Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA*
A dualidade da agricultura brasileira, que é voltada tanto para o mercado interno quando para a exportação
1.
A agricultura de alimentos no Brasil é exclusivamente voltada para o mercado consumidor interno ou também é uma agricultura de exportação? O Brasil é autossuficiente em relação a alimentos?
Estas perguntas são fundamentais para compreender as dinâmicas da inflação de alimentos no Brasil e sua relação com o mercado internacional. Para respondê-las, cabe abordar a questão de forma sistêmica, distinguindo as cadeias produtivas, os destinos da produção e a autossuficiência alimentar, se é real ou aparente.
Primeiro, a agricultura de alimentos no Brasil não é voltada só para o mercado interno. O país tem um sistema agroalimentar duplo e assimétrico, com produção voltada tanto para o mercado interno quanto para exportação.
A agricultura voltada para exportação concentra-se em commodities agrícolas de alta escala, como soja, milho (principalmente 2ª e 3ª safra ou “safrinha”), carnes (bovina, suína, frango), café, açúcar, algodão, laranja (suco concentrado). Suas produções são altamente mecanizadas, com produtividade muito elevada e grande dependência de insumos importados como fertilizantes e agroquímicos. São produtos inseridos em cadeias globais de valor.
A agricultura voltada ao mercado interno é focada em alimentos básicos in natura ou minimamente processados, como arroz, feijão, hortaliças, mandioca, batata, legumes, leite, ovos e (“de sobremesa”) frutas. Suas produções têm menor escala, produção mais familiar, menos financiamento e maior vulnerabilidade climática e econômica. São mais sensíveis a preços de combustíveis, crédito, clima e infraestrutura.
Formalmente, o Brasil é autossuficiente em alimentos, mas há importantes ressalvas estruturais. De um lado, produz maior volume de alimentos se comparado ao consumido internamente; exporta grandes excedentes de soja, milho, carne, café e açúcar; é considerado um “celeiro agrícola” global.
De outro lado, há limites relevantes como a especialização produtiva e o desbalanceamento interno. O modelo dominante prioriza commodities exportáveis, não a diversificação alimentar interna.
2.
Muitos alimentos necessários para a nutrição básica da população (hortifrútis, feijão, arroz) têm produção estagnada ou em declínio relativo. Isso gera vulnerabilidade à inflação de alimentos, mesmo em um país superavitário no setor agroexportador.
Ainda existe insegurança alimentar. Apesar da autossuficiência em produção, há milhões de brasileiros em insegurança alimentar grave ou moderada. Isso decorre não da escassez física de alimentos, mas de acesso desigual, renda insuficiente e políticas públicas precárias, diante o fracasso do livre mercado.
A dependência de insumos importados surge de a autossuficiência ser condicionada. A produção brasileira depende fortemente de fertilizantes, sementes e agroquímicos importados (especialmente da Rússia, China e Canadá). Choques externos nesses insumos, como os decorrentes da Guerra da Ucrânia, afetam diretamente preço e oferta interna.
Há conexão entre exportações e inflação interna de alimentos. Quando os preços internacionais de commodities sobem, exportar se torna mais lucrativo.
Isso leva a uma redução da oferta interna e, consequentemente, aumento dos preços domésticos, sobretudo se o real está desvalorizado. A paridade diante a exportação passa a definir o preço mínimo viável internamente, mesmo se isso comprometer o poder de compra da população.
Uma síntese, em termos sistêmicos, mostra o Brasil ser autossuficiente em alimentos, em termos físicos e agregados, mas não garante segurança alimentar universal à sua população. Enfrenta tensões entre o agroexportador e o abastecimento interno, com impacto direto sobre a inflação de alimentos, sobretudo em contextos de alta cambial, choques climáticos ou geopolíticos.
Portanto, o Brasil apresenta um sistema agroalimentar dual, caracterizado por uma produção voltada tanto para o mercado interno quanto para a exportação. Embora seja autossuficiente em diversos produtos agrícolas, o país ainda depende de importações para atender à demanda interna de certos alimentos.
3.
Vale a pena apresentar dados atualizados sobre o consumo, exportação e importação de alguns produtos-chave. Por exemplo, no caso do trigo, há dependência estrutural de importações. O consumo anual é aproximadamente 12,8 milhões de toneladas, mas a produção nacional, em 2024, atingiu cerca de 8 milhões de toneladas, com qualidade limitada para panificação.
As importações somaram 6,65 milhões de toneladas, um aumento de 59% em relação a 2023, marcando o maior volume desde 2018. Os principais fornecedores são: Argentina (79,5% do total em novembro de 2024), seguida por Uruguai, Paraguai, Rússia e Canadá.
A dependência externa é atribuída tanto à insuficiência quantitativa quanto à qualidade do trigo nacional. Possui menor teor de glúten, essencial para produtos panificados.
Em azeite de oliva, há quase total dependência externa. O consumo anual atinge cerca de 100 mil toneladas diante uma produção nacional atendendo apenas 2% da demanda interna. Por isso, o Brasil é o segundo maior importador mundial de azeite de oliva, depois dos Estados Unidos.
A produção interna está concentrada principalmente no Rio Grande do Sul e na Serra da Mantiqueira na divisa entre São Paulo e Minas Gerais. Representa menos de 1% do consumo nacional. Por isso, o país é altamente dependente das importações para suprir o mercado interno.
Quanto à soja e ao milho, o superávit tem impactos no mercado interno. A produção estimada de soja em 2025 é de 164,3 milhões de toneladas, um recorde para o país, com aumento de 13,3% em relação à safra de 2024. O milho, na mesma safra 2024/25, tem produção estimada em 119,6 milhões de toneladas, também com forte presença no mercado externo. Apesar do superávit, a priorização das exportações, principalmente de soja para a China (cerca de 2/3 da produção e ¾ da exportação), afeta a oferta e os preços no mercado interno e influencia a inflação de alimentos.
No caso dos óleos vegetais, há autossuficiência com importações pontuais. A produção de óleo de soja, em 2024, atingiu 11 milhões de toneladas, com 9,9 milhões destinadas ao consumo interno. As importações foram de 173 mil toneladas de óleos vegetais, um aumento de 126% em relação a 2023.
Embora o Brasil seja autossuficiente na produção de óleos vegetais, realiza importações pontuais para equilibrar o mercado interno. Acontece especialmente quando os preços internacionais estão mais competitivos.
Síntese: Autossuficiência e Vulnerabilidades
Produto | Consumo Anual | Produção Nacional | Importação (%) | Observações |
Trigo | 12,8 mi t | 8 mi t | ~52% | Dependência estrutural de importações, principalmente da Argentina |
Azeite | 100 mil t | ~2 mil t | ~98% | Quase total dependência de importações para suprir o mercado interno |
Soja | 166,2 mi t | 166,2 mi t | Exportador | Superávit com forte presença no mercado externo |
Milho | 119,6 mi t | 119,6 mi t | Exportador | Superávit com forte presença no mercado externo |
Óleos vegetais | 11 mi t | 11 mi t | ~1,6% | Autossuficiência com importações pontuais para equilíbrio de mercado |
Esses dados evidenciam: embora o Brasil seja autossuficiente em diversos produtos agrícolas, ainda enfrenta vulnerabilidades em relação à dependência de importações para certos alimentos essenciais. Essa dualidade impacta diretamente a segurança alimentar e a inflação de alimentos no país.
*Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Brasil dos bancos (EDUSP). [https://amzn.to/4dvKtBb]
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