O regime empresarial-militar brasileiro (1964-1985)

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por Fábio Konder Comparato*

O golpe de 1964 fundou-se na aliança das Forças Armadas com os latifundiários e os grandes empresários, nacionais e estrangeiros. Esse consórcio político engendrou o terrorismo de Estado.

Origens do golpe

Na gênese do golpe de Estado de 31 de março de 1964, encontramos a profunda cisão lavrada entre os dois grupos que sempre compuseram a oligarquia brasileira: os agentes políticos e a classe dos grandes proprietários e empresários. Até então, os conflitos entre ambos eram sempre resolvidos por meio de arranjos conciliatórios, segundo a velha tradição brasileira. Nos últimos anos do regime constitucional de 1946, porém, essa possibilidade de conciliação tornou-se cada vez mais reduzida. A principal razão para tanto foi o agravamento do confronto político entre esquerda e direita no mundo todo, no contexto da Guerra Fria e em especial, na América Latina, com a Revolução Cubana.

Deve-se notar, aliás, que naquela época boa parte das nossas classes médias havia abandonado sua tradicional colocação à direita do espectro político, passando a apoiar as chamadas “reformas de base” do governo João Goulart: a reforma agrária, a bancária, a tributária e a política de repúdio ao capital estrangeiro. Era natural, nessas circunstâncias, que os grandes proprietários e empresários, nacionais e estrangeiros, temessem pelo seu futuro em nosso país e se voltassem, agora decididamente, para o lado das Forças Armadas, a fim de que estas depusessem os governantes em exercício, substituindo-os por outros, associados aos potentados privados, segundo a velha herança histórica.

Uma vez perpetrado o golpe de estado, manifestaram-se desde logo a favor dele a Igreja Católica e várias entidades de prestígio da sociedade civil, como a Ordem dos Advogados do Brasil. O que o empresariado não levou em conta, todavia, era o fato de que a corporação militar amargurava, desde a proclamação da República, uma série de tentativas mal-sucedidas para livrar-se da subordinação ao poder civil. Não seria justamente naquele momento, quando chamadas a salvar o grande empresariado do perigo esquerdista, que as Forças Armadas iriam depor os governantes em exercício e voltar em seguida à caserna.

Na preparação do golpe, o governo norte-americano teve uma atuação decisiva. Já em 1949, um grupo de altos oficiais do Exército Brasileiro, entre os quais o general Cordeiro de Farias, influenciados pelos Estados Unidos, criou, nos moldes do National War College norte-americano, o Instituto de Altos Estudos de Política, Defesa e Estratégia, a seguir denominado Escola Superior de Guerra. Com o aprofundamento da chamada Guerra Fria e, sobretudo, logo após a tomada do poder em Cuba por Fidel Castro, esse instituto de ensino passou a formar a oficialidade brasileira para impedir a assunção do poder pelos comunistas; assim compreendidos todos os agentes políticos que, embora não filiados ao PCB, manifestassem de alguma forma, oposição aos Estados Unidos.

Pode-se afirmar que todos os oficiais militares que participaram do golpe de 1964 foram alunos da Escola Superior de Guerra. Os cursos lá administrados, aliás, não eram reservados apenas aos militares, mas abertos também a políticos e empresários de destaque. De 1961 a 1966, atuou como embaixador norte-americano no Brasil Lincoln Gordon, que já em 1960 havia colaborado na implantação da Aliança para o Progresso, programa de ajuda oferecido pelos Estados Unidos aos países da América Latina, a fim de evitar que eles seguissem o caminho revolucionário de Cuba.

Na preparação do golpe, Gordon coordenou a criação no Brasil de entidades de propaganda política, como o IBAD – Instituto Brasileiro de Ação Democrática e o IPES – Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais. Sabe-se, aliás, por uma gravação depois divulgada, que já em 30 de julho de 1962 Lincoln Gordon discutiu com o presidente Kennedy, na Casa Branca, o gasto de US$ 8 milhões para “expulsar do poder, se necessário”, o presidente João Goulart.

Como arma decisiva, o governo norte-americano – ao que parece a pedido dos militares brasileiros golpistas – desencadeou em março de 1964 a Operação Brother Sam, consistente em uma força-tarefa naval composta de um porta-aviões, quatro destróieres e navios-tanques para exercícios ostensivos na costa sul do Brasil, além de cento e dez toneladas de munição.

A aliança das Forças Armadas com os detentores do poder econômico privado

Ao assumirem o comando do Estado, os chefes militares não hesitaram, ao longo dos anos, em mutilar o Congresso Nacional e o Judiciário: 281 parlamentares foram cassados e três ministros do Supremo Tribunal Federal aposentados compulsoriamente. Os governantes militares fizeram questão de submeter à sua dominação absoluta, durante as duas décadas do regime, o conjunto dos integrantes do poder civil, como uma espécie de desforra pela longa série de frustrações políticas por eles, homens de farda, sofridas desde o final do século XIX. É preciso reconhecer que a grande maioria dos agentes públicos, poupados pela repressão instaurada após o golpe, colaborou desonrosamente no funcionamento deste.

O novo regime político fundou-se na aliança das Forças Armadas com os latifundiários e os grandes empresários, nacionais e estrangeiros. Esse consórcio político engendrou duas experiências pioneiras na América Latina: o terrorismo de Estado e o neoliberalismo capitalista. A partir do exemplo brasileiro, vários outros países latino-americanos adotaram nos anos seguintes, com explícito apoio dos Estados Unidos, regimes políticos semelhantes ao nosso.

Um dos setores em que a colaboração do empresariado com a corporação militar mais se destacou foi o das comunicações de massa. As Forças Armadas e o grande empresariado necessitavam dispor de uma organização capaz de desenvolver, em todo o território nacional, a propaganda ideológica do regime autoritário, com a constante denúncia do perigo comunista e a difusão sistemática, embora sempre encoberta, dos méritos do sistema capitalista.

Os chefes militares decidiram, para tanto, fixar sua escolha no Sistema Globo de Comunicações. Em 1969, esse grupo possuía três emissoras (Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte). Quatro anos depois, em 1973, ele já contava com nada menos do que onze. A dominação empresarial do sistema de comunicações de massa continuou a subsistir, uma vez encerrado o regime autoritário, e persiste até hoje. A Constituição Federal de 1988 dispõe em seu art. 220, § 5º que “os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio”. Esse dispositivo constitucional, como vários outros do mesmo capítulo, permanece ineficaz por falta de regulamentação legal.

O casamento entre a corporação militar e o empresariado continuou inabalado, enquanto subsistiram grupos de oposição decididos a desenvolver, com ou sem apoio cubano, a luta armada contra o regime autoritário. No Brasil, os grandes empresários não hesitaram em financiar a instalação de aparelhos de terror estatal. No segundo semestre de 1969, por exemplo, o II Exército, com sede em São Paulo, lançou a Operação Bandeirante – embrião do futuro DOI-CODI (Destacamento de Operações Internas e Centro de Operações de Defesa Interna) – destinada a dizimar os principais opositores ao regime.

Reunido com banqueiros paulistas no segundo semestre daquele ano, o então ministro da economia Delfim Neto pediu e obteve sua contribuição financeira, alegando que as Forças Armadas não tinham equipamento nem verbas para enfrentar a “subversão”. Ao mesmo tempo, a Federação das Indústrias de São Paulo – FIESP convidou as empresas que a integravam a colaborar no empreendimento. Assim, enquanto a Ford e a Volkswagen forneciam automóveis, a Ultragás emprestava caminhões e a Supergel abastecia a carceragem militar com refeições congeladas.

A quebra de confiança do empresariado no poder militar

A lua de mel entre os grandes empresários e as Forças Armadas não durou muito tempo, porém. Em 12 de dezembro de 1968, exatamente na véspera do lançamento do Ato Institucional nº 5, que suspendeu o habeas corpus nos casos de crimes políticos e contra a segurança nacional, o chefe da Polícia Federal impediu a publicação, no jornal superconservador O Estado de São Paulo, do editorial em que o diretor Júlio de Mesquita Filho condenava o “artificialismo institucional, que pela pressão das armas foi o País obrigado a aceitar”.

Alguns anos mais tarde, quando se verificou que todos os grupos engajados na luta armada contra o regime haviam sido exterminados, os empresários começaram a manifestar sua irritação com a permanência dos militares no comando do Estado Brasileiro. Tanto mais que os homens de farda deixaram-se seduzir pelas vantagens econômicas particulares desfrutadas no comando do Estado, tais como o exercício de cargos de administração altamente remunerados em empresas estatais, várias delas criadas a partir do golpe de 1964.

Em 1974, um dos grandes sacerdotes do credo liberal, Eugênio Gudin, declarou publicamente que “o capitalismo brasileiro é mais controlado pelo Estado do que o de qualquer outro país, com exceção dos comunistas”. A seguir, em fevereiro de 1975, o jornal O Estado de São Paulo publicou uma série de nada menos do que onze reportagens sob o título “Os caminhos da estatização”, enquanto a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo divulgava um documento, intitulado “O Processo de Estatização da Economia Brasileira: O Problema do Acesso aos Recursos para Investimentos”.

A classe empresarial entendia, assim, haver chegado o momento de voltar a instalar no país o tradicional regime da falsa democracia representativa, sob cuja fachada aparece o poder oficial atribuído a agentes políticos eleitos, enquanto por trás dela tem livre curso a dominação econômica, exercida pelos potentados privados. A pressão empresarial contra as Forças Armadas no comando do Estado coincidiu com a eleição à presidência dos Estados Unidos de Jimmy Carter, crítico implacável das violações de direitos humanos cometidas pelo regime militar brasileiro.

Em entrevista a um periódico norte-americano, ele chegou a afirmar: “Quando Kissinger [Secretário de Estado no governo Richard Nixon] diz, como fez há pouco, que o Brasil tem um tipo de governo compatível com o nosso, bem, aí está o tipo de coisa que nós queremos mudar. O Brasil não tem um governo democrático. É uma ditadura militar. Em muitos aspectos é altamente repressiva para os presos políticos”.

Por sua vez, no seio do episcopado brasileiro – embora vinculado, como de costume, aos detentores do poder supremo – destacaram-se as figuras exponenciais de D. Helder Câmara e de D. Paulo Evaristo Arns, para denunciar sem eufemismos, tanto aqui como no exterior, as atrocidades praticadas contra presos políticos. O regime militar entrava, assim, em sua fase de declínio inelutável, havendo perdido o apoio dos grupos que, tradicionalmente, compõem a estrutura do poder entre nós.

A fase final do regime

Tudo parecia encaminhar-se para a “distensão lenta, gradual e segura”, como pregava o General Golbery do Couto e Silva, não fora o fato de restar irresolvida a questão das atrocidades cometidas pelos agentes militares e policiais, no quadro do terrorismo de Estado. Conforme dados oficiais da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, criada pela Lei nº 9.140, de 1995, foram comprovados, até fevereiro de 2014, 362 (trezentos e sessenta e dois) casos de opositores políticos assassinados ou desaparecidos durante o regime militar.

Já a Secretaria Especial de Direitos Humanos do Ministério da Justiça, no relatório intitulado Direito à Memória e à Verdade, publicado em 2007, afirmou que tivemos não menos de 475 (quatrocentos e setenta e cinco) mortos e desaparecidos políticos durante aquele período. Calcula-se, ademais, que 50.000 pessoas foram presas por razões políticas, sendo a maior parte delas torturadas, algumas até a morte. O governo militar chegou mesmo a aparelhar, em Petrópolis, uma casa onde pelo menos 19 pessoas foram executadas, sendo seus corpos incinerados a fim de não deixar vestígios.

Em momento algum de nossa vida de país independente, os governantes, quer no Império, quer na República, chegaram a cometer tão repugnantes atrocidades. A pressão do empresariado para que os chefes militares deixassem o poder foi reforçada com a redução significativa da taxa de crescimento econômico do país, a partir do final do governo Geisel. Mas a corporação fardada hesitava em deixar o comando do Estado, procurando a todo custo uma garantia de que, quando isso ocorresse, os agentes policiais e militares responsáveis pelos atos de criminalidade violenta contra opositores ao regime não seriam punidos.

Essa solução contava com o apoio decidido do grande empresariado, quando mais não fosse porque alguns de seus líderes, como assinalado acima, foram coautores dos crimes de terrorismo de Estado, havendo financiado a operação do sistema repressivo. Por sugestão dos políticos colaboradores do regime, os chefes militares decidiram afinal embarcar no movimento já iniciado de anistia aos presos e exilados políticos, de modo a estendê-la aos autores de crimes de terrorismo de Estado. Em junho de 1979, o general-presidente Figueiredo apresentou ao Congresso Nacional um projeto, convertido em 28 de agosto na Lei nº 6.683. Ela concedeu anistia “a todos quantos […] cometeram crimes políticos ou conexos com estes”; assim considerados “os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política”.

Lançando mão de cavilosa astúcia, os redatores da lei, ao invés de designarem precisamente os demais crimes abrangidos pela anistia, além dos delitos políticos propriamente ditos, preferiram utilizar a expressão técnica “crimes conexos”. Ora, ela é totalmente inepta no caso; pois são considerados como tais tão-só os delitos com comunhão de intuitos ou objetivos; e ninguém em são juízo pode afirmar que os opositores ao regime militar e os agentes estatais que os torturaram e mataram tivessem agido com objetivos comuns.

Irresignado com essa solerte velhacaria, sugeri em 2008 ao Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil que ajuizasse, em relação a essa lei, uma arguição de descumprimento de preceito fundamental perante o Supremo Tribunal Federal. A ação foi proposta, pedindo-se ao tribunal que interpretasse o texto legal de acordo com a Constituição que entrou em vigor em 1988, em cujo art. 5º, inciso LXIII dispõe-se que o crime de tortura é insuscetível de graça ou anistia; sendo incontroverso que toda lei contrária ao texto ou ao espírito de uma Constituição nova considera-se tacitamente revogada por esta. Pediu-se, ademais, que a lei de anistia fosse interpretada à luz dos princípios e normas do sistema internacional de direitos humanos.

Em abril de 2010, o Supremo Tribunal Federal julgou por maioria improcedente a ação proposta pela OAB. Desse acórdão foi interposto recurso de embargos declaratórios, pois o tribunal deixou de considerar o fato de que vários dos crimes ditos conexos, cometidos por agentes do regime militar – como, por exemplo, o sequestro ou a ocultação de cadáver – são qualificados como permanentes ou continuados; o que significa que ainda não se consideram consumados e, portanto, não foram abrangidos pela lei de anistia, dado que esta declarou não aplicar-se aos crimes cuja consumação é posterior a 15 de agosto de 1979.

Seis meses depois desse julgamento, mais exatamente em 24 de novembro de 2010, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, por unanimidade, condenou o Estado Brasileiro, ao julgar o Caso Gomes Lund e outros x. Brasil (“Guerrilha do Araguaia”). Nessa decisão, declarou a Corte: “As disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos são incompatíveis com a Convenção Americana [sobre Direitos Humanos], carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir representando um obstáculo para a investigação dos fatos do presente caso, nem para a identificação e punição dos responsáveis, e tampouco podem ter igual ou semelhante impacto a respeito de outros casos de graves violações de direitos humanos consagrados na Convenção Americana ocorridos no Brasil.”

Dois foram os fundamentos para tal decisão. Em primeiro lugar, o fato de que as gravíssimas violações de direitos humanos, praticadas durante o terrorismo de Estado do nosso regime empresarial-militar, constituíram crimes contra a humanidade; ou seja, crimes nos quais é negada às vítimas a condição de ser humano.

Em duas Resoluções formuladas em 1946, a Assembleia Geral das Nações Unidas considerou que a conceituação tipológica de tais delitos representa um princípio de direito internacional. Essa mesma qualificação foi dada pela Corte Internacional de Justiça às disposições da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, cujos artigos III e V estatuem que “todo homem tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”, e que “ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante”.

Ora, os princípios, como assinalado pela doutrina contemporânea, situam se no mais elevado grau do sistema normativo. Eles podem, por isso mesmo, deixar de ser expressos em textos de direito positivo, como as Constituições, as leis ou os tratados internacionais. O segundo fundamento da decisão condenatória do Estado Brasileiro no processo Gomes Lund e outros x Brasil (“Guerrilha do Araguaia”), foi o fato de que a Lei nº 6.683, de 1979, representou, na verdade, uma autoanistia, inadmissível no sistema internacional de direitos humanos.

Como salientou a referida Sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos, a responsabilidade pelo cometimento de graves violações de direitos humanos não pode ser reduzida ou suprimida por nenhum Estado, menos ainda mediante o procedimento de uma autoanistia decretada pelos governantes responsáveis, pois trata-se de matéria que transcende a soberania estatal.

Pois bem, no julgamento pelo Supremo Tribunal Federal da arguição de descumprimento de preceito fundamental nº 153, proposta pelo Conselho Federal da OAB, o ministro relator e outro que o acompanhou afirmaram que a Lei nº 6.683 não poderia ser concebida como autoanistia, mas sim como uma anistia bilateral entre governantes e governados. Ou seja, segundo essa original interpretação, torturadores e torturados, reunidos em uma espécie de contrato particular de intercâmbio de prestações, teriam resolvido anistiar-se reciprocamente…

Frise-se, desde logo, a repulsiva imoralidade de um pacto dessa natureza, se é que ele realmente existiu: o respeito mais elementar à dignidade humana impede que a impunidade dos autores de crimes hediondos ou contra a humanidade seja objeto de negociação pelos próprios interessados. Na verdade, o propalado “acordo de anistia” dos crimes contra a humanidade, praticados pelos agentes da repressão, não passou de uma encoberta conciliação oligárquica, na linha de nossa mais longeva tradição.

A validade de qualquer pacto ou acordo supõe a existência de partes legitimadas a conclui-lo. Se havia à época, de um lado, chefes militares detentores do poder supremo, quem estaria do outro lado? Porventura, as vítimas ainda vivas e os familiares de mortos pela repressão militar foram chamados a negociar esse acordo? O povo brasileiro, declarado solenemente como titular da soberania, foi convocado a referendá-lo?

O mais escandaloso de toda essa tese do acordo político é que, após a promulgação da lei de anistia, certos agentes militares continuaram a desenvolver impunemente sua atividade terrorista. O Ministério Público Militar apurou que, entre 1979 e 1981, houve 40 atentados a bomba, praticados por um grupo de oficiais militares reunidos em uma organização terrorista. Foi preciso, no entanto, aguardar até fevereiro de 2014, ou seja, trinta e três anos depois do último atentado, para que fosse apresentada denúncia criminal contra os integrantes dessa quadrilha por homicídio doloso, associação criminosa armada e transporte de explosivos.

É deplorável constatar que o nosso país é o único na América Latina a continuar sustentando a validade de uma autoanistia decretada pelos militares que deixaram o poder. Na Argentina, no Chile, no Uruguai, no Peru, na Colômbia e na Guatemala, o Poder Judiciário decidiu pela flagrante inconstitucionalidade desse remendo institucional.

O caso do regime pós-militar argentino é paradigmático a esse respeito e nos cobre de vergonha. A Suprema Corte de Justiça do país julgou inconstitucional, em 2005, a anistia dos crimes cometidos pelos agentes estatais contra os opositores políticos aos governos militares, iniciando-se desde então os consequentes processos penais.

Pois bem, até fevereiro de 2014, nada menos do que 370 (trezentos e setenta) criminosos dos dois regimes militares argentinos (1966-1973 e 1973-1983) foram condenados à 20 pena de prisão; inclusive dois ex-presidentes da República, que amargaram a prisão perpétua, sendo que um deles faleceu no cárcere. A persecução penal estendeu-se até mesmo a ex-magistrados, considerados coautores de tais crimes.

No Brasil, bem ao contrário, até hoje nem um só autor de crime praticado no quadro do terrorismo de Estado do regime empresarial-militar foi condenado pela Justiça. Passados anos da prolação da sentença condenatória da Corte Interamericana de Direitos Humanos, o Estado Brasileiro ainda não cumpriu nenhum dos seus doze pontos conclusivos, em flagrante violação da Constituição Federal e do sistema internacional de direitos humanos.

De minha parte, há anos tenho envidado esforços no sentido de que essa grave omissão de nossos Poderes Públicos seja levada a juízo no Brasil e denunciada perante as instâncias internacionais, a fim de que fique bem marcada a responsabilidade do Estado Brasileiro.

Conclusão

A votação da lei de anistia em 1979 representou, na verdade, a conclusão de um pacto oculto entre as Forças Armadas e ambos os grupos que sempre exerceram conjuntamente a soberania entre nós – os agentes políticos e os potentados econômicos privados –, com o objetivo de devolver aos dois últimos o comando supremo do Estado, que os militares haviam arrebatado em 1964.

Nesse episódio, à semelhança de tantos outros em nossa História, o povo foi posto de lado, como se nada tivesse a ver com isso. A Constituição promulgada em 5 de outubro de 1988, seguindo as que a antecederam, proclama solenemente que “todo poder emana do povo” (art. 1º, parágrafo único). Chega mesmo a declarar que o povo exerce seu poder, não apenas por meio de representantes eleitos, mas diretamente; isto é, mediante plebiscitos e referendos (art. 14).

Tais declarações constitucionais – é lamentável dizê-lo – são meras figuras de retórica. Sem dúvida, os cidadãos brasileiros votam regularmente em eleições. O conjunto dos eleitos, no entanto, sempre ficou muito longe de defender os verdadeiros interesses da maioria do eleitorado, pertencente aos estratos pobres da população.

O que os mal-chamados representantes do povo defendem, isto sim, são os interesses da minoria proprietária e empresária, a qual fornece, por meio de doações, nada menos que dois terços das receitas dos principais partidos políticos. Para se ter uma ideia da falsidade de nossa democracia representativa, basta assinalar um só fato: enquanto cerca de 40.000 produtores agrícolas, os quais exploram 50% das áreas cultiváveis do país, elegem de 120 a 140 deputados federais, os componentes das 4 a 6 21 milhões de famílias que praticam a agricultura familiar são representados no Congresso Nacional por no máximo 12 deputados.

Quanto às instituições da democracia direta – grande novidade do texto constitucional de 1988 –, elas só existem no papel. O art. 49, inciso XV da Constituição dispõe que “é da competência exclusiva do Congresso Nacional autorizar referendo e convocar plebiscito”. Ou seja, o povo soberano somente poderá tomar diretamente decisões políticas, quando autorizado pelos seus representantes. Trata-se, sem dúvida, de uma original modalidade de mandato…

Enquanto persistir essa triste realidade, não ficará afastada a possibilidade de voltarem a ocorrer prolongados desmandos políticos, como o provocado pelo golpe de Estado de 1964.

O caminho para a criação de um autêntico Estado de Direito, Republicano e Democrático é longo e penoso. Mas o que importa é começar desde logo a dar os primeiros passos, no sentido da defesa intransigente da dignidade do povo brasileiro.

“Se as coisas são inatingíveis… ora! / Não é motivo para não querê-las… / Que tristes os caminhos, se não fora / A presença distante das estrelas!” (Mário Quintana).

*Fábio Konder Comparato é professor Emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e Doutor Honoris Causa da Universidade de Coimbra.

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

MAIS AUTORES

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
André Márcio Neves Soares Denilson Cordeiro José Dirceu Chico Whitaker Luiz Carlos Bresser-Pereira Eliziário Andrade Henry Burnett Antonio Martins Plínio de Arruda Sampaio Jr. Ronaldo Tadeu de Souza José Costa Júnior Paulo Sérgio Pinheiro Boaventura de Sousa Santos João Carlos Loebens Maria Rita Kehl Luiz Bernardo Pericás Carla Teixeira Caio Bugiato Yuri Martins-Fontes Fernão Pessoa Ramos Gerson Almeida Rafael R. Ioris Andrew Korybko Ricardo Antunes Osvaldo Coggiola Rodrigo de Faria Paulo Capel Narvai Luiz Roberto Alves Carlos Tautz Gilberto Maringoni Benicio Viero Schmidt Atilio A. Boron Jorge Luiz Souto Maior Berenice Bento Henri Acselrad Rubens Pinto Lyra Julian Rodrigues Alexandre Aragão de Albuquerque Ricardo Abramovay Marilia Pacheco Fiorillo Sergio Amadeu da Silveira Ricardo Fabbrini Alysson Leandro Mascaro Marcos Aurélio da Silva José Micaelson Lacerda Morais Slavoj Žižek Lorenzo Vitral Vanderlei Tenório Marcelo Módolo Airton Paschoa Valerio Arcary Armando Boito Gabriel Cohn João Sette Whitaker Ferreira Antônio Sales Rios Neto Luiz Marques Luis Felipe Miguel Leonardo Sacramento Walnice Nogueira Galvão Elias Jabbour Ronald Rocha Sandra Bitencourt Salem Nasser Fernando Nogueira da Costa Michael Löwy Afrânio Catani Eugênio Bucci Paulo Martins Vladimir Safatle Bruno Machado Tarso Genro João Feres Júnior Michel Goulart da Silva Luiz Eduardo Soares Gilberto Lopes Luís Fernando Vitagliano Igor Felippe Santos Paulo Fernandes Silveira Fábio Konder Comparato Otaviano Helene Jean Marc Von Der Weid Matheus Silveira de Souza Leonardo Boff Lincoln Secco André Singer Dennis Oliveira Juarez Guimarães Celso Frederico Marcelo Guimarães Lima Luciano Nascimento Renato Dagnino Milton Pinheiro Manuel Domingos Neto Bento Prado Jr. Anselm Jappe Alexandre de Lima Castro Tranjan José Luís Fiori Michael Roberts Luiz Renato Martins Samuel Kilsztajn Francisco Fernandes Ladeira Daniel Costa Eleonora Albano Mariarosaria Fabris Flávio R. Kothe Heraldo Campos Priscila Figueiredo Ronald León Núñez Celso Favaretto José Raimundo Trindade João Paulo Ayub Fonseca Lucas Fiaschetti Estevez João Carlos Salles Bernardo Ricupero Ricardo Musse Marcos Silva Liszt Vieira Dênis de Moraes Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Francisco Pereira de Farias Daniel Brazil Chico Alencar Flávio Aguiar José Machado Moita Neto Eduardo Borges Bruno Fabricio Alcebino da Silva Marjorie C. Marona Antonino Infranca Marilena Chauí Valerio Arcary Annateresa Fabris Eleutério F. S. Prado Ladislau Dowbor José Geraldo Couto Andrés del Río João Adolfo Hansen Remy José Fontana Luiz Werneck Vianna Marcus Ianoni Érico Andrade Francisco de Oliveira Barros Júnior Tales Ab'Sáber Kátia Gerab Baggio Claudio Katz Tadeu Valadares Eugênio Trivinho Manchetômetro Paulo Nogueira Batista Jr Everaldo de Oliveira Andrade Alexandre de Freitas Barbosa Leda Maria Paulani Mário Maestri Thomas Piketty Vinício Carrilho Martinez Daniel Afonso da Silva Jean Pierre Chauvin Jorge Branco Ari Marcelo Solon João Lanari Bo Leonardo Avritzer

NOVAS PUBLICAÇÕES

Últimos artigos
18/04/2024Por JORGE LUIZ SOUTO MAIOR* Os reais interesses da classe trabalhadora e os desafios para a construção de uma sociedade efetivamente justa, igualitária e humana não estão incluídos no debate do PL da Uberização 1. Muitas têm sido as manifestações contra o PL da Uberização (PLP 12/24) vindas de setores conservadores e liberais (entidades, movimentos e personalidades) e isto tem causado certa perplexidade em alguns setores da esquerda. Já ouvi dizer que como estes segmentos estão se posicionando contrários ao PL, então o que cabe à esquerda é ser a favor. Uns admitindo que o apoio estaria vinculado à necessidade de se buscar algum aprimoramento, mas, por certo, sem alterar a essência; e, outros, concluindo, desde já, que o projeto apresentado foi o melhor que se pode fazer e o único capaz de ser aprovado nas condições adversas impostas pela composição ideologicamente desfavorável do Congresso. Já outros, mais aderentes à base de sustentação política do governo, afirmam que os conservadores e liberais são contrários porque não querem admitir os grandes avanços preconizados no PL, no que diz respeito aos direitos garantidos aos trabalhadores. Dito de outro modo, a contrariedade de representantes desses vieses ideológicos seria prova suficiente do quanto é positiva a proposta apresentada pelo governo. Não faltam também aqueles(as) que compreendem que a contrariedade de conservadores e liberais ao projeto não passa de um ato político, uma oposição para enfraquecer o governo, advertindo que qualquer crítica ao PL, vinda de onde vier, representa uma forma de alimentar a oposição e enfraquecer o governo. De outro lado, ainda no campo da esquerda, sustenta-se que a oposição ao PL é mero jogo de cena, fruto de um oportunismo, qual seja, o de se colocar contra uma proposta que, no fundo, atende aos interesses dos que se posicionam contrários, pois, com esta estratégia, buscam, de fato, evitar que, no debate congressual, a proposta ganhe rumos diversos daqueles que foram inicialmente pronunciados e até mesmo para que se possa ir além, no sentido da ampliação da regulação para proposta outras categorias de trabalhadores e trabalhadoras. Ao me deparar com todas essas avaliações, não tenho como deixar de reiterar as preocupações há muito (e de forma reiterada) manifestadas, no aspecto do quanto o raciocínio moldado pela lógica dos resultados, sobretudo quando induzido por cálculo eleitoral ou pela preocupação da manutenção da dita “governabilidade”, tem nos impedido de promover análises objetivas e debates efetivamente envolvidos e comprometidos com a construção de uma realidade social, econômica e política mais condizente com a condição humana, tomadas pelos pressupostos da liberdade e da igualdade reais. 2. O poder de reflexão é algo que exige ser exercitado. Na atrofia mental, ele se perde. No estado abstinência intelectiva todo tipo de raciocínio, mesmo desprovido de lógica ou empiria, incluindo os de cunho negacionista ou baseados em discursos de ódio, apresenta-se como válido e da mesma ordem de grandeza de qualquer outro. Este, aliás, é o grande problema de se colocar, em primeiro plano, a defesa abstrata da liberdade de expressão, fazendo com que a preocupação com o conteúdo fique completamente fora das discussões. A questão é que a censura, em si, não é promotora do conhecimento. E o maior problema é que quando a preocupação com o conhecimento é desprezada ou afastada pela circunstância emergencial de se priorizar a criação de um obstáculo ao advento de algo considerado ainda pior (lógica do mal menor), o compromisso com o real e a busca do saber se esvaem, sobretudo, quando, para cumprir esses objetivos, apresentam-se, como razoáveis e inexoráveis, argumentos retóricos e, assumidamente, falseados, desprovidos de lógica e coerência. Este é o processo pelo qual o irracional tem apontado o que seria ainda mais irracional, para se fazer racional. Tomando por base a política nacional há muito vigente, o Partido dos Trabalhadores, dentro da sua preocupação de se apresentar como um partido de esquerda, mas que, concretamente, apoiado na estratégia de conciliação de classes, reproduz e reforça a lógica neoliberal que é de interesse da classe dominante, precisa da criação de uma ameaça conservadora, para se apresentar como o avanço possível. Mas como esta é a própria lógica da sua existência, o PT necessita da nomeação de um inimigo concreto e que represente efetiva ameaça. Foi assim que antes se alimentava do fantasma do PSDB, e, agora, é dependente do bolsonarismo. O problema é que, neste contexto, a retórica ganha vida e a própria ameaça criada toma forma concreta e se retroalimenta toda vez que as argumentações falseadas para combatê-la transparecem. Quando o irracional dominante atrai novas irracionalidades, com as quais se rivaliza, o que se estabelece é um círculo vicioso em direção á barbárie. As guerras estão aí para demonstrar isso… Os antagonismos, quando fogem de qualquer preocupação com o real e a produção do conhecimento, desenvolvendo-se no plano da conveniência e da dissimulação, estimulam a naturalização do absurdo. Nesta roda que se move para trás, até mesmo os negacionismos, terraplanismos e discursos de ódio ganham força. Quando se diz, por exemplo, que o autoritarismo é necessário para defender a democracia ou que qualquer ato e argumentos são válidos para combater o fascismo, o que se consegue é apenas atrair o autoritarismo e o fascismo para uma rivalidade no mesmo plano. Este, ademais, é o grande risco de conferir o título de herói a quem comete arbitrariedades em nome da defesa da democracia, deixando-se de lado, inclusive, a essencial discussão de que democracia, afinal, se está falando. Que democracia está sendo defendida, para quais sujeitos e com quais objetivos? 3. Os reais interesses da classe trabalhadora e os desafios para a construção de uma sociedade efetivamente justa, igualitária e humana não estão, definitivamente, incluídos neste debate. Fato é que, diante da fragilidade ideológica que direciona as ações e pensamentos do atual governo, o que se verifica é o aumento do risco de volta do fascismo, que, inclusive, se apresenta como defensor da liberdade. E assim, numa aspiral de retrocessos, caminhamos em direção ao caos. O PL da uberização e os argumentos para a sua defesa demonstram bem o processo em curso, como já destacado em vários outros textos. Importa, agora, explicitar como a utilização estratégica da contrariedade de conservadores e liberais contra o projeto para defender o governo é uma forma ainda mais aprofundada desse “epstemicídio”. Vale perceber que nas manifestações sobre a contrariedade conservadora e liberal ao PL, acima expostas, não há nenhuma tentativa de compreender as razões efetivas pelas quais a contrariedade se explicitou, da qual geraram, inclusive, mobilizações de rua de muitos motoristas. As reações às contrariedades rejeitam qualquer grau racionalidade aos opositores e transferem para estes a sua própria racionalidade. Na lógica dos defensores do PL, se o PL avança em direitos e alguém é contra é porque ou não entendeu bem o PL ou o é porque quer sua intenção é impedir que os avanços sejam consagrados ou que o governo obtenha proveito político com a aprovação do PL. Esta avaliação representa uma total abstinência analítica. A primeira grande constatação que se precisa realizar e que explícita essa abstinência diz respeito ao movimento de colocar como um mesmo objeto, PL e governo, fazendo com o que coloque em debate é a governabilidade e não a pertinência do conteúdo do PL. O que importa, concretamente, é a discussão acerca do conteúdo do PL e seus possíveis efeitos na realidade concreta das relações de trabalho. Mas, o que estas avaliações vislumbram é impedir desgastes à governabilidade. Então, nesta perspectiva passa a ser preciso dizer que as objeções ao PL são da mesma ordem, ou seja, que não dizem respeito ao conteúdo, ou que falseiam o conteúdo e se destinam, unicamente, a desestabilizar o governo. A adoção desse método para desviar o foco do debate sobre o conteúdo pode ser constatada pelo fato de que as manifestações oficiais de defesa do PL tomam como alvo apenas os argumentos de conservadores e liberais, de modo a fazer transparecer que, de fato, a contrariedade é meramente um ato político partidário. Veja-se que a Nota das Centrais Sindicais, expedida em 05 de abril deste ano, “dialoga” apenas com as objeções vindas de conservadores e liberais, muito embora, inúmeros argumentos muito distintos contra o PL já tenham sido explicitados por acadêmicos(as), pesquisadores(as), juristas, sociólogos(as) e entidades e movimentos do mundo do trabalho, além de diversos trabalhadores e trabalhadoras, sobretudo, da categoria de entregadores (os quais não aceitaram a proposta de regulação do governo, cabe lembrar), todo(as) ligados(as) ao pensamento de esquerda. Primeiro, a Nota das Centrais aprofunda o descompromisso com a realidade, quando diz, por exemplo, que “o trabalho autônomo, assim devidamente caracterizado, “passa a ser considerado como uma relação de trabalho” entre a empresa que opera o aplicativo e a pessoa que trabalha de forma autônoma”, como se a exclusão da relação de emprego, como todos os direitos daí consequente, fosse uma vantagem, ou que o PL garante “uma remuneração base de R$ 5.650,00”, quando, de fato, 3/4 desse valor, segundo os termos do próprio PL, destinam-se à reposição dos custos do trabalho, resultando em uma efetiva remuneração, pelo número de horas de trabalho indicado na referida Nota, no importe de R$1.412,00. Mas o mais grave mesmo, como dito desde o início deste texto, é a postura assumida de não tentar compreender as motivações, ligadas ao conteúdo, que levam conservadores e liberais a serem contrários a um Projeto de Lei que, como se sabe, atende aos interesses destes segmentos ideológicos. Por certo, os defensores do PL não vão reconhecer isto e aí já se tem um vício primário incontornável, que é motivador de todos os demais desvios de avaliação. Ora, o PL ao negar o reconhecimento da relação de emprego e de, consequentemente, afastar a aplicação das garantias fixadas na CLT e em todas as demais normas trabalhistas, sobretudo, constitucionais, vai na direção do que liberais e conservadores vêm preconizando a décadas e que não conseguiram levar a efeito, nem mesmo na “reforma” trabalhista de 2017, apoiada pelo governo golpista de Michel Temer, e no Projeto da Carteira Verde e Amarelo, do governo ultraliberal e fascista de Jair Bolsonaro. Ocorre que os conservadores e liberais têm efetivas razões para se posicionarem contra o conteúdo do PL e a negação proposital dessa percepção é denunciadora de uma limitação que, gravemente, há muitos anos afeta uma certa parcela da esquerda brasileira. Afinal, por que liberais e conservadores são contra o PL? Eis a questão, que precisa de uma análise mais detida, pois algumas lições e apreensões podem ser dela extraída, como veremos. 4. Primeiro, o fato de se colocarem contra um projeto de lei que atende o seu ideário está relacionado a um ideário que há muito foi abandonado por um setor da esquerda e que acabou, de certo modo, sendo apropriado pela direita: a utopia. Os governos conservadores e liberais têm sido radicais nas defesas de suas pretensões, chegando mesmo, muitas vezes, a falar em “revolução”. Fato é que estes segmentos, desde o enfraquecimento da utopia socialista, abandonaram a postura defensiva e passaram ao ataque declarado. Querem e buscam sempre mais: mais lucros; mais privilégios; mais irresponsabilidade social; mais opressão; mais exploração… Ou seja, o PL, ao não reconhecer o vínculo de emprego e afastar os direitos trabalhistas, é muito bom para os seus interesses, mas eles querem mais. Vale, inclusive, perceber que esta parte do PL não é objetada. O que se contraria são as proposições do PL em que se tentam, mesmo de forma bastante tímida, acoplar a algumas fórmulas de cunho social. No entanto, tragicamente, a rejeição a essas vinculações é mais coerente que a sua defesa. Digo tragicamente porque esta situação acaba conferindo à direita, na balança dos argumentos, uma vantagem em termos de razoabilidade. O PL e os argumentos de sua defesa são ruins também por isso. Senão, vejamos. O PL pronuncia que os motoristas são autônomos e ao se estabelecer este pressuposto o que se acolhe são os valores liberais clássicos da liberdade, do individualismo e do empreendedorismo. No entanto, de forma dissimulada, os trata como trabalhadores integrados a uma categoria que se deve mover por espírito de solidariedade e coletivamente, com o gravame de que a organização coletiva preconizada não é aquela que representa o efeito de um movimento espontâneo da categoria e sim uma vinculação imposta de cima para baixo, a partir de estruturas pré-concebidas e que estão atreladas à lógica diversa das relações de emprego. Essa previsão bipolar faz com que a rejeição à vinculação sindical aludida no PL tenha coerência e, isto, aí sim de forma estratégica, mas por culpa do próprio conteúdo do PL, alimenta e reforça a argumentação de direita contra os sindicatos, a sindicalização e a mobilização coletiva dos trabalhadores e trabalhadoras, já que o artificialismo e uma captura autoritária constituem a base da vinculação desenhada. Além disso, se o PL reafirma aos motoristas que eles são geridos pela autonomia, expressão máxima da livre manifestação da vontade, estes, então, terão boas razões para acreditar que não lhes pode ser imposta contribuição social, valores pré-fixados do custo do trabalho ou mesmo limites de horas de trabalho. A incoerência do PL, ao tratar dessa figura imaginária do “autônomo com direitos”, mas direitos que, na verdade, não representam inclusão social e melhora das condições de vida e de trabalho, no plano do que se tem constitucionalmente assegurado aos trabalhadores e trabalhadoras em geral, sendo, em verdade, limitações à livre manifestação da vontade, acaba conferindo motivos suficientes para que liberais e conservadores invoquem coerência e razoabilidade para extraírem do PL tudo (ainda que seja muito pouco ou quase nada) o que transborda da condição de autonomia. Afinal, ao contrário das políticas institucionais desta esquerda burocratizada, guiadas há muito pela lógica do mal menor ou do circunstancialmente possível, a direita não se contenta com pouco. E cumpre perceber essa trágica diferença de horizontes: esta parcela da esquerda diz que o PL é o máximo a que se pode chegar (e, concretamente, já são vários passos para trás); enquanto a direita, já tendo a seu favor) os passos dados pela esquerda, vislumbra passos a mais, até onde a ganância possa alcançar, mesmo que, para tanto, se destruam vidas e o próprio planeta. Isso, aliás, nos obriga a explicitar o quanto são inviáveis os objetivos da direita. Por outro lado, não nos conduz a acreditar que apenas ser resistência à destruição possa ser o nosso horizonte para um projeto de vida e de socialização. No contexto das linhas de delimitação de horizontes previamente traçadas, da esquerda, já no máximo, e da direita, com campo a ser ampliado, o único resultado a que se pode chegar no processo legislativo, sobretudo se considerada a dita “correlação de forças no Congresso”, é do piora do PL, notadamente no aspecto da ampliação da mesma lógica de autonomia plena para outras categoriais de trabalhadores e trabalhadoras. E o pior de tudo é que tendo em mente a governabilidade, baseada na conciliação de classes, o horizonte do mal menor, o desprezo à realização de análises críticas e o abandono das utopias, o que se anuncia é que poderão vir, pelas mãos do governo e com apoio de partidos de esquerda e de entidades sindicais de trabalhadores e trabalhadoras, outras iniciativas regulatórias com a mesma lógica do combate à CLT. Talvez dessa maneira, quem sabe, o presidente Lula cumpra a sua promessa, feita na campanha, em mais um momento de descuido retórico, de revogar a “reforma” trabalhista, pois, com a aprovação do PL e a reverberação de sua racionalidade neoliberal pela voz das representações sindicais, em concreto, toda legislação trabalhista deixará de existir. Jorge Luiz Souto Maior é professor de direito trabalhista na Faculdade de Direito da USP. Autor, entre outros livros, de Dano moral nas relações de emprego (Estúdio editores). [https://amzn.to/3LLdUnz] A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.Ajude-nos a manter esta ideia.CONTRIBUA [...] Read more...
18/04/2024Por ANTONIO RIBEIRO ALMEIDA JR.* Prefácio do livro recém-lançado de Felipe Scalisa de Oliveira sobre as violações de direitos humanos na Faculdade de Medicina da USP O trote universitário ocorre, literalmente, diante dos olhos dos principais pesquisadores do país e tem grande importância para a formação dos universitários. Ele é parte de um “currículo oculto”. Dadas essas condições, ele deveria ser muito estudado, mas o fato é que continua sendo um tema negligenciado. Personalidades acadêmicas de relevo falam dele como se tivessem profundo conhecimento e legítima autoridade sobre o assunto. Formulam apressadamente hipóteses sem se preocupar em testá-las por meio de estudos empíricos. A dura realidade é que poucas pesquisas buscaram descrever o contexto social e cultural desse fenômeno que resulta, com impressionante regularidade, em humilhações, exclusões, feridos e mortos. O trote produz espetáculos de preconceito e barbárie no interior dos campi, como se fosse simples celebração. Mesmo assim, a pesquisa permanece escassa. Os motivos dessa negligência acadêmica, certamente nada casuais ou louváveis, merecem uma atenção especial, pois podem revelar aspectos da cultura universitária que ainda estão na obscuridade. Durante muito tempo, o trote pareceu ser “brincadeira”, “comemoração”. As violências apareciam como casos excepcionais, obras de alguns poucos desajustados e criminosos, e não como resultados, perfeitamente previsíveis e evitáveis, de práticas persistentes e de abusos sistemáticos. Felizmente, esse tempo está chegando ao fim. Nos últimos anos, houve algum avanço nos estudos e nas publicações sobre esses temas. Grande parte do que veio a público ainda tenta encontrar alguma forma de conciliação com o universo do trote e, por isso, carece de maior significado científico. Muitos trabalhos ainda propõem os trotes culturais, ecológicos, solidários, como solução para os problemas, permanecendo imersos na cultura trotista. Mas, ao mesmo tempo, foram realizadas algumas investigações relevantes que ampliaram o entendimento desse assunto e que apontam para a necessidade de abolir essas atividades. Entre esses trabalhos, destacamos os de Antônio Zuin, Silmara Conchão, Marco Akerman e Rosiane Silva. Mais antigas, as obras de Glauco Mattoso e de Paulo Denisar Vasconcelos Fraga também foram decisivas para o esclarecimento daquilo que se passa durante os trotes. Em minha avaliação, este conjunto de autores é responsável pelo que há de melhor na literatura nacional a respeito do tema. Penso poder associar a esses trabalhos os livros e artigos que escrevi individualmente ou em parceria com o Professor Oriowaldo Queda. Pelo fácil acesso, devemos considerar cuidadosamente as importantes investigações que têm sido realizadas em Portugal por autores como Elísio Estanque, Aníbal Farias, João Teixeira Lopes, José Pedro Silva e João Sebastião. Na literatura em inglês, encontramos um conjunto um pouco mais numeroso de obras do que em português. Como ocorre com as produções em nossa língua, são expressivas as deficiências desse material em inglês e temos ainda que considerar, entre outras coisas, as diferenças dos sistemas universitários, das práticas e do significado do trote para cada sociedade. Hank Nuwer, Donna Winslow, Lionel Tiger, Stephen Sweet, Elizabeth Allan, Susan Iverson, são alguns dos autores norte-americanos de maior envergadura. Há uma vastidão de temas a explorar. Os pesquisadores brasileiros poderiam, por exemplo, conhecer melhor as leis implantadas em outros países para combater o trote. Poderíamos aprender muito com as legislações estrangeiras sobre o tema. Existem leis bastante antigas como a francesa, que data de 1903, e várias propostas recentes como tem ocorrido nos EUA. No final de 2015, enquanto esse modesto aprofundamento nas pesquisas estava em curso, foi instaurada a CPI da ALESP para investigar “violações dos Direitos Humanos e demais ilegalidades ocorridas no âmbito das Universidades do Estado de São Paulo”. Presidida pelo Deputado Adriano Diogo, durante quatro meses, ela coletou um conjunto abrangente de testemunhos de estudantes, professores e dirigentes de muitas faculdades e universidades paulistas. Ela revelou para o grande público um quadro assustador de abusos, comportamentos aberrantes, torturas e conivência institucional. Apesar de seu reduzido número, as pesquisas foram suficientes para que a CPI pudesse encontrar seu caminho e a hegemonia do discurso trotista foi finalmente colocada em xeque. Se considerarmos seriamente aquilo que a CPI reuniu e os resultados das melhores investigações científicas disponíveis, o trote deveria ser pura e simplesmente erradicado. Não há nada que justifique sua continuidade. Depois das conclusões apresentadas por essa CPI, a luta contra o trote ganhou força. A universidade não tem mais como tergiversar, tornou-se robusta a exigência de uma ruptura pública, inequívoca e definitiva em relação ao trote e aos grupos que o praticam. Por isso, a CPI foi um momento de transfiguração, seus resultados e questionamentos serão lembrados a cada novo incidente, a cada novo escândalo, e a universidade será levada a reconhecer que precisa mudar, tornando-se mais democrática e humana. O livro Trote & Totalitarismo: um novo relato sobre a Banalidade do Mal, de Felipe Scalisa Oliveira inova na investigação do comportamento dos grupos trotistas. Utilizando com habilidade singular as teorias de Hannah Arendt sobre o totalitarismo, ele conseguiu revelar com exatidão muitas dinâmicas e motivações desses grupos, que compunham uma das mais importantes lacunas no conhecimento sobre o assunto. É próximo o parentesco entre o trote e as práticas dos nazi-fascistas. Por isso, as ideias de Arendt puderam ser aplicadas com tanto sucesso nesta pesquisa. O livro mostra, por exemplo, que as Atléticas têm um papel central nos movimentos trotistas, às custas de suas atividades propriamente esportivas. Antes de tudo, os treinos intensos são para demonstrar adesão ao grupo e não para aprimorar as habilidades corporais e mentais dos estudantes. Características desses movimentos, as competições esportivas são momentos de construção e de expressão máxima de identidades fundadas no ódio e na degradação das escolas adversárias. Homogêneas identidades coletivas construídas contra os outros e não com os outros. As competições são uma exaltação do grupo e da escola por meio de bebedeiras, hostilidades e agressões, barbarismos colocados em prática por universitários que deveriam representar o futuro da razão, do conhecimento e da capacidade para pensar. O motivo de tudo é o movimento, o trote e não o esporte. O grupo funda-se em crenças e atitudes irracionais, mas bastante eficientes para promover sua problemática coesão. Felipe Scalisa Oliveira aponta com perspicácia que o movimento é capaz de gerar um ambiente que impossibilita o livre-pensar. A sociabilidade que faria florescer o pensamento é sufocada. Essa condição é exatamente o contrário daquilo que deveria ser estimulado pela universidade. A investigação resgatou a história da Associação Atlética Acadêmica Oswaldo Cruz da Faculdade de Medicina da USP, que serviu de inspiração para muitas outras. Felipe Scalisa Oliveira descreve as origens eugenistas dessa organização, suas relações com um sentimento supremacista que se instala desde o início de suas atividades. Uma pretensa superioridade que supostamente daria direitos para agir fora e além da ordem jurídica, da racionalidade e da civilidade. Outra inovação importante é a construção do relato a partir da perspectiva das vítimas que não se submeteram ao movimento trotista, que não se tornaram cúmplices. São as vítimas que sentiram integralmente o horror que a exposição ao trote efetivamente causa. Seus testemunhos, sua organização, sua resistência, aparecem com viva dramaticidade no texto. Por este prisma, tornou-se possível mostrar ainda o mundo paralelo em que vivem os membros do movimento, que constantemente precisam inverter os fatos para poder permanecer na ficção em que se encontram aprisionados e que desesperadamente cultivam. A participação marcante de Felipe Scalisa Oliveira na CPI e sua análise dos testemunhos nela contidos abriram caminho para esta fecunda escolha metodológica.  Acompanhando e fazendo avançar as investigações de Hannah Arendt, o autor traz, para nosso debate atual a respeito do trote, um diálogo entre Santo Agostinho e Nietzsche. Essa intersecção permite vislumbrar a relação do ódio com os movimentos totalitários e com a suspensão da vontade dos indivíduos. A primazia do ódio está na origem da perda da liberdade e é instrumentalizada pelos movimentos totalitários. Banalizado, o mal emerge como resultado de uma alienação, uma ruptura, entre o ato e aquele que age. Percebemos então, com toda a força dos procedimentos filosóficos, que o trote está longe de ser mera brincadeira, apresentando-se como um inimigo ardiloso para quem o desafia ou com ele pensa brincar. Um adversário perigoso para as gestões universitárias que acreditam controlar os movimentos trotistas e, frequentemente, subestimam seus riscos. O movimento trotista pode parecer um aliado político valioso para dirigentes conservadores, mas se constitui sempre como um poder paralelo que pode, eventualmente, capturar a própria instituição. É uma grande satisfação ver um pesquisador fazer uma contribuição tão valiosa para o entendimento desse difícil tema, evitado pelos principais cientistas sociais do país, com tal desenvoltura e lucidez. Isso dentro de rigorosos padrões metodológicos e mostrando uma erudição surpreendente para alguém tão jovem. Esta obra, certamente, estimulará debates, novas pesquisas, auxiliando quem deseja conhecer cientificamente o trote universitário. Para os governantes, políticos, dirigentes da universidade, professores, funcionários e estudantes que desejarem lutar contra o trote, há muito o que refletir e aprender com este excelente trabalho. Penso que o trote causou sofrimentos e importantes perdas para Felipe Scalisa Oliveira que, em diversos momentos, foi hostilizado por membros do movimento trotista da Faculdade de Medicina da USP. Mas, em lugar de meramente sucumbir, revestido de coragem, perseverança e distinta capacidade intelectual, o autor deste livro ousou transformar estas experiências em uma brilhante análise desses movimentos que afligem e desonram a universidade brasileira. *Antonio Ribeiro de Almeida Jr. é professor titular do Departamento de Economia, Administração e Sociologia da ESALQ/USP, autor, entre outros livros, de Anatomia do trote universitário (Hucitec). [https://amzn.to/3vxQXz2] Referência Felipe Scalisa de Oliveira. Trote e totalitarismo: um novo relato sobre a banalidade do mal. São Paulo, Editora Alameda, 2024, 432 págs. [https://amzn.to/4cRZiOW] A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.Ajude-nos a manter esta ideia.CONTRIBUA [...] Read more...
18/04/2024Por WILLYAN ALVAREZ VIEGAS* Apesar da fragilização da imagem de Gustavo Petro e da difícil governabilidade com o fim da conciliação e a aposta na manutenção do caráter popular e progressista do governo, no mandato de Gustavo Petro se mantém a iniciativa da agenda 1. Um ano e meio após a eleição de Gustavo Petro à presidência da Colômbia, se confirmam tanto a execução do projeto de governo popular apresentado durante a campanha, como os obstáculos prometidos pela oposição às reformas pretendidas pelo governo. Em junho de 2022 Gustavo Petro era eleito pela pequena maioria de 50,44% dos eleitores colombianos. Historicamente na América Latina, as elites liberais e conservadoras frequentemente não reconhecem vitórias eleitorais progressistas por margens pequenas como essa e recorrem à sabotagem e aos golpes brandos ou de força contra governos legitimamente eleitos, como ocorreu recentemente em países vizinhos da região. Desta feita não poderia ser diferente. O primeiro ano de Gustavo Petro no governo foi marcado pelos ataques incessantes das elites tradicionais colombianas através do poder midiático e institucional que têm por objetivo desconstruir a figura de Gustavo Petro, líder popular que permitiu a esquerda governar o país pela primeira vez na história. A política colombiana é caracterizada por um histórico domínio liberal e conservador que impediu a ascensão de líderes progressistas no Estado, em muitos casos através do uso da força. O caso mais emblemático foi o de Eliécer Gaitán, candidato com forte apelo popular que propôs reformas sociais estruturais, assassinado em 1948 para impedir sua eleição ao governo naquele ano. A partir de então as disputas políticas colombianas ficam marcadas pela forte violência e pela partilha do poder entre o partido liberal e o partido conservador, restando à grande parte da esquerda recorrer à luta armada nas décadas seguintes. Gustavo Petro foi um desses militantes. Durante os anos oitenta integrou o M-19, movimento revolucionário que buscava subverter o poder oligárquico colombiano sustentado com forte apoio dos Estados Unidos. A imagem de guerrilheiro foi extremamente explorada pelos opositores do governo e pelas grandes empresas de mídia colombianas. Em contraste, vendia-se durante as eleições a imagem de engenheiro responsável e empreendedor para o candidato direitista Rodolfo Hernández que teve pouco mais de 47% dos votos. A eleição de Gustavo Petro ocorreu ainda como um desdobramento das revoltas populares do ano anterior contra o ex-presidente Iván Duque que ficaram conhecidas como estallido social. O grande movimento que se opôs ao governo autoritário de Iván Duque conseguiu institucionalizar boa parte das suas pautas através da candidatura de Gustavo Petro. Contudo, tal candidatura foi costurada em uma ampla aliança entre os setores da esquerda com componentes de centro e direita formando a coalizão “Pacto Histórico”. A chapa foi composta também pela candidata à vice-presidência Francia Márquez, primeira mulher negra a ocupar o cargo, militante popular e advogada defensora das comunidades pobres e do meio ambiente contra os abusos das empresas mineradoras. A candidatura de Francia Márquez marcou o caráter profundamente popular a que o novo governo se propunha. Apesar de eficaz eleitoralmente em 2022, a frente ampla conformada para a eleição trouxe consigo as contradições que levariam à debilidade do governo no presente. A estratégia de conciliação da campanha de Gustavo Petro que incluiu setores da direita tradicional colombiana no Pacto Histórico mostrou rapidamente suas limitações durante o primeiro ano de mandato. Gustavo Petro optou sem hesitações por preservar o projeto popular de governo que atende aos anseios de suas bases sociais em detrimento de uma governabilidade mais estável através da manutenção das concessões aos aliados momentâneos que compuseram o Pacto Histórico. Dessa forma, Gustavo Petro levou adiante um projeto reformista de vulto que tem por objetivo avançar em amplas conquistas de direitos sociais para as camadas mais pobres do povo colombiano. 2. O primeiro ano do “governo da mudança”, slogan adotado pelo mandato, se concentrou nas propostas de reforma sanitária, trabalhista e previdenciária, principalmente, e nas políticas de pacificação e transição energética. Tais pontos são extremamente sensíveis às elites colombianas temerosas de qualquer democratização de áreas nas quais são historicamente privilegiadas. O que deu origem a uma grande oposição midiática e parlamentar desde os primeiros meses de governo. Gustavo Petro deu o tom inicial de seu governo com a apresentação da reforma tributária que teve rápida aprovação no congresso. Essa estabeleceu já para o ano seguinte a taxação da renda dos mais ricos em até 1,5% e dos bancos e instituições financeiras em 5% dos lucros. Além disso, a reforma determinou a sobretaxação de produtos nocivos à saúde, o que ficou conhecido como impostos saudáveis, e da exploração de carvão e petróleo, objetivando desincentivar o consumo e aumentar a arrecadação. Através da reforma, o governo espera aumentar a arrecadação em 20 bilhões de pesos em 2023 e destinar a maior parte desse orçamento para a política de Paz Total. A sobretaxação da exploração de carvão e petróleo também está inserida na política de transição energética proposta pelo governo. Essa prevê o fim da dependência de combustíveis fósseis em quinze anos com a redução gradual da produção desses dois combustíveis. A política se estrutura em cinco eixos principais: maiores investimentos em energias limpas e descarbonização; a substituição progressiva da demanda de combustíveis fósseis; maior eficiência energética; a revisão e eventual flexibilização da regulação para acelerar a geração de energias limpas; e a reindustrialização da economia colombiana. Para tal foi determinada a proibição da exploração de reservas não-convencionais (fracking) e a não concessão de novas licenças de exploração de reservas convencionais. A empresa Ecopetrol deverá dirigir o processo de transição energética se convertendo em uma empresa de energias limpas e renováveis. Com isso, o governo almeja a substituição da energia de origem fóssil principalmente pela solar e eólica. Essa transição se torna difícil pela grande dependência das exportações de petróleo e de carvão, que tem 95% da sua produção destinada ao mercado externo. A Colômbia possui uma reserva de 2,5 bilhões de barris de petróleo e é o 18º exportador do mundo, tendo 4% de seu PIB em royalties dessa produção, sendo 2,4% destinado aos departamentos e 1,5% para o governo nacional, o que possivelmente vai gerar atritos com as lideranças locais. Gustavo Petro teve também como uma de suas primeiras medidas a demissão de cinquenta e dois oficiais generais das forças armadas e da Polícia Nacional, boa parte ligada a violações de direitos humanos, prática extremamente recorrente nas forças de segurança colombianas. O assassinato de lideranças de movimentos sociais é um fenômeno generalizado no país. Além da repressão ilegal perpetrada pelo Estado contra os movimentos sociais e seus líderes, o cenário das lutas sociais é marcado pela presença de diversos grupos paramilitares ligados ao narcotráfico e à direita colombiana com forte presença no Estado e nos governos locais e nacionais. Essa composição de forças políticas na Colômbia explica em grande parte a relutância dos grupos guerrilheiros em depor as armas e aderir aos acordos de paz com o Estado. Frequentemente os governos nacionais abandonam os acordos, defendendo a retomada da política de enfrentamento bélico que possui forte apelo social nos setores da direita. O governo de Gustavo Petro tem como uma de suas principais propostas a política de Paz Total, através da qual foram retomadas as negociações de paz com as guerrilhas realizadas no governo de Juan Manuel Santos em 2016, cujos acordos foram violados por Iván Duque nos anos seguintes. Como primeiro resultado foi alcançado um cessar-fogo com o Exército de Libertação Nacional (ELN) de seis meses a partir de agosto deste ano e a promessa de retomada de negociações que envolvem o compromisso do governo com diversas questões sociais que compõem as reivindicações do grupo. Esse acordo foi firmado a partir das rodadas de negociação que ocorreram em Havana durante o primeiro semestre de 2023. Para a implantação da política de Paz Total foi criado o Comitê Nacional da Participação com representantes de diversos segmentos como populações dos territórios de conflito, movimentos sociais, sindicatos, empresários e movimentos de vítimas para contribuírem com propostas a serem incorporadas nas negociações dos acordos e na construção da política de Paz Total como um todo. Essa é uma importante ferramenta de diálogo social que potencializa a política de pacificação promovida pelo governo e aumenta as chances de que seja bem-sucedida. 3. Associada à política de Paz Total aparece a nova política em relação às drogas adotada pelo governo. A reversão da política de guerra às drogas, promovida pelos governos desde a década de setenta, foi proposta por Gustavo Petro após cinco décadas de fracassos no combate ao narcotráfico. A guerra às drogas foi um dos principais instrumentos de intervenção dos Estados Unidos na região a partir do governo Richard Nixon em 1971. Os tratados com a Colômbia deram amplos poderes às agências americanas para operarem no território do país sul-americano desde a década de oitenta, possibilitando a intervenção direta e tornando a Colômbia o principal aliado militar dos Estados Unidos na América Latina com a abertura de diversas bases americanas em seu território. Gustavo Petro já no seu discurso de posse apontou para a desconstrução da política de guerra às drogas sinalizando a desarticulação do combate baseado na repressão militar à produção e ao comércio de maconha e cocaína. Em contraposição, o governo passou a encarar o problema principalmente como uma questão de saúde pública e de desenvolvimento no campo. Internacionalmente se posicionou contra a política defendida pelos governos dos Estados Unidos na cúpula do G-20 e nas duas últimas Assembleias Gerais da ONU. Contudo, o projeto de descriminalização e regulamentação do uso e comercialização da cannabis apresentado ao congresso colombiano foi arquivado após chegar à oitava e última rodada de debates no Senado. As mudanças na política de drogas ficam restritas, por enquanto, às iniciativas do governo que não dependem de mudanças legislativas, como a diminuição de operações policiais para o combate ao narcotráfico e a busca pela substituição voluntária dos cultivos. Outro problema associado ao cultivo de ilícitos na Colômbia que está sendo enfrentado pelo governo de Gustavo Petro é a questão agrária. O país possui uma altíssima concentração de terras. 75% das terras produtivas correspondem a pouco mais de 2% dos propriedades e apenas 5% da população detém 87% das terras agricultáveis, segundo o último censo agropecuário do país. Dessa forma, muitos pequenos produtores em áreas isoladas acabam entrando para a cadeia de produção de drogas ilícitas através do cultivo da coca, planta tradicional da região andina, e da maconha. O combate à desigualdade no acesso à terra se torna, portanto, essencial para que os pequenos agricultores não fiquem submetidos ao narcotráfico que controla seus territórios. 4. Objetivando a ampliação do acesso à terra pelos camponeses do interior do país, o governo iniciou um processo de distribuição de títulos fundiários a famílias somando inicialmente 681 mil hectares. O governo vem adquirindo terras improdutivas através da compra em negociação com latifundiários para disponibilização dessas terras para a reforma agrária. Passo importante, porém, ainda muito aquém do necessário para a mudança na estrutura fundiária do país essencial para o combate à fome e à profunda desigualdade que atinge as populações rurais no país. A desigualdade entre as populações rurais e urbanas é um problema que aparece nas diversas propostas de reforma apresentadas pelo governo desde sua posse, como a reforma trabalhista. Essa prevê a formalização do trabalho rural, ainda não incluído na legislação laboral. Além da questão do trabalho rural, a proposta de reforma levada ao Congresso pelo Ministério do Trabalho, reúne noventa e dois artigos que buscam ampliar os diretos trabalhistas do povo colombiano. Estes se concentram na formalização e estabilidade do emprego, no estabelecimento das jornadas diurnas e noturnas, em pagamentos adicionais por domingos e feriados, na diminuição da terceirização e dos contratos temporários, na formalização dos trabalhadores de plataformas digitais, no aumento da licença paternidade e na igualdade salarial de gênero. A reforma sofre forte oposição dos setores liberais e conservadores no Congresso apoiado por entidades patronais e grupos representantes do agronegócio. Essa é a segunda tentativa de reforma trabalhista apresentada pelo governo, já que a primeira foi derrotada no período legislativo anterior no primeiro semestre. A reforma que possuiu maior avanço até o momento foi a sanitária. Apesar de ainda se encontrar em tramite, 82 dos 143 artigos da reforma já foram aprovados e esta segue avançando no Congresso. A reforma sanitária se concentra na ampliação do acesso aos serviços de saúde para uma enorme parcela da população que se encontra aquém da atenção básica. Para tal, prevê o fortalecimento do Sistema Geral de Saúde da Previdência Social para torná-lo universal com foco na prevenção, através de uma rede de Centros de Atenção Primária de Saúde (CAPS) em todo o território com atendimento ambulatorial, emergência, hospitalização, reabilitação, exames laboratoriais e programas de saúde pública. A reforma inclui a diminuição da desigualdade do acesso aos serviços de saúde com o estabelecimento de um CAPS para cada 25 mil habitantes; a criação de um sistema de prevenção de enfermidades, a extinção das Entidades Promotoras de Saúde (empresas que intermediam a prestação de serviços aos cidadãos); a qualificação e acompanhamento de órgãos internacionais, como a OMS e OPAS; a padronização dos valores dos serviços privados; e melhoras nas condições laborais para os profissionais de saúde como qualificação, aumento salarial e autonomia médica. Outro pilar da seguridade social, a previdência também é objeto de reforma pelo governo Petro. A reforma pensional objetiva principalmente a ampliação da cobertura do sistema que hoje mantém uma enorme parcela dos idosos sem acesso à aposentadoria. Através da reforma, todos os contribuintes passariam para o sistema público Colpensiones que seria mantido pelo orçamento público e pela contribuição empresarial e dos próprios trabalhadores. A reforma se estrutura em três pilares: o contributivo, descrito acima, o semicontributivo, para aqueles que chegaram aos 65 anos sem cumprir os requisitos da aposentadoria e o pilar da poupança voluntária que permite ao trabalhador a poupança nos sistemas público ou privado. A reforma segue em tramite no Congresso caminhando para a sua segunda rodada de debates. O conjunto de reformas levadas ao Congresso obviamente trouxe um grande desgaste para o governo durante esse um ano e meio de mandato. As oligarquias rurais, as elites industriais e do setor de serviços, o capital financeiro, comandantes das forças armadas e polícias, lideranças religiosas conservadoras e os principais conglomerados midiáticos desencadearam uma forte oposição às reformas e ao governo de Petro. Iniciaram uma campanha constante de desconstrução de sua imagem tentando repetidamente ligá-lo a escândalos de corrupção. Tática extremamente recorrente contra as lideranças populares na América Latina. 5. Dois episódios em especial trouxeram enorme desgaste ao governo. O caso envolvendo possíveis gravações do embaixador colombiano na Venezuela e o outro sobre o filho de Gustavo Petro, Nicolás, que supostamente teria recebido financiamento ilegal de campanha para o pai. Esses dois episódios, fortemente explorados pelas empresas de mídia de oposição, causaram uma significativa redução do apoio popular ao governo. Esse abalo na imagem do governo e a forte oposição das lideranças locais se refletiu na derrota dos candidatos governistas nas eleições regionais de outubro de 2023. Dos 32 departamentos colombianos, apenas nove foram ganhos por candidatos que se mantêm no Pacto Histórico. E nas 1.100 prefeituras, apenas 21 candidatos apoiados pelo governo foram eleitos. Esse resultado reflete a enorme dificuldade do governo após o racha da coalizão que o levou à eleição no ano passado. O fim da coalizão se deu com a reforma ministerial promovida pelo governo em abril, após a resistência à aprovação da reforma sanitária, que incluiu a substituição da própria ministra da saúde e de outros seis ministros. Essa reforma foi o ponto final na adesão de figuras liberais e conservadoras ao governo. Após esse episódio, Gustavo Petro convocou grandes manifestações de massa em primeiro de maio para aprovação das reformas colocando o apoio popular como fiel da balança, estratégia eficaz até o revés envolvendo seu filho nos últimos meses. Apesar da fragilização da imagem de Gustavo Petro e da difícil governabilidade com o fim da conciliação e a aposta na manutenção do caráter popular e progressista do governo, no mandato de Gustavo Petro se mantém a iniciativa da agenda. O crescimento do PIB em torno de 1% em variação anual e uma queda na inflação que ainda se mantém em um patamar alto de 10,48% ao ano reforçam os desafios do combate à desigualdade extrema da sociedade colombiana através da aprovação das reformas promovidas pelo governo, da transição energética planejada, da política de pacificação conjugada ao combate à fome e a promoção do acesso à terra e a neutralização dos ataques incessantes das elites econômicas, midiáticas e políticas. Willyan Alvarez Viegas é doutorando do Programa de Pós-Graduação em Economia Política Internacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Publicado originalmente em Recortes da conjuntura, vol. I, no. 1. A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.Ajude-nos a manter esta ideia.CONTRIBUA [...] Read more...
18/04/2024Por GERSON ALMEIDA* Quem de nós homologaria um acordo deste jeito? A pergunta do corregedor ecoou no plenário do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em meio à leitura feita pelo juiz Luiz Felipe Salomão do resultado de seis meses de trabalho da corregedoria junto à 13ª Vara Federal de Curitiba, comandada por Daniela Hartz, a juíza que substituiu Sérgio Moro, quando esse renunciou ao cargo de juiz para assumir o Ministério da Justiça no governo de Jair Bolsonaro. O acordo investigado “foi construído de forma sigilosa e ilegal”, sendo que o ex-juiz, Sérgio Moro, a juíza Daniela Hartz e o ex-procurador da república, Deltan Dallagnol, então coordenador da Lava-Jato, teriam “atuado de forma proativa e assumiram de forma indevida o papel de representantes do Estado brasileiro junto à Petrobras e aos norte-americanos”, conforme relatório da Polícia Federal divulgado pelo site Poder360, um dos documentos que embasa a decisão do corregedor do CNJ. A decisão do corregedor está sustentada em mais de mil páginas de documentos e provas obtidos ao longo da sua inspeção, o que lhe permitiu afirmar categoricamente “que tudo era feito com sigilo absoluto, de grau 3, sem nenhuma transparência”; sendo que a análise das datas de reuniões e visitas de procuradores americanos ao Brasil confirma um minucioso preparo para “a realização deste desvio multibilionário”. Recursos que foram manipulados de forma consciente “à margem da legalidade, de forma sigilosa e sem moralidade administrativa” para burlar os verdadeiros representantes legais do país e instituir um órgão de “primeira instância como sendo o Brasil”. Depois de esmiuçar as manobras realizadas até chegar à homologação do acordo pela juíza Daniela Hartz, novamente o corregedor pausa a leitura da sua decisão e lança outra pergunta aos seus pares: “e o dinheiro que foi pago aos EUA, também foi para alguma instituição privada, ou foi para os cofres do Estado americano? Uma pergunta que, ao mesmo tempo, é uma resposta que demonstra de forma irrefutável o conluio que estava em execução, que só não foi consumado inteiramente em razão da reação do STF. O que impediu que os cerca de cinco bilhões fossem desviados do Estado e fossem destinados para a fundação privada que os investigados estavam determinados a criar. Com a fundação, eles queriam assegurar um férreo controle privado sobre esses volumosos recursos do Estado brasileiro, o que só seria possível por meio da corrupção da legalidade e da moralidade, obrigação de todos os agentes públicos. O voto do corregedor é tão rico em detalhes e tão farto em provas, que tornou o argumento da defesa de que o conluio não passou de “uma infeliz iniciativa”, numa pífia tentativa de infantilizar a juíza Gabriela e seus asseclas. Ao contrário, o corregedor demonstrou que houve uma ação consciente com vistas à apropriação de recursos públicos para uma instituição privada, pois “se combinava com o americano para se aplicar a multa lá fora para (o dinheiro) voltar e ser destinado à fundação” e a forma de viabilizar esse desvio foi o acordo homologado pela juíza Gabriela Hartz. Depois deste mergulho na “gestão absolutamente caótica” da 13ª Vara Federal de Curitiba, baseado em farta documentação comprobatória – inclusive depoimento da própria Gabriele Hartz que declarou saber não ser de sua competência – o corregedor estava plenamente preparado para afirmar que “não tenho a menor dúvida da participação da juíza no desvio do dinheiro público para a fundação desejada”. O voto foi tão vigoroso que o ministro Luís Roberto Barroso, presidente do CNJ, teve que alterar o procedimento usual e votou imediatamente depois para tentar persuadir os pares e abriu dissidência ao voto do corregedor e manifestou posição contrária a todos os afastamentos, sem entrar no mérito das acusações e ressaltando o seu não conhecimento do conjunto do relatório feito pela correição do CNJ. Os argumentos de Luís Roberto Barroso em relação a Gabriela Hartz foram a falta de urgência e o fato dela não estar mais na 13ª Vara, além de ser contrário à decisões monocráticas para esse tipo de caso. Não faltou outra pitada de infantilização da atuação da juíza ao afirmar que “essa moça não tinha nenhuma mácula na carreira pra ser afastada sumariamente”, como se fosse a vida pregressa e não um caso concreto que envolve bilhões em dinheiro e uma relação com país estrangeiro à margem de lei que estivesse em análise. Mesmo que a manifestação de Luís Roberto Barroso tenha sido enfática ao ponto de caracterizar o afastamento dos magistrados de “medida foi ilegítima e arbitrária” e tenha defendido a revogação de todas, a votação no plenário lhe deu uma vantagem mínima de 8 x 7 contra a manutenção do afastamento de Gabriela Hardt e Danilo Pereira Júnior; sendo que o afastamento dos desembargadores Thompson Flores e Loraci Flores (TRF-4) foi mantido com elástica maioria de 9 x 5, em favor da posição do corregedor. Quanto a abertura de Processo Administrativo contra todos, apesar de Barroso ter pedido vistas, alguns votos favoráveis foram antecipados e a maioria construída pelo afastamento dos desembargadores do TRF-4 sugere que dificilmente deixarão de ser submetidos ao processo administrativo, durante o qual o trabalho da corregedoria deverá se impor. Em resumo, a decisão do CNJ é histórica e representa que, aos poucos, algumas das mais importantes instituições do sistema de justiça brasileiro estão retomando um funcionamento marcado pelo devido processo legal e decididas a conter os arroubos autoritários que tomaram conta da Lava-Jato e de importantes setores do judiciário brasileiro, que ainda disputam e são fortes, mas não detém mais o domínio sobre a agenda e a opinião pública que tinham outrora. *Gerson Almeida, sociólogo, ex-vereador e ex-secretário do meio-ambiente de Porto Alegre, foi secretário nacional de articulação social no governo Lula 2. A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.Ajude-nos a manter esta ideia.CONTRIBUA [...] Read more...
18/04/2024Por CARLA TEIXEIRA* A decisão do de tornar ilícito o porte de qualquer quantidade de droga é negacionismo científico, racismo institucional e total ausência de compromisso cívico dos senadores com os problemas reais da sociedade O Senado Federal aprovou em dois turnos a Proposta de Emenda Constitucional (PEC), submetida pelo presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), que torna crime a posse de qualquer quantidade de substância ilícita. Na prática é uma resposta direta à decisão do Supremo Tribunal Federal que julga, desde 2015, a inconstitucionalidade da criminalização do porte de drogas, buscando critérios para diferenciar usuários de traficantes. A proibição das drogas, especificamente da cannabis – vinculada por vários estudos históricos e antropológicos aos pretos escravizados do período colonial e imperial, e utilizada nos hospitais de alienados no início da República até que fosse proibida – é mais um expediente do racismo institucional brasileiro. Proibir e criminalizar o porte de substâncias ilícitas amplamente consumidas abre caminho para que sejam utilizadas como moeda em todo tipo de crime, da organização de milícias à invasão de terras demarcadas. Nessa direção, o Estado se converte num agente ativo para prender, matar e construir organizações criminosas essencialmente compostas por jovens negros e periféricos. Estes, sem acesso à educação e oportunidades de emprego digno, tornam-se presas fáceis das organizações criminosas que a cada dia se entranham com mais eficiência nas instituições do Estado, a exemplo do que se passa atualmente no Rio de Janeiro e em São Paulo. De acordo com pesquisa de 2023 realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), 68% dos réus por tráfico são negros; 72% têm menos de 30 anos e 67% não concluíram o ensino básico. Em apenas 13% dos casos há envolvimento anterior com organizações criminosas. Ou seja, é na prisão superlotada que esses quadros vulneráveis são mobilizados pelos grupos criminosos. O Brasil possui a terceira maior população carcerária do mundo, contando quase um milhão de pessoas. Além do custo humano, há as expensas econômicas. O Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) revelou que em 2017 o Rio de Janeiro gastou quase R$ 1 bilhão na guerra às drogas, enquanto São Paulo desperdiçou R$ 4,2 bilhões. A aprovação da PEC de Rodrigo Pacheco, aliada à aprovação do projeto que extingue a possibilidade de saídas temporárias dos presídios – parcialmente vetado pelo presidente Lula por ferir os princípios da dignidade humana – aponta para um futuro temeroso de superencarceramento e prováveis rebeliões, com o crescimento das organizações criminosas e das milícias. Tais aspectos contribuem para o fortalecimento dos grupos da extrema direita que, sedutores com suas soluções fáceis para problemas difíceis, apenas têm a ganhar com uma revolta carcerária a nível nacional, uma vez explícita – mas não enfrentadas – as ligações das milícias e das organizações criminosas com quadros parlamentares e da alta burocracia do funcionalismo público. Como apontou Muniz Sodré em seu livro O fascismo da cor: uma radiografia do racismo nacional, o racismo no Brasil é institucional e intersubjetivo. A PEC de Rodrigo Pacheco é apenas mais uma manifestação disso: negacionismo científico, racismo institucional e total ausência de compromisso cívico dos senadores com os problemas reais da sociedade. Essas e outras medidas evidenciam que na democracia do Brasil atual o parlamento é apenas uma Casa para lamentar. *Carla Teixeira é doutoranda em história na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.Ajude-nos a manter esta ideia.CONTRIBUA [...] Read more...
18/04/2024Por KATIA SANTOS* Homenagem ao lógico e professor da USP, recém-falecido As realizações de Newton da Costa nas áreas da Filosofia, da Matemática e da Lógica tornam supérflua qualquer apresentação minha dos seus méritos. Ele já está de fato consagrado dentro e fora do Brasil, e há inúmeros trabalhos dele e de comentadores à disposição de todos os que quiserem conhecer sua obra e pensamento. Existe, inclusive, um documentário, Espírito de contradição, dirigido por Fernando Severo, onde se pode ver e ouvir o professor falar por si mesmo. No entanto, pela ocasião de sua morte recente, considero importante ressaltar, em poucas palavras, alguns aspectos de sua pessoa que somente aqueles que o conheceram mais de perto saberão. Faço isso, porque a grandeza de seu espírito também se manifesta no modo como se relacionou com inúmeros pesquisadores, alunos e professores. Dentre os muitos e muitos com os quais ele travou contato teórico, estive também eu. Embora não seja afeita a narrativas autobiográficas, vejo como útil falar de alguns aspectos do meu contato com ele. Conheci o professor Newton da Costa no ano de 2015, quando realizava minha pesquisa de doutorado na FFLCH-USP, sobre uma antinomia presente nos fundamentos do pensamento de Arthur Schopenhauer. Ao refletir sobre essa questão, formei a hipótese de que ela poderia ser abordada de uma forma diferente do modo como até então tinha sido, se a lógica paraconsistente, da qual Newton da Costa foi o principal fundador, pudesse ser colocada como sua lógica de base. Sem muita certeza sobre essa possibilidade, entrei em contato com ele, para saber o que achava. Para minha grata surpresa, o professor foi receptivo à minha ideia e me convidou para conversar pessoalmente com ele sobre o assunto. Fiz isso, fui até à sua casa em Florianópolis, e conversamos sobre a questão da filosofia schopenhaueriana que eu estudava e sobre a lógica paraconsistente. Na verdade, eu não sabia à época, mas essas sempre foram características marcantes do professor Newton da Costa, a saber, a abertura de espírito, a curiosidade e o interesse genuíno em problemas filosóficos variados. A questão que eu estudava era desconhecida para ele, porque faz parte de uma temática à qual ele nunca havia se dedicado e que, a princípio, parecia estar completamente fora das suas preocupações lógicas e matemáticas. No entanto, Newton da Costa logo compreendeu as relações que eu fazia entre metafísica, teoria do conhecimento e lógica e, inclusive, apontou a lógica paraclássica como sendo, dentro do campo das lógicas paraconsistentes, talvez a que mais se adequasse à antinomia que eu estudava. Muitos schopenhauerianos e também muitos lógicos não mostraram receptividade ou mesmo compreensão semelhantes: os primeiros, por acharem que o pensamento de Arthur Schopenhauer não tratava de lógica, os segundos, por julgarem que a lógica não se liga a outras partes da filosofia. Houve reações antipáticas e até mesmo furiosas à minha pesquisa. Mas nunca houve hostilidade da parte de Newton da Costa, embora o ambiente filosófico no Brasil seja repleto de descortesia, rivalidade e agressividade entre egos muito inflados. Ele sempre soube lidar com alunos, professores, colegas e colaboradores com interesses muito diversos sem impor suas convicções, sem invalidar as pesquisas dos outros, colaborando em tudo o que estava ao seu alcance. Foi assim que ele sempre lidou comigo, desde que conversei com ele pela primeira vez. Fui em mais uma oportunidade a Florianópolis, quando finalizei meu trabalho de doutorado, para entregar uma cópia a ele, na UFSC, e desde então mantivemos contato frequente por mensagem. Embora já com idade avançada, Newton da Costa nunca deixou de pesquisar, de escrever, de se interessar por filosofia, ainda que se tratasse de algo diferente para ele. Foi assim que dialogamos bastante sobre o filósofo francês Charles Renouvier, sobre o qual ambos passamos a refletir e, inclusive, a produzir juntos. Essa era outra característica de Newton da Costa que vale a pena ressaltar, a saber, sua disposição para adentrar searas novas, para pensar e se aprofundar em temas fora da sua especialidade. Considero essa característica algo notável, porque o mais frequente é que os pesquisadores esqueçam tudo o mais no mundo e olhem única e exclusivamente para a pesquisa iniciada no mestrado ou doutorado, ficando cegos para outras temáticas. Quando isso ocorre é ruim, porque estreita a visão de mundo do indivíduo e o faz acreditar que tudo gira em torno das suas escolhas. A visão de mundo de Newton da Costa, porém, jamais foi estreita. Dentre suas principais preocupações teóricas, dizia ele, estava o problema do conhecimento em geral, e do conhecimento científico em especial. A lógica e a matemática são de fato as bases fundamentais da ciência e de todo conhecimento, e foi justamente nessas áreas que o professor atuou deixando verdadeiras obras-primas, como Sistemas formais inconsistentes e Ensaio sobre os fundamentos da lógica. Qualquer pessoa que se dedique a entender o pensamento de Newton da Costa verá a grandiosidade do que ele realizou, sobretudo quando se reflete sobre o que foi e tem sido a grande problemática da contradição na história da filosofia: o interlocutor aqui é nada menos que Aristóteles. Apesar disso, de tão grandes realizações, não se notava arrogância no seu trato com ninguém, nem ganas de superioridade. Pelo contrário, ele era acolhedor com as pessoas e perseverante na pesquisa, ciente de que a busca do conhecimento é infindável e não se faz sem colaboração. Fará muita falta. *Katia Santos, professora e pesquisadora, é doutora em filosofia pela USP. Nota Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=8gKKabtLA_U. A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.Ajude-nos a manter esta ideia.CONTRIBUA [...] Read more...