Por ARI MARCELO SOLON*
Hegel disse que essa é a obra mais bela de todos os tempos e também disse que a tragédia grega não se repete nunca mais
No capítulo IV, do livro IV da Fenomenologia do espírito, Hegel estabelece um mecanismo que move a história: é a luta pelo reconhecimento. É uma luta em que duas autoconsciências lutam pelo puro prestígio. Isto é mais materialista que a luta de classes, mas engloba a luta de classes.
Pelo que se luta? Pelo desejo do outro. Isso gera, de um lado, a figura do mestre que se impõe como dono do trabalho e de outro escravo que, para não morrer, trabalha para o mestre. A beleza da Fenomenologia do espírito de Hegel, que também é uma fenomenologia no sentido de Husserl e de Heidegger, é que não se dá apenas no plano da Selbstbewusstsein (autoconsciência), mas no plano histórico.
No Livro VI, o mundo antigo e a consciência ética, Hegel menciona uma única vez a tragédia de Antígona. Creonte é o guerreiro e, no mundo antigo, os donos são os guerreiros que fazem guerra pelo reconhecimento. Creonte representa a universalidade da polis. Antígona representa a particularidade da mulher. Contra a polis universal, Antígona representa a religiosidade subterrânea, a da religiosidade ctônica (a olímpica é representada por Creonte). Hegel disse que essa é a obra mais bela de todos os tempos e também disse que a tragédia grega não se repete nunca mais.
Por que Antígona é a verdadeira tragédia? Por não ter solução. Antígona deve aceitar seu destino e Creonte o seu, como em Édipo Rei. Não tem como Antígona fazer valer perante a polis a sua liberdade religiosa. Não há uma potência perante a polis grega. Com o surgimento do cristianismo, la mauvaise conscience, e do direito romano, temos uma nova fase desta luta pelo reconhecimento. No Estado romano que vigora até a revolução francesa, o escravo não é mais escravo, é pseudoescravo, e o mestre não é mais mestre, é pseudomestre.
Esta luta pelo reconhecimento se dá no desejo de igualdade formal: Estado soberano, liberdade contratual, propriedade privada.
Como é possível, se não há tragédia? Afinal, só Antígona é uma tragédia, isto é, só os gregos são capazes de elaborar tragédias. No entanto, há as tragédias de Shakespeare. Hegel com fineza percebe que as tragédias modernas são tragédias escritas por intelectuais, mais próximas de comédias. Em Hamlet, no final, a vista se exerce no dinamarquês que, depois de todo aquele morticínio, irá trazer paz para as terras. Esta, no entanto, ainda não é o verdadeiro Anerkennung, o verdadeiro reconhecimento. Na era do direito burguês cristão, você tem pseudoescravos e pseudoburgueses, mas não há verdadeiros cidadãos.
Quem elimina a tragédia? O Estado soberano, a propriedade privada e a liberdade contratual e Napoleão, com os direitos humanos, em 1807. Hegel ouviu de sua janela os canhões da batalha de Jena e, então, concluiu a Fenomenologia do espírito. A sincronicidade explica o fim da história da filosofia. A luta pelo reconhecimento se torna verdadeira. De um lado, um cidadão que trabalha e luta, de outro, o imperador que, segundo Hegel, é o espírito objetivo que passou por sua janela.
Desde 1807 não há mais filosofia e necessidade de luta. O Estado vira um Estado kantiano, cosmopolita, de direitos humanos. Todos são reconhecidos homogeneamente. “Professor, tem guerra desde então”, seria uma indagação possível. Não se vocês entenderem Aristóteles: em ato tem guerra, mas em potência não há mais. O désir, o desejo, roubado por Lacan deixa de ser puramente humano. É o que Marx fala: de dia eles vão caçar, de noite jogarão bilhar. Antígona só existe como crime, e não como direito. Como criminosa, viola a lei da pólis e consegue reconhecer sua liberdade religiosa. No Estado pós-napoleônico é possível fazer uma ADIn. Até as crianças são cidadãs.
Foi reconhecido pelo STF que os sabatistas não estão aqui para defender seus interesses particulares, mas seus interesses de cidadãos, afinal, o ENEM se tornou algo obrigatório, e antes não o era. Querem participar da educação universal. A análise de Hegel é tão perfeita que Kojève explicou para Lacan, em um curso de 1936. Depois, Kojève morreu. Ele morava em um subúrbio, em Vincennes, e Lacan foi até a casa dele roubar a cópia anotada da Fenomenologia do espírito. Não era contra, pois o sujeito pode se apropriar de todos os trabalhos intelectuais.
*Ari Marcelo Solon é professor da Faculdade de Direito da USP. Autor, entre outros, livros, de Caminhos da filosofia e da ciência do direito: conexão alemã no devir da justiça (Prisma).
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