Por CLAUDIO KATZ*
O atentado coroou uma escalada de direita, que incluiu todos os ingredientes dos golpes midiático-judiciais
A tentativa de assassinato de Cristina Kirchner é um acontecimento gravíssimo que não se reduz a simples declarações de repúdio. É necessário registar a terrível dimensão deste acontecimento, face a todas as manobras para minimizar, banalizar ou despolitizar o ocorrido.
Não foi um louco à solta fazendo barbaridades. Já se sabe que ele exibe tatuagens de direita e fez declarações furiosas contra os piqueteiros. Embora possa ter agido sozinho, ele transitou pela mesma via dos assassinos que tentaram matar Nicolas Maduro ou Evo Morales. Vale a pena lembrar que os invasores do Capitólio também pareciam lunáticos desvairados quando agiram por instigação direta de Donald Trump.
É importante registrar o pano de fundo da tentativa de magnicídio, uma vez que grande parte do jornalismo se concentra em questionar as falhas de segurança ou as características da arma. Procuram transformar um acontecimento político traumático num mero acontecimento policial.
Não é verdade que “todo o espectro político é culpado” pelo que aconteceu por ter “aprofundado a cisão”. Com esta visão dos dois demônios, diluem-se as verdadeiras responsabilidades. O atentado contra Cristina Kirchner coroou uma escalada de direita, que incluiu todos os ingredientes dos golpes midiático-judiciais. Foi corretamente assinalado que esta operação incitou o ódio, criou o contexto adequado para a agressão e abriu as comportas para uma tentativa criminosa.
O crime frustrado foi a gota d’água na escalada precipitada por um julgamento infame. Este espetáculo foi montado com base numa causa forjada, que carece de provas incriminatórias contra a vice-presidenta. O país estava à beira de uma tragédia devido a uma operação fraudulenta, com vários elementos semelhantes à emboscada que retirou Dilma Rousseff do governo brasileiro.
A falha do tiro acrescentou dramatismo à torrente de violência, que Larreta [Horacio Rodríguez Larreta] impulsionou com suas cercas [referência ao perímetro imposto pelo prefeito de Buenos Aires nas imediações do apartamento da vice-presidenta Cristina Kirchner], seus espiões e seus canhões de água. Estas agressões incluíram insultos inacreditáveis aos parlamentares, emitidos por policiais destacados que portavam balas de chumbo. Esta provocação foi criada para mostrar a repressão que seria desencadeada por um eventual governo do PRO [Proposta Republicana]. O homicida malsucedido também foi motivado pela campanha interminável de mentiras propagadas pelos meios de comunicação hegemônicos.
É importante destacar estas responsabilidades num momento de apelos reiterados para diluir a culpa, no grande diluente denominado unidade nacional. Com mensagens rituais de “repúdio à violência”, muitos direitistas amenizam o que aconteceu para garantir que tudo permaneça igual. Procuram preservar seu domínio descarado do poder econômico, judicial, midiático e policial. Mantendo esse controle, poderão reprogramar outras conspirações e outras tentativas de destituição. Os setores mais extremos já preparam algum tipo de ataque, e é por isso que Patricia Bullrich e Javier Milei minimizam o atentado e evitam condená-lo, em chamativa sintonia com sua reivindicação de porte livre de armas. É o momento de evitar esta contraofensiva com iniciativas drásticas de simples justiça.
Oportunidade de conquistas
O movimento popular conta com uma extraordinária oportunidade de suplantar os direitistas, que já enfrentaram vários fracassos. A farsa do procurador foi demolida e Larreta teve que remover as cercas. Em Juntos por el cambio, reina a divisão e um acerto de contas pelo bumerangue, que subitamente colocou a coalizão de oposição numa posição defensiva.
A direita esperava consumar um golpe devastador contra Cristina Kirchner e ficou desconcertada com a centralidade renovada da vice-presidenta. Já não consideram garantido seu triunfo eleitoral em 2023 e devem levar em conta que esse retorno conservador contrastaria com o novo cenário latino-americano. Esta adversidade impede-os de repetir um lawfare que já foi demolido no Brasil. Também não podem imitar a provocação golpista nas ruas que falhou na Venezuela, num contexto de grande questionamento dos modelos neoliberais no Chile, Peru e Colômbia.
Nas últimas semanas, surgiu uma grande reação espontânea contra o poder descarado dos magistrados e de seus cúmplices midiáticos. Existe um incômodo perceptível com a utilização do poder judicial para perseguir adversários políticos. A resposta democrática da última quinzena ilustra o cansaço com esse tipo de operação. Um cenário contraposto começou a emergir em 2015. O procurador Diego Luciani é um clone de Alberto Nisman, que repete a mesma montagem de causas, com o mesmo apoio da elite de milionários macristas. Mas esse tipo de farsa perdeu credibilidade e atenção. O declínio do impostor Sérgio Moro estende-se à Argentina.
Ninguém sabe qual será o alcance da resposta democrática que irrompe de baixo. Há comparações controversas com o 17 de outubro e com o clima predominante durante o Bicentenário. Mas, em qualquer cenário, já se verifica um ponto de inflexão, e a possibilidade de se alcançar uma vitória semelhante ao “dois por um” é muito visível. Tal sucesso estaria ligado aos julgamentos dos golpistas na Bolívia, aos avanços democráticos no Chile e na Colômbia e ao esperado triunfo de Lula no Brasil.
Para alcançar estes resultados, as demandas concretas devem ser expostas e popularizadas. A punição de todos os responsáveis pelas cercas prejudicaria o projeto repressivo do Cambiemos, a anulação do julgamento da causa Vialidad golpearia o lawfare e abriria o caminho para depurar Comodoro PRO [jogo de palavras entre o partido fundado pelo ex-presidente Mauricio Macri e os tribunais federais localizados na rua Comodoro Py] ou para deslocar os cortesãos. Face à renovada indignação gerada pela desinformação do jornalismo hegemônico, chegou o momento de reatar o debate sobre a lei dos meios de comunicação.
Várias frentes de um mesmo projeto
A batalha democrática em curso coexiste com um corte brutal da renda popular, implementado pelo governo e monitorado pelo FMI. Desde a chegada de Sergio Tomás Massa, este ajuste está sendo processado num ritmo redobrado. Já aprovou um corte de 128 bilhões de pesos no orçamento de habitação, educação e saúde, congelou as receitas estatais, derreteu as aposentadorias, reduz os planos sociais e, em vez de auditar a dívida externa, inspeciona as cooperativas.
Massa realiza a cirurgia que Martín Guzmán e Silvina Batakis adiaram. Implementou tarifas que são a antítese da redistribuição de renda, reavivou o negócio especulativo da dívida pública em pesos e, sem definir uma desvalorização ordenada, já levou a inflação para perto dos três dígitos. Há uma tremenda perda salarial, enquanto toda a recuperação econômica de 2021 foi embolsada pelos capitalistas. Os lucros recordes das grandes empresas contrastam com o milhão de crianças que tiveram que desistir de comer uma refeição.
É importante denunciar esta dramática realidade social, convalidada pelo mesmo governo que espreita a direita. A firme denúncia da perseguição judicial não deve ocultar o ajuste que subscrevem os mesmos funcionários que acossam os tribunais do macrismo. Esta realidade não deve ser encoberta com apelos para subjugar apenas (ou primeiro) os perseguidores de Cristina. São duas lutas simultâneas que se desenvolvem ao mesmo tempo. Não há qualquer contradição entre rejeitar a agressão sofrida pela vice-presidenta e resistir ao ajuste que Massa implementa com o aval de Cristina Fernández de Kirchner.
O julgamento Vialidad deve ser suprimido e o acordo com o FMI anulado. Nesta dupla ação, podemos construir pontes entre o kirchnerismo crítico e a esquerda, que nos permitiriam resistir ao ajuste e por fim aos atropelos judiciais.
A ausência da FIT [Frente de Esquerda] na grande mobilização de sexta-feira 2 obstrui essa convergência. Foi um erro da parte dos setores de esquerda, que se opõem com razão à equiparação míope de CFK com os juízes. Apontaram corretamente como a falta de imparcialidade no julgamento impede que as responsabilidades da corrupção sejam resolvidas, e destacaram que sob a imagem das acusações pomposas reside uma perseguição vulgar. O resultado deste atropelo não é indiferente para a esquerda, uma vez que a punição de Cristina Kirchner constituiria uma antecipação de maiores agressões contra militantes populares.
A partir destas observações corretas, reduz-se a presença nas mobilizações contra o assédio a Cristina Kirchner, dado que só nas ruas será possível derrotar essa arbitrariedade. A ausência na Praça de Maio contradiz tal conclusão. Argumentou-se que esta manifestação foi convocada pelo governo com slogans falaciosos de harmonia social. Mas este apelo não justifica a ausência. O conteúdo de uma mobilização nunca é determinado unicamente pelos termos de sua convocação.
Frequentemente a esquerda participa de passeatas sindicais ou políticas que são organizadas com exigências inadequadas. Participa delas com suas próprias colunas e bandeiras. Desta vez, esqueceu que era uma prioridade repudiar o atentado e exigir seu esclarecimento, na única concentração de massa convocada para concretizar esta rejeição. Tal presença não é incompatível com a denúncia da “paz social”, que, na conjuntura atual, significa curvar a cabeça diante do empobrecimento gerado pela subordinação do oficialismo ao FMI.
É imprescindível afinar todas as decisões políticas na nova conjuntura aberta pelo atentado. Esta agressão suscitou uma grande comoção internacional, entre os líderes, personalidades e meios de comunicação da região e do mundo. Todos ficaram chocados com o que aconteceu. Sabem que uma disputa de grande importância geopolítica está sendo travada na Argentina devido à importância renovada de um país com vastos recursos naturais. Cereais, gás e lítio estão na mira das grandes empresas e constituem o cobiçado espólio das grandes potências.
Por esta razão, abundam as avaliações para elucidar quem governará a Argentina nos próximos anos. O embaixador Marc Stanley já apresentou a demanda estadunidense de controle dos gigantescos negócios em jogo. Acompanharam sua exigência de um governo de coalizão apoiado por Washington pressões para manter a vergonhosa apreensão do avião venezuelano. Fez valer a voz do império, face à total passividade e submissão do governo.
A batalha popular contra a perseguição política e o ajuste tem projeção em numerosas frentes. A Argentina está mais uma vez no centro de várias tormentas. Agir com inteligência, definir estratégias e priorizar a mobilização são três chaves essenciais para obter vitórias e construir um projeto emancipatório.
*Claudio Katz é professor de economia na Universidad Buenos Aires. Autor, entre outros livros, de Neoliberalismo, neodesenvolvimentismo, socialismo (Expressão Popular).
Tradução: Fernando Lima das Neves.
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