Por ANSELMO PESSOA NETO*
Comentário sobre a vida, a obra e a morte do artista plástico
Os dados civis de Adir Sodré, ovvero, Didí Sodré, não falam de sua arte, diria quem matou o autor. Eu estou do lado oposto dessa “razão teórica”. Quem morreu foi Adir Sodré, não foi a sua arte. Essa efeméride é para Didí Sodré, não para a sua arte. Mas a arte é do Adir, é por causa da arte do Adir que o Didí está aqui. E que bosta falar do amigo morto, e ainda teria que esquartejá-lo? Separá-lo em partes? Talvez com outros artistas fosse um exercício possível (não conheço nenhum deles), mas com o Adir/Didí, não.
Didí era do Mato Grosso, de Rondonópolis, mas isso era só um dado na sua carteira de identidade. Didí era cuiabano, Didí era do Pedregal! Nem Didí, nem a sua arte, poderiam ser alguma coisa sem o Pedregal: Didí e o Pedregal são coisas indivisíveis, mesmo sabendo que o Didí mudou muito e que o Pedregal do Didí não existe mais. A consciência de se saber do Pedregal, isso Didí nunca perdeu. Nunca perdeu o sentido da vida dura que é ser do Pedregal.
Didí encarnou mil personagens, da sexóloga Olga Del Volga às puramente travestis Divine e Roberta Close. Encarnou os seus retratados todos, do colecionador Gilberto Chateaubriand ao poeta e crítico Ferreira Gullar, mas todos eles e elas pagavam o pedágio de colocarem os pés no Pedregal. A Nina Hagen de Adir Sodré é uma Nina Hagen do Pedregal. É uma Nina Hagen deslumbrada, autoconsciente do seu deslumbramento, querendo immedesimarsi, se fundir, ser só deslumbramento, mas o Pedregal grita presente!, e a mágica fica a meio caminho.
Em linguagem que o Didí conhecia, mas que rejeitava por uma questão de estilo (ele era artista) o nome disso seria consciência de classe. Didí estudou história, tinha um irmão poeta, cantor e livreiro — e que nós chamávamos, para chatear o Didí, de o artista da família: Antonio Sodré. A morte do Antonio Sodré anunciou a morte do Didí Sodré, mas nenhum de nós quis acreditar nisso, apesar da dor que ela provocou nele e que ele já dizia ser insuportável.
Menino fudido do Pedregal, com 14 anos, não sei como, vira aluno do Ateliê Livre da Universidade Federal de Mato Grosso. A coordenadora do Ateliê é a pintora Dalva Maria de Barros. A madroeira das artes plásticas do Mato Grosso, dos Matos Grossos, é Aline Figueiredo, esposa de Humberto Espíndola, o nosso Siron Franco do Mato Grosso — isso era nós que dizíamos, nós mato grossenses que viemos para Goiânia e que víamos, vemos, o mundo a partir do coração seco, na época da seca, cheio de água, na época da chuva, do Brasil. Quando Mato Grosso se dividiu em dois, acertamos melhor ainda os ponteiros: Humberto Espíndola é o Siron do Mato Grosso do Sul e Adir Sodré é o Siron do Mato Grosso.
Pronto, tem pra todo mundo! E Aline é a grande animadora das artes nos Mato Grossos. É difícil não dever para todo mundo e o Didí sabemos disso. O Pedregal é quase ao lado da UFMT, dá para ir a pé. Mesmo do Pedregal que ainda existe hoje. Não sei se os Adis de hoje continuam indo. Pedregal e universidade. Dois mundos que os dois irmãos souberam integrar. Adir tornou-se um artista de sucesso precocemente, em relação a nosostros. Enquanto ainda cursávamos a graduação, ele já estava ganhando dinheiro e já era famoso. E já ajudava deus e o mundo! Saia distribuindo os seus quadros para nós amigos fazermos dinheiro. A família Sodré passou a viver do Adir também muito cedo. Adir Sodré era um louco muito sério. Sabia o peso do estômago vazio. E disso não descuidava, nem do seu, nem dos estômagos do seu entorno.
Era um estudante de história de esquerda e continuou de esquerda. Tinha uma perfeita noção da divisão em classes da sociedade. Entrava, como pintor, nas casas da alta burguesia, e o Pedregal entrava junto. Sua arte erótica queria falar de opressão. Os grandes mestres que ele mimetizava, Matisse, Picasso, Manet, Tarsila do Amaral, Guignard, nos seus quadros, queriam falar de desigualdades. Adorava os happenings, era o momento em que ele dizia para o público que ele e a arte dele eram uma coisa só. Ele pintava e se pintavacom a vitrola esgoelando. Música, música, música.
Descobria e nos apresentava, nos presenteava, com as suas descobertas. Saiu distribuindo o vinil de Aguilar e Banda Performática. Ele ouvia, nós ouvíamos, na maior altura. Como em tudo era totalmente eclético: da MPB, quando ainda se dizia assim, ao Rock ‘n’ roll visceral. Dos sertanejos bregas, aos nossos compositores e cantores nativos. Dava notícia de tudo o que acontecia no mundo e nas artes, sua casa tinha sempre muitas revistas e livros de arte, mas nunca o vi lendo um livro de forma ordenada, isto é, do começo ao fim, página depois de página. Ele abria os livros. Lia um parágrafo e podia dar aulas sobre aquele autor ou artista. E dava. Uma capacidade de apreensão do conhecimento que eu sabia que existia em teoria, mas que vi se realizando nele. Queria basicamente ouvir música, pintar, conversar com os amigos. Ficar sozinho em casa.
Do seu casamento com Márcia nasceu Nina, Dj que o enchia de orgulho. Ainda vi ele e a Márcia juntos. Todos nós nos casamos mais ou menos na mesma época, mas quando Nina nasceu já nos tínhamos afastados muito. Não conheço Nina, mas sei do profundo amor e orgulho que ele nutria por ela. E tinha o Heitor e o Pimpo. Na verdade, eles eram três. Eu sou o quarto porque Heitor e Pimpo levaram Didí para Barra do Garças. Na época em que se escrevia pelos correios, em um período nos escrevíamos todo dia. Eu em Goiânia, ele em Cuiabá. Quando eu viajava, as suas cartas desenhadas mesmo assim chegavam praticamente todo dia.
Quando Drummond falou para não nos afastarmos muito, ele já sabia que íamos nos afastar. Era um pedido para que não acontecesse o fado. Talvez pela consciência política dele, daquele jovem ambicioso e de grande carreira pela frente, que enfrentava São Paulo e os grandes salões de artes destemidamente, a partir de um certo momento isso se arrefeceu. Ficou mais quieto em Cuiabá. O mundo das artes mudou, ao chamado “Como Vai Você, Geração 80?” o Didí não vai responder mais. Mas o artista Adir Sodré vai ficar a cada dia mais presente. O seu anticonformismo está gravado em todas e cada uma de suas telas e desenhos. Nem o tempo irá apagar. O Didí também ficará conosco. Ele não se divide.
*Anselmo Pessoa Neto é professor de litaratura italiana na UFG. Autor, entre outros livros, de Paisagens do neorrealismo (UFG).