A violência estrutural da sociedade brasileira

Michael Rothenstein, Violência II, c.1973–4.
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Por DENIS RIZZO MORAIS*

O temor de uma revolta semelhante à do Haiti moldou a organização política brasileira, consolidando o controle elitista e a exclusão das maiorias

A sociedade brasileira, desde sua fundação, carrega um traço inescapável em suas relações sociais, políticas e culturais: a violência. Naturalizada ao longo dos séculos, essa violência raramente é reconhecida pela própria sociedade, que, ao mesmo tempo em que perpetua estruturas de exploração e exclusão, projeta uma imagem de cordialidade e tolerância.

Marcos Napolitano observa que o país é marcado por narrativas de violência banalizada, que obscurecem suas origens estruturais. A ascensão de programas policialescos, o alarmante índice de violência contra mulheres e pessoas transgêneras e, principalmente, a persistência de uma escravidão estrutural são algumas das manifestações contemporâneas dessa herança histórica.

Uma das raízes históricas da violência estrutural na sociedade brasileira remonta ao surgimento do grupo denominado Chimangos (Ximangos). Em tupi, “ximango” significa ave de rapina, uma metáfora para a voracidade e o uso da força como instrumentos de poder.

Esse grupo, que posteriormente originará os Liberais e Conservadores, é comumente associado à moderação política (nas escolas de educação básica dá-se ênfase à palavra “moderados”, um atenuante diplomático talvez), mas sua verdadeira natureza é predatória, como indicam suas próprias raízes simbólicas. Comparados aos Caramurus (Restauradores) e Jurujubas (Federalistas – Exaltados), os Chimangos poderiam ser considerados relativamente mais moderados, mas sua alcunha – aves de rapina – revela o uso implacável da violência, seja física ou simbólica.

A manutenção da escravidão é um claro reflexo dessa prática. Esse período foi marcado pela violência, criando uma cultura política em que o conflito e a dominação foram naturalizados como formas de mediação.

Os Chimangos simbolizam não apenas a luta pelo poder, mas também a sistemática exclusão de grandes parcelas da população. Ao concentrar o poder nas mãos da elite, marginalizaram os escravizados, os povos indígenas e as mulheres, perpetuando a violência estrutural. Essa dinâmica continuou nas estruturas políticas subsequentes, consolidando uma tradição de violência nas relações de poder.

Uma comparação com os Estados Unidos pode nos ajudar a entender a dissimulada violência da sociedade brasileira, especialmente na elaboração de suas bases constitucionais. Ao contrário dos EUA, que, nos trabalhos preliminares à sua Constituição, definiu a representatividade dos estados por “coisas” e não “pessoas”, considerando o escravizado como 3/5 de uma pessoa branca (Tâmis Parron), o Brasil evitou uma guerra civil para preservar a escravidão, sem a mesma clareza – embora a clareza estadunidense seja brutalmente trágica.

A indecisão premeditada brasileira entre representar “coisas” ou “pessoas” revela um medo latente: o haitianismo. Como argumentam Ilmar Rohloff de Mattos e Luiz Felipe de Alencastro, o temor de uma revolta semelhante à do Haiti moldou a organização política brasileira, consolidando o controle elitista e a exclusão das maiorias. O instrumental institucionalizado da violência foi possibilitado pelos conhecimentos bacharelescos adquiridos em Coimbra, no que José Murilo de Carvalho chama de homogeneidade das elites.

Esse temor, fundamentado na ideia de que o reconhecimento da humanidade dos escravizados poderia desestabilizar a ordem social, solidificou uma cultura de violência e repressão. O debate entre Visconde de Cairu e José Severiano Maciel da Costa, na Constituinte de 1824, sobre o reconhecimento da cidadania aos escravizados estrangeiros, exemplifica a tentativa de evitar uma revolução social e garantir o status quo, perpetuando a dominação das elites e a exploração das maiorias.

A violência no Brasil não se restringe apenas ao âmbito político e econômico, mas também se reflete na forma como a sociedade se comunica e se percebe. A língua, como ferramenta de expressão e identidade, carrega as marcas de um passado de dominação e exclusão. Parafraseando William Shakespeare, que questiona se uma rosa seria menos rosa se tivesse outro nome, podemos nos perguntar: seríamos menos violentos se reconhecêssemos que somos filhos de aves de rapina, filhos da violência? A resposta, em nossa perspectiva, é sim. O reconhecimento de nossa história violenta é o primeiro passo para a transformação.

Em consonância com esse reconhecimento, algumas iniciativas legislativas, como a Lei nº 10.639/2003, que torna obrigatório o ensino da História da África e da Cultura Afro-Brasileira, e a Lei nº 11.645/2008, que inclui o ensino sobre os povos indígenas, representam passos significativos, pelo menos na teoria, para reparar as injustiças históricas.

Além disso, a implementação de cotas raciais, a equiparação da injúria racial ao crime de racismo e a Lei Maria da Penha são avanços importantes, embora o Brasil ainda esteja distante de superar essas questões. Para tanto, é fundamental que a educação básica compreenda essas transformações de maneira eficaz, criando uma massa crítica que entenda o papel da violência estrutural na formação da sociedade.

A língua, como reflexo da nossa identidade e meio de expressão, continua a carregar a herança de um passado marcado pela dominação. O uso de termos que naturalizam a violência reforça essa cultura, dificultando o reconhecimento de suas origens e consequências. Ao compreender as raízes dessa violência, podemos iniciar um processo de ressignificação e trabalhar para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária.

*Denis Rizzo Morais é mestre em História Econômica pela USP.


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