Trata-se de um artesanato no qual as palavras lapidam o pensamento. Ele possui ainda uma dimensão feminina, encerra muito da dicotomia masculino/feminino, esquerda/direita, que Robert Hertz apreciava; nos remete aos afazeres domésticos, arrumar a casa é quase homólogo a arrumar a cabeça. Particularmente no que diz respeito a uma atividade específica: a costura.
Costurar requer habilidade, saber que a diferencia de atividades mais simples como limpar a casa. Somente através da prática acumulada pacientemente ao longo dos anos é que se pode chegar a compor o tecido final. Aptidão que expressa a individualidade e a experiência de cada um. Colocar a agulha na linha, combinar os panos, realizar o corte, são operações delicadas, exigem cuidado e concentração.
Nesse sentido, a expressão “costurar as ideias” é reveladora de uma prática que sabiamente as mulheres cultivaram através dos séculos. Diz-se que as ideias estão descosturadas da mesma maneira que uma roupa está mal acabada, as partes destoando do todo. Entretanto, há uma diferença entre as costureiras e os alfaiates. Esses são especialistas em roupas masculinas, trabalham como esses cientistas sociais que costuraram com um número limitados de palavras. Pessoas cujo ofício resume-se a ideias fixas.
Enquanto artesanato o trabalho intelectual encerra uma dimensão de individualidade, diriam os marxistas, seu resultado não se encontra alienado daquele que o realiza. O autor, na sua solitude, diante da página em branco, está condenado à incerteza, embora a especificidade de seu ato não coincida inteiramente com o isolamento do lugar no qual ele se encontra.
Creio que a indistinção entre o ato em si e o espaço no qual ele acontece alimenta a ilusão do recolhimento. Essa é a qualidade que atribui à figura do escritor certo exotismo. Como os monges em suas abadias ele se refugiaria da tentação da carne, exilado, sua inspiração e labor se encontrariam (um pouco como santo Antão, imortalizado nas telas de Salvador Dali e Max Ernst).
Porém, esse ascetismo hiperbólico, na verdade figurado, desconhece que a escrita é em si mesma uma forma de distanciamento do mundo, artifício que nos retira do lugar. Pouco importa onde a realizamos – no deserto, longe das perdições, ou em meio à multidão. A conjunção entre solidão e escrita é um traço imagético petrificado ao abrigo das intempéries, quero dizer, das mudanças; ele se constitui assim em continuidade que se faz perene.
Persiste, mesmo nos tempos atuais, quando as tecnologias de comunicação se tornam móveis e omnipresentes. Por isso, para contornar o dilema de todo escritor, a distração, um novo artefato foi inventado. A vida no universo dos bits assenta-se em um princípio fundamental: a conexão; ela é o recurso técnico que propicia a interação entre as pessoas. Estar conectado é existir. Há, no entanto, um problema: o volume das interações torna-se a tal ponto estridente que é necessário sobreviver ao ensurdecimento das informações.
A máquina Hemingwriter é o avesso de tudo isso, sua intenção é nos distanciar do ruído ambiente. Foi desenhada exclusivamente para os escritores. Seu formato, inspirado na velha máquina de escrever, imita a mesma disposição das teclas, mas com um visor no qual aparecem as palavras datilografadas/digitalizadas. As funções cortar e colar estão disponíveis facilitando o manuseio do texto. Possui wi-fi e bluetooh, com isso o que se escreve é automaticamente gravado e enviado para a nuvem, podendo posteriormente ser retrabalhado no computador ou em outro aparelho digital.
Entretanto, o autor encontra-se desligado dos distúrbios a sua volta, o acesso à internet é bloqueado. Sua atenção se dirige ao texto, unicamente a ele, e a tentação da distração é inteiramente anulada. A resposta tecnológica apresentada conforta e estimula, traz com ela a promessa que o mundo das ideias, como imaginava Platão, estaria ao alcance dos dedos, baixaria dos céus, via download, nas páginas a sua espreita. A solidão da escrita seria assim a garantia da platitude de sua própria verdade.
*Renato Ortiz é professor titular do Departamento de Sociologia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de O universo do luxo (Alameda).
Publicado originalmente no blog da BVPS.
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