O lixo humano

Imagem: Basil MK
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Por SAMUEL KILSZTAJN*

A criminalização da droga, através da lucrativa venda clandestina, só favorece o crime organizado. A liberação das drogas não recruta novos adeptos, até diminui a prevalência do uso de drogas

Às segundas-feiras, costumo levar para o quartinho de lixo do meu prédio os parcos detritos que acumulo na semana, devidamente embalados, porque às terças-feiras pela manhã costuma ser recolhido o lixo reciclável. Nesta segunda-feira me dirigi ao quartinho mais cedo do que de costume e fiquei estarrecido com a sujeira, cascas de bananas espalhadas pelo chão, papéis, vasilhames etc.

Procurei o porteiro para desabafar o meu mal estar e ele se desculpou porque ainda não tinha tido tempo de limpar o quartinho do lixo. Mas eu disse que não estava reclamando dele, mas perplexo com o comportamento dos meus vizinhos de classe média alta. O porteiro disse que estava acostumado com o jeito dos ricos tratarem os empregados e se referiu também ao lixo na rua, no sentido estrito e no sentido amplo, logo logo ele iria limpar toda aquela sujeira.

Entendi que os moradores do prédio de luxo achavam que, como eles pagavam, o funcionário deveria recolher os dejetos deles e que ele se submetia a isso sem rancor, por falta de opção; entendi também que qualquer iniciativa de eu tentar “educar” os meus vizinhos iria acabar prejudicando o porteiro, que é um santo.

Então resolvi desabafar aqui neste espaço meu desconforto com o lixo da cidade no sentido amplo. Quando me perguntam com o que trabalho, algumas vezes não resisto à piada e digo que trabalho com drogas. Quando estávamos envolvidos com a pesquisa Vítimas fatais da violência e mercado de drogas na Região Metropolitana de São Paulo, publicada na Revista Brasileira de Estudos de População, acompanhamos de perto, por acaso, o assassinato de um noia, que deu um calote de 70 reais e foi jurado de morte.

Sua mãe levou o dinheiro, que foi cordialmente dispensado pelos traficantes, eles não queriam o dinheiro dela, eles só queriam manter a ordem no pedaço. A mãe mandou o filho sair de férias, para a casa dos parentes em Minas Gerais. Seis meses depois, o noia voltou. Estava brincando com as crianças num domingo em frente à casa dos pais quando foi baleado por dois rapazes conhecidos da família. No boletim de ocorrência por homicídio, lavrado na região metropolitana de São Paulo, consta autoria e motivo desencadeador do crime desconhecidos.

Os homicídios atingem majoritariamente os jovens, pobres e descartáveis pequenos traficantes do varejo, que vivem nas franjas do crime organizado. A “lei do silêncio” e um código penal cáustico protegem, desde a base, a alta hierarquia do tráfico de drogas; 95% dos boletins de ocorrência que envolvem homicídios são preenchidos com autoria e motivo desencadeador do crime desconhecidos. E, para dizer que fazem alguma coisa, como não? as elites hipócritas que vivem do comércio ilícito perseguem os noias que são produto e vítimas do narcotráfico.

Aplaudida pelos cidadãos ordeiros, a polícia invadiu a Cracolândia e dispersou os noias sem se preocupar com o seu destino. O assalto e o êxodo humano foram acompanhados por repórteres cooptados pela heroica polícia para certificar o estado das instalações comunitárias dessa gente. Bandos de noias vagam agora nômades, alocam-se e alternam as ruas dos Campos Elíseos, de onde são continuamente desalojados como lixo humano. Em vão pode-se esperar por sua morte, porque embora morram, os atuais noias são prontamente substituídos por novas levas produzidas pelo tráfico.

Apesar do estereótipo sobre o uso de drogas entre marginais, todas as pesquisas apontam que o consumo de drogas está fortemente associado a pessoas de alto nível de renda. Mas, embora a prevalência do uso de drogas seja maior nas classes sociais abastadas, o varejo do tráfico envolve preferencialmente as camadas pobres da população. Para quem não vê perspectiva de sair da pobreza, o brilho do pó, a lucrativa venda ilegal de narcóticos, aparece como uma forma de enriquecimento fácil e rápido, acesso aos prazeres da vida de rico, roupa de grife, carros, mulheres, uísque e cocaína, coisa de gente fina.

Enquanto ganham e perdem facilmente dinheiro, prisão, processos e, por fim, a vida, estes jovens, pobres e pequenos traficantes, estão enriquecendo sim toda uma organização que permanece impune e não é objeto de investigação. A indústria da droga, para gerir o narcotráfico, cria seu próprio código, regras militares de lealdade e submissão, e distribui fartamente armas de fogo moderníssimas. A absoluta falta de opção da população entre o Estado ausente e o tráfico que domina o espaço é muitas vezes confundida como apoio das comunidades ao tráfico.

As vítimas fatais da violência não são pessoas estranhas ao crime, mas os próprios jovens aliciados pela droga que se exterminam mutuamente na lógica do tráfico, ajudados por policiais corruptos que exigem sua parte nos lucros. E para mostrar eficiência, os policiais costumam prender os pequenos vendedores e os microtraficantes do crack, que atuam principalmente na região central da cidade de São Paulo.

Há algo de podre nessa conduta imoral em que a ralé desumanizada é tratada como lixo e é sacrificada de baciada, em que as pessoas da plebe não têm direito à identidade, sucumbem em uma vala comum sem espaço individualizado na mídia, que se alonga por dias quando a violência atinge algum membro da elite que não corresponde ao perfil das vítimas fatais da violência. E, para o cortejo da vítima que tem nome e pedigree, por ironia, sem pudor algum, a mídia se lembra de utilizar as estatísticas impessoais dos homicídios sustentadas essencialmente pelos noias.

A política repressiva não tem produzido os “efeitos esperados” de sustar o uso das drogas hoje ilícitas no Brasil e os crimes associados ao tráfico. Violenta não é a droga em si, violento é o comércio ilegal que alimenta membros da elite policial, econômica, política e jurídica do país envolvidos com o tráfico, que, cinicamente, não se cansam de ficar engordando suas contas bancárias.

A criminalização da droga, através da lucrativa venda clandestina, só favorece o crime organizado. A liberação das drogas não recruta novos adeptos, até diminui a prevalência do uso de drogas. Historicamente, já foi considerado ilegal o consumo de álcool, fumo, café, mate, mandrágora e até de beladona, que levou bruxos e bruxas à fogueira na Idade Média e hoje pode ser encontrada empilhada nas estantes das boas farmácias. A Lei Seca nos Estados Unidos atingiu os bebedores moderados (a massa de obedientes), mas não diminuiu o consumo dos alcoólatras. O sistema de autocontrole instaura-se tão logo cessa o controle oficial. As proibições, pelo contrário, geralmente provocam o crescimento do uso de drogas (de forma irracional) e a violência no tráfico.

*Samuel Kilsztajn é professor titular em economia política da PUC-SP. Autor, entre outros livros, de Do socialismo científico ao socialismo utópico.


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