A Vale S/A na Amazônia

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Por JOSÉ RAIMUNDO TRINDADE*

A reorganização do espaço, a despossessão de um amplo território e a mercantilização das terras

A intervenção estatal e do grande aglomerado empresarial sobre o território se estabelece enquanto interação econômica e política historicamente continuada, com o uso da violência e das relações clássicas de cercamento sobre populações diversas como detalharemos neste texto. O espaço econômico se processa historicamente desde um movimento de favorecimento e orientação da acumulação de capital a partir da lógica estatal-empresarial.

O acompanhamento da intervenção da Companhia Vale S/A na região sudeste do Pará e sudoeste do Maranhão nos possibilita observar em tempo real como a reorganização do espaço, a despossessão de um amplo território e a mercantilização das terras se processam.

Para retomar a análise crítica deste processo de cercamento contemporâneo nos utilizaremos de um trabalho recentemente publicado, trata-se da obra de Juliana Barros, intitulada “A mão de ferro da mineração nas terras de Carajás”. Porém, parcela das considerações aqui arguidas são fruto já de um longo período de pesquisas que realizamos na região, com diversos textos já publicados e que podem ser livremente acessados.[i]

O texto está dividido em duas seções, na primeira abordamos o Estado empresarial e a conformação contemporânea da acumulação mineral na região; na segunda seção observamos como o “consenso das comodities” se impõe desde a ordem neoliberal e da privatização da antiga Companhia Vale do Rio Doce, estabelecendo o cercamento e a apropriação das terras e das vidas das populações da região de Carajás e adjacências na atualidade, muito bem mostrados na obra de Juliana Barros.

O Estado empresarial e a apropriação de terras

A intervenção estatal estabelece os elos mais importantes para dinamização das condições de reprodução ampliada do capital, isso procedendo aos mecanismos de gestão, via políticas públicas e de interação com o capital sob suas diversas formas (industrial, comercial, financeira), bem como agilizando e favorecendo os principais componentes necessários a acumulação: a força de trabalho, a terra e a infraestrutura enquanto parcela central dos meios de produção.

No caso amazônico, a intervenção estatal se deu, inclusive, no próprio processo de estabelecimento de uma população excedente que advinda dos fluxos migratórios principalmente nordestinos possibilitou a estruturação de núcleos urbanos relativamente modernos, porém caracteristicamente inchados sob o ponto de vista demográfico, algo referenciado pela categoria de “superurbanização” estabelecida por Becker (2005).

Os valores de uso que a terra contém podem ser extraídos, mobilizados na produção como “forças da natureza” ou utilizados como a base para a reprodução contínua, de tal forma que os valores de uso da terra podem ser “condições ou elementos da produção” apropriados ou colocados à disposição de uso social ou concentrado privadamente, possibilitando principalmente apropriação de rendas extraordinárias, algo central para se pensar a velocidade e forma de ocupação de novas áreas e fronteiras de expansão capitalista.

No caso da exploração agrícola ou da exploração mineral, a disponibilidade da terra agriculturável ou do subsolo mineralógico constituem condições e elementos reprodutivos do capital fortemente empregados na região Amazônica.     Assim, a produtividade física da força de trabalho empregada nestes ramos varia segundo as circunstâncias naturais, que são monopolizáveis e não reprodutíveis, como assinalou Marx (2017 [1894]).

A intervenção estatal é central no processo de disponibilização dos recursos naturais ao grande capital, seja o vinculado ao extrativismo mineral, seja o destinado ao agronegócio, inclusive com legislações[ii] favorecedoras a formas de apropriação das rendas extraordinárias (lucro suplementar) possíveis de serem extraídas de solo amazônico,[iii] seja mediante a exploração agropecuária, especialmente a “plantation” de soja na região de cerrado e a pecuária extensiva disseminada por toda Amazônia oriental; seja a exploração mineral das grandes jazidas localizadas principalmente no estado do Pará.

Convém referenciar teoricamente que o Estado desenvolve atividades adquirindo meios de consumo do departamento II da economia, na forma de bens salários adquiridos pelos funcionários públicos e adquire bens de produção do DI, trocando-se diretamente renda do Estado por parcela da produção daqueles departamentos.

Esses gastos estatais destinam-se a suprir a infraestrutura física necessária ao desenvolvimento das atividades econômicas e de reprodução social, sendo parcela da infraestrutura econômica necessária à acumulação, como os sistemas rodoviários de transportes, sistema energético e de eletrificação e a estrutura sanitária e de fornecimento de água. A infraestrutura social necessária tanto ao desenvolvimento das condições de reprodução capitalista quanto ao suprimento das necessidades coletivas sociais em geral é o que denominamos de fundo patrimonial público, componente importante das despesas do Estado.

A ocupação econômica da Amazônia nas últimas quatro décadas se realizou com base em grandes empreendimentos, fazendo com que importantes áreas da região fossem inseridas na estratégia econômica mundial do capital transnacional. Esses grandes empreendimentos receberam apoio do Governo brasileiro ainda no período ditatorial através de vários programas: Polamazônia, programas setoriais de base empresarial – programas de pólos pecuários, de lavoura selecionada e do complexo mínero-metarlúrgico na Amazônia Oriental (Ferro-Carajás e Albrás-Alunorte), programa de aproveitamento do potencial hidrelétrico do vales dos rios Araguaia e Tocantins (UHE de Tucuruí) e programa de desenvolvimento dos recursos florestais e uso racional dos solos da Amazônia.

As descobertas de Carajás (ferro) e Trombetas (bauxita) foram marcos que impulsionaram a acumulação no ramo mineral na Amazônia oriental brasileira. Além disso, o Estado estava decidido a impulsionar a ocupação econômica da região e sua integração à acumulação geral através deste ramo estratégico, passando a agir não de forma suplementar, como divulgava a lei (fazer referência), mas diretamente na condução de atividades de levantamento e prospecção, para melhor impulsionar as atividades da área mineral.

Em 1970 fundou-se a Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais (CPRM), a fim de produzir conhecimento mineralógico e colocá-lo à disposição das empresas mineradoras. Entre os programas criados, destacamos o Radam (Radar da Amazônia), para fazer o levantamento aerofotogramétrico de 1,5 milhões de quilômetros quadrados da região, visando observar a ocorrência de minérios.

Em meados dos anos de 1970 vários projetos de grande dimensão começaram a ser implantados na Amazônia Oriental, tais como: projeto Ferro-Carajás e projetos de alumínio (Trombetas e Albrás/Alunorte). No caso da Albrás/Alunorte, o projeto foi fruto de um acordo firmado em 1976 entre empresários japoneses do ramo da indústria de alumínio e os governos do Pará e do Brasil, resultando na criação do Complexo Industrial de Barcarena/PA. O governo brasileiro encarregou-se de oferecer a infraestrutura necessária ao projeto, ficando o governo do Japão responsável pela tecnologia e parcela do financiamento.

Podemos perceber que a Companhia Vale do Rio Doce paulatinamente destacou-se no controle da acumulação de capital na Amazônia. No contexto mineral ela assume um papel dúplice de empresa e aparelho de Estado: um Estado empresário, sempre vinculada ao objetivo da geração privada do lucro.

Ela criou a Rio Doce Geologia e Mineração S/A (DOCEGEO), cujos trabalhos foram significativos, colocando à disposição da CVRD enorme direito de descobertas minerais. Mas estes direitos de exploração foram colocados à disposição de eventuais arrendatários. Neste sentido, Leal afirma que a CVRD “tornou-se, para as corporações do capital, um excelente sócio de suporte de custo” (LEAL, 2010).

O aprofundamento da crise econômica brasileira no final dos anos 1970 reforçou mais ainda os propósitos do governo federal para a Amazônia, culminando na criação do Programa Grande Carajás. A área de influência direta do Programa Grande Carajás alcançou 895.265 km² que, equivalente a 10,6% do território brasileiro e mais de 240 municípios do Maranhão, Pará Tocantins. A província mineral de Carajás e outras áreas do Programa Grande Carajás registram grande incidência de ferro, bauxita, ouro, níquel, cobre, manganês, cassiterita e minerais não metálicos.

A efetivação do Programa Grande Carajás levou em conta diversos fatores, desde a situação brasileira e internacional, seu potencial mineral, até elementos locacionais como a existência de floresta para queimar e transformar em carvão para a produção de ferro-gusa.

O Programa Grande Carajás foi o instrumento governamental mais importante no sentido do aprofundamento do padrão de ocupação econômica com base na grande empresa mineral já em andamento na região. O Programa Grande Carajás foi criado através do Decreto-lei nº 1.813/80, implantado no período de vigência do III PND (Plano Nacional de Desenvolvimento), instituindo um regime especial de incentivos tributários e financeiros para empreendimentos localizados na sua área de atuação.

Esse mesmo dispositivo legal definiu a estrutura administrativa do mesmo a partir de um conselho interministerial que competia conceder incentivos, coordenar, promover e executar as medidas cabíveis a viabilização do Programa Grande Carajás (TRINDADE, 2001).

O projeto “modernizador conservador” se tornou hegemônico na região, mas isso não significou eliminação de conflitos dos mais variados níveis e nos diversos campos, no próprio Estado e no bloco no poder. Além de choques com setores da igreja, o Estado foi envolvido em conflitos com frações do capital e com empresas, até mesmo estatais cada vez mais autônomas. Assim, o Estado autoritário-modernizador também se mostrava fragilizado em certos aspectos.

A pressão destes interesses resultou em fragmentação e indefinições do Estado, que perdeu “poder de decisão em favor do segmento das grandes empresas e bancos, ao mesmo tempo em que contra ele se volta a territorialidade dos grupos sociais na fronteira e a pressão da sociedade civil e da comunidade ambientalista internacional” (BECKER, 2005). Mas a fragilização de que fala Becker deve ser relativizada na medida em que responde à lógica da reprodução do capital.

É isso que nos faz entender um movimento de centralização/fortalecimento e de fragmentação/fragilização, a solução estabelecida pelo próprio capital em seu processo contínuo de apropriação e alienação da natureza e do trabalho foi a privatização do Estado e o estabelecimento da atual fase de acumulação por despossessão na região amazônica como veremos a seguir.

Neoliberalismo e a financeirização da Companhia Vale S/A

O trabalho de Juliana Barros nos remete já atual configuração financeirizada da antiga CVRD, que ao ser privatizada em 1997, numa perspectiva de transferência de parcela do Estado brasileiro para interesses privados fundamentalmente transnacionais cumpre ao atual ciclo de reorganização econômica do espaço amazônico e como se refere o trabalho citado ao atual “consenso de commodities” e “cercamento” das populações que vivem na região, assim a “investigação centrou-se nos processos de aquisição de terras e conflitos fundiários associados aos projetos de exploração mineral que a empresa Vale iniciou a partir dos anos 2000 na região de Carajás”. O livro em tela resultou da tese de doutorado desenvolvido pela autora no IPPUR.

No período de 2005 a 2011, a Vale S.A., acumulou um lucro de R$ 110 bilhões, no período seguinte, marcado pela desaceleração do setor mineral global em decorrência do recuo da economia mundial e de excesso de oferta mineral, o lucro acumulado da Vale S.A., foi de R$ 79 bilhões registrados no período de 2010 a 2020 (conferir Borges e Trindade, 2022). Parte considerável da performance da empresa deve-se ao paulatino processo de transferência do eixo de exploração mineral do Sistema Sul (Minas Gerais) para o Sistema Norte (Pará), sendo que nos últimos anos observa-se uma rápida reorganização em torno da exploração das minas de Canaã dos Carajás, o projeto S11D.

Convém rememorar que a mineração do ferro, no Sistema Norte da Companhia Vale, data de 1985, está localizada em Carajás (Marabá, Parauapebas e Canaã dos Carajá), no estado do Pará, e contém os maiores depósitos de minério de ferro do mundo. As minas estão localizadas em terras públicas para as quais a empresa obteve licenças de exploração. Devido ao elevado teor (66,7%, em média) dos depósitos do Sistema Norte, não é necessário operar uma planta de concentrados em Carajás. O processo de beneficiamento consiste apenas de operações de medição, peneiramento, hidrociclonagem, britagem e filtragem. Após isto o minério de ferro é transportado pela Estrada de Ferro de Carajás (EFC) até o terminal marítimo de Ponta da Madeira, no estado do Maranhão.

Os capitalistas recebem os lucros extraordinários como forma de perpetuidade pelas vantagens minerárias que passam a dispor desde a concessão do direito de lavra pelo Estado, pois o subsolo passa a constituir mero espaço de fruição de bem apropriável privadamente, por mais que a legislação estabeleça a lavra enquanto concessão pública. Assim, os capitalistas minerários se apropriam da renda diferencial possibilitada pelas minas de qualidade superior encravadas no subsolo amazônico, ou seja, numa primeira aproximação, o lucro total percebido pelo capital individual constitui-se de dois componentes: o lucro médio minerário setorial acrescido de renda da terra (lucro suplementar na forma de renda absoluta e renda diferencial).[iv]

O nível desse lucro suplementar é dado pela diferença entre a produtividade individual e a produtividade média, e o preço de produção que prevalece dentro da indústria mineral. Porém essa força natural não é a fonte da riqueza acrescida (mais-valia) e sim somente sua base natural, sendo que a circulação do capital é o que proporciona esse processo, dada a crescente apropriação e transformação em elemento do processo reprodutivo de novas jazidas minerais de teores, facilidade de exploração do filão mineral e localização da mina em relação aos principais centros de demanda internacional.

A continuada expansão da extração de minério por parte da Companhia Vale se manifesta tanto nas enormes massas de minério exportadas pelo Brasil, quanto dos ganhos e lucros extraordinários da empresa, isso ao lado, como refere-se a autora “as comunidades de diversos grupos sociais, como quilombolas, camponeses, quebradeiras de coco, assentamentos, ribeirinhos e indígenas, que vivem nos 27 municípios recortados pela ferrovia no Pará e no Maranhão, foram excluídas do processo de interlocução” e submetidas a um crescente cercamento de suas terras.

O processo de privatização da Companhia Vale do Rio Doce transferiu para o controle do capital privado amplas faixas de terras e consequentemente a apropriação das rendas fundiárias, não somente sobre as áreas de jazidas, mas também sobre gradientes de terras que podem ser tratadas como “ativos financeiros” da empresa, forma de capital também gerador de renda.

Na obra de Juliana Barros a autora mostra as diversas situações em que a Companhia Vale se apropria de novas terras e impõe uma lógica de crescente concentração fundiária e precificação das terras na Amazônia, a autora observa que nas “áreas de assentamento do Maranhão cortadas pela duplicação da estrada de ferro, a empresa é acusada de deteriorar estradas dos assentamentos, soterrar igarapés, atrapalhar o deslocamento de pessoas com veículos”, condiciona a acumulação por despossessão e a crescente apropriação de rendas extraordinárias por parte desta empresa transnacional.

*José Raimundo Trindade é professor do Instituto de Ciências Sociais Aplicadas da UFPA. Autor, entre outros livros, de Agenda de debates e desafios teóricos: a trajetória da dependência e os limites do capitalismo periférico brasileiro e seus condicionantes regionais (Paka-Tatu).

Referências


Aluízio Lins Leal. Uma sinopse histórica da Amazônia (uma visão política). In: TRINDADE, J. R. B.; MARQUES, G. (Orgs.). Revista de Estudos Paraenses (edição especial). Belém: IDESP, 2010.

Berta K. Becker Dinâmica Urbana na Amazônia. In: DINIZ, Clélio C. & LEMOS, Mauro B. (Org.). Economia e Território. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005.

Gedson Thiago e José Raimundo Trindade. Economia política da financeirização no segmento mineral brasileiro: o caso da Vale S/A. In: Revista De Estudos Sociais, 24(49), 45–69.

José Raimundo Barreto Trindade; Wesley Pereira de Oliveira; Gedson Thiago do Nascimento Borges. O Ciclo Mineral e a Urgência de Políticas de Desenvolvimento Local: o caso do município de Parauapebas no Sudeste do Estado do Pará. Revista de Políticas Públicas, São Luís, v. 18, n. 2,

José Raimundo Trindade. A metamorfose do trabalho na Amazônia: o caso da Mineração Rio do Norte. Belém: Editora do NAEA, 2001.

José Raimundo Trindade. Empresas transnacionais, territorialidade e impactos ambientais na região amazônica oriental brasileira. In: Mineração, trabalho e conflitos amazônicos no sudeste do Pará [livro eletrônico]. / organizadores do volume: Celia Regina Congilio, Rosemayre Bezerra, Fernando Michelotti. Marabá, PA : iGuana, 2019.

Juliana Neves Barros. A mão de ferro da mineração nas terras de Carajás. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2024.

Notas


[i] Conferir nas referências.

[ii] As vantagens oferecidas pelo Código Mineral (1967) e pela CF 88 (Art. 176) que define a exploração do subsolo distintamente do solo, sendo que a liberalidade dos direitos de lavra e o controle das mesmas pelo grande capital são parte dessa liberalidade que somente se dá em função do caráter dependente e periférico do capitalismo brasileiro.

[iii] O lucro suplementar surge pela aplicação do trabalho a uma determinada “força natural” que o torna mais produtivo, porém não de uma força natural que esteja à disposição de todo capital no mesmo ramo de produção e sim uma parcela monopolizável e submetida a regras de controle e apropriação privada por uma determinada fração do capital ou pelo Estado capitalista. Os capitalistas recebem esses lucros extraordinários como forma de perpetuidade pelas vantagens naturais que dispõem, sendo que os donos da terra se apropriam desse diferencial, convertendo-o em renda da terra sem que haja diminuição no lucro médio do empresário, ou seja, o lucro total percebido pelo capital individual constitui-se, sob este raciocínio, de dois componentes: o lucro médio acrescido de renda da terra (ou lucro suplementar).

[iv] LT = Lme+RAB+RDI [Lucro Total (LT) = Lucro Médio (Lme) + Renda Absoluta (RAB) + Renda Diferencial (RDI)]. Essa expressão desenvolvemos em Trindade e Paixão (2024).


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