Por ANDRÉ RICARDO DIAS*
Comentário sobre o filme dirigido por Lírio Ferreira
Sobre o filme Acqua Movie – rodado em 2019 e lançado apenas em junho deste ano – podemos sublinhar o escopo narrativo que busca pensar o arcaico – por vezes, expressão de um passado não elaborado que nos desafia no presente – contido no moderno ou, ainda, o enigma posto ao tempo presente. Esta base narrativa é quase um lugar-comum em nosso cinema e pode exprimir a busca por um entendimento histórico que geralmente se dá por uma tensão expressa em, pelo menos, duas temporalidades e sob um enredo marcado por conflitos e tensões geracionais e de relações de poder.
O filme de Lírio Ferreira parte desta narrativa e se singulariza pela exposição de outro enfoque igualmente compartilhado com tantas outras narrativas cinematográficas cujos enredos se encontram em uma síntese: como o Brasil, o sertão de hoje não é o sertão da miséria milenarista tornada seu sinônimo, mas é também uma atualização de sua formação social arcaica transposta pelas mãos do conservadorismo. E interessa ao filme explorar estas contingências na expressão de certo desregionalismo que se ancora na “brasianização” homogênea espraiada de norte a sul do país nas duas últimas décadas, conduzida pela via do mercado consumidor da nova “idade de ouro” da nossa economia.
Se, neste contexto, passamos de um ciclo da economia básica de consumo representado pelo acesso massificado ao crédito popular, já há algum tempo nos aproximamos da saturação deste modelo que significou certa inclusão social. O cinema feito no Brasil tem produzido o que, talvez, sejam os mais importantes registros e tentativas de compreensão sobre as mudanças no cotidiano dos grupos sociais afetados por tais transformações, desde as dimensões políticas e econômicas, mas também afetivas e psíquicas. Se nos permitirmos algumas comparações, encontraremos várias narrativas que buscaram compreender os fenômenos sociais do início deste século e suas implicações em mudanças culturais no campo e na cidade, tais como a economia doméstica vista em O céu de Suely e, também, a particularíssima indústria têxtil e de confecção no agreste pernambucano em Boi Neon.
Em Acqua Movie, o novo mercado de consumo popular no sertão pernambucano ganha um pequeno espaço em uma curta sequência de imagens que nos introduzem ao cotidiano expressionista de vitrines e “paredões” na cidade de Salgueiro. Estes detalhes aparentemente despretensiosos do cotidiano carregam uma forte tentativa de representar tensões advindas deste novo cenário social que ainda buscamos compreender. Por outro lado, também encontramos no filme a saturação deste modelo econômico, expresso pela mudança de foco da acumulação capitalista para formas já estabelecidas de exploração da terra Brasil à dentro. A desterritorialização e extermínio de comunidades originárias, como vimos recentemente em Bacurau, também é retratada em um subenredo de Acqua Movie. Assim, alcançamos uma visão da particular etapa do nosso capitalismo periférico que atualiza nossa formação colonial: a destruição programada de formas de vida em comunidade e a dissolução das relações de pertencimento e de vivência com a terra.
Em estilo roadmovie, conectando problemas políticos que passam pela questão indígena e a propriedade da terra a partir de um vértice pontuado pelo conservadorismo oligárquico, o filme se liga a Árido Movie, o filme-movimento do mesmo diretor.
A questão da transposição das águas do rio São Francisco perpassa o filme carregando as contradições que a envolvem, desde as problemáticas ambientais decorrentes do projeto, a transformação da relação entre as comunidades tradicionais e a cultura de convivência com o semi-árido, mas também o alcance das águas às populações antes castigadas pelos períodos de secas sazonais.
Um eterno-retorno transgeracional
Em Acqua Movie, Jonas (Guilherme Weber) é um renomado jornalista que atua e mora em São Paulo. Pai de Cícero (Antônio Haddad), um garoto de 12 anos, o jornalista morre precocemente. De origem sertaneja e membro de uma família oligárquica da região em Pernambuco, Jonas fizera o caminho ao sul, trajeto percorrido por tantos conterrâneos seus debandados pela miséria há não muito tempo. Mas o faz não por razões econômicas, mas como libertação de outro destino: da convivência familiar e de se fazer ele próprio uma representação do coronelismo do seu clã.
A morte de Jonas desperta um curioso desejo em Cícero, que o camufla como realização de um desejo do seu pai: depositar suas cinzas em Rocha, cidade onde este nascera. Duda (Alessandra Negrini), mãe de Cícero e companheira de Jonas, surge após esta morte em meio a uma relação conflitiva com pai e filho devido à sua ausência, motivada pelas suas atividades como documentarista indigenista. Do trabalho com povos indígenas na Amazônia, Duda chega a São Paulo e parte com Cícero em direção ao sertão pernambucano. E, aos poucos percebemos que não são as cinzas do pai que rumam a um jazigo no Sertão. Este curioso afeto que mobiliza Cícero – talvez o mais sertanejo dos nomes – demarca o retorno dos muitos Cíceros desterrados.
Embora o pai odiasse sua família e renegasse esta origem, o filho não só assume esta tarefa do retorno como a justifica à mãe como a realização de um desejo de Jonas, o que, já sabemos, não é verdade. Desta forma, Cícero impõe este desejo ao pai ao mesmo tempo em que o contraria… Ou será que recebe deste pai essa urgência do passado por um intuitivo chamamento a um acerto de contas? Ao tempo em que introjeta este delírio do regresso na forma de uma arcaica sina cícero-sertaneja, o filho pode, hoje, fazer emergir destas águas os dilemas e traumas do pai que não poderiam restar irresolutos.
Entretanto, este regresso não pode ser efetivo porque Rocha não há… Se a Rocha à qual o Pai renegou não há, à Nova Rocha pertenceria ainda menos. A cidade fictícia de Rocha fora inundada pelas águas do Rio São Francisco no contexto das obras para a transposição do rio e construções de barragens. Rocha não há, mas a Nova Rocha atualiza a cidade e sua dinâmica. Transpôs-se a cidade tanto quanto o rio, mas assim como as águas, a cidade continua a mesma – ou não. As relações de mando e de cabresto, agora mediadas por novos mecanismos de poder, são transpostas para este novo lugar. Através destas transposições de poder e de afetos, os Cíceros retornam e podem reconhecem o que sobrou de seu desterro. Já não há cidade e nem seria necessário que lá estivesse.
A violência oligárquica é atualizada junto com a nova cidade. E aqui entra a modernização conservadora das últimas décadas e seus desdobramentos na região, da qual resulta um curioso e cafona neocoronelismo, não mais a tragédia protagonizada pelos velhos coronéis, mas sua forma atual como farsa violenta, bovarista e financeirizada, retratada na violência sofrida por Duda e Cícero, drama que ocupa quase todo o filme e que atualiza os dilemas que presumidamente Jonas vivera. Neste contexto, destacam-se as caricaturas neooligárquicas das personagens de Augusto Madeira, Marcélia Cartaxo e Zezita Matos como personificação desta modernização contraditória e da qual poderia emergir outro título para o filme: “o kitsch, a transposição, o sertão e o conservadorismo”.
E, por fim, Cícero pôde pôr a termo este ciclo, se retirando de uma repetição transgeracional, efetuando definitivamente um desenraizamento: lança aquelas cinzas nas águas do rio na altura das margens habitadas pela comunidade indígena que lhe deu abrigo e proteção frente às investidas da família paterna contra mãe e filho. Cícero revive o conflito paterno e encerra a história eternizando seu degredo. Este acontecimento se dá em uma bela sequência que contempla um contexto no qual o depósito das cinzas no rio toca uma experiência de ancestralidade que se dá entre as águas, a espiritualidade indígena e o ato libertador performado por Cícero. Agora, assim como aquele sertão geográfico, este sertão particular já não há – ou fora inundado por outras águas.
*André Ricardo Dias é professor de filosofia no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sertão Pernambucano (IF Sertão PE).
Referência
Acqua Movie
Brasil, 2019, 105 minutos
Direção: Lírio Ferreira
Roteiro: Lírio Ferreira, Marcelo Gomes
Elenco: Alessandra Negrini, Antonio Haddad Aguerre, Aury Porto