Althusser e a ideologia

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Althusser e a ideologia

Por CELSO FREDERICO*

Diferentemente de Gramsci, Althusser incentiva a “guerra de movimento” e a necessidade de destruir o aparelho estatal

Nas páginas de A ideologia alemã encontramos uma concepção epistemológica que entende a ideologia como uma visão distorcida da realidade. No momento em que escreveram o texto, Marx e Engels procuravam se distanciar das ideias de Feuerbach, mas nem por isso conseguiram afastar-se da teoria da alienação que se projeta no entendimento da ideologia como inversão (a “câmara escura”).

Feuerbach havia criticado a filosofia hegeliana por ser uma filosofia alienada que partia da consciência para desta derivar o mundo real. Nasce com Feuerbach a proposta da inversão materialista: a criação de uma filosofia que tenha como ponto de partida o ser e não a consciência. Marx e Engels levaram adiante esse projeto e replicaram a crítica feuerbachiana a Hegel e aos seus discípulos. A ideologia então é vista como falsa consciência à qual os autores opõem o processo social material. Por isso, afirmam que não se deve partir como fazem os jovens-hegelianos da consciência, do que os homens pensam, mas sim dos homens ativos, reais.

Nesse registro epistemológico, a ideologia assume ares de irrealidade, de uma forma de consciência fantasmagórica. Nas palavras de Marx e Engels, a ideologia seria “uma representação imaginária das condições de existência”.

Althusser parte dessa problemática. Observa, porém, que a Ideologia alemã, obra de ruptura, está marcada ainda pela influência humanista e positivista. Para Althusser, o antídoto da ideologia não são “os homens reais, ativos”, mas a ciência. Por isso, contesta a tese da inversão materialista da dialética hegeliana afirmando que “não se obtém uma ciência invertendo uma ideologia” (ALTHUSSER: 1967, p. 168).  A referência aos “homens ativos, reais” é compreendida como uma influência direta da problemática humanista de Feuerbach. Para romper com essa formulação ideológica, Althusser defende a cientificidade do pensamento de Marx. Por isso, influenciado por Lacan, corrige a formulação: na ideologia os homens representam não suas condições reais, seu mundo real, mas sua relação com as condições de existência, portanto, trata-se de uma representação imaginária do mundo real. E esta representação não é uma questão relativa à consciência, mas uma estrutura inconsciente.

 

Modo de produção e ideologia

O marxismo, em Althusser, ao romper com o humanismo, transformou-se numa ciência dedicada ao estudo das estruturas e, portanto, à compreensão da categoria modo de produção. Assim fazendo, ele procurou resgatar o caráter científico do marxismo tornando-o contemporâneo do rigor que o estruturalismo cobrava das ciências humanas.

O contexto em que Althusser marcou sua interpretação estrutural do legado de Marx estava dominado por dois temas que então agitavam o movimento comunista: a discussão sobre o caráter da sociedade socialista e sobre a Revolução Cultural chinesa. Essa discussão, evidentemente, trazia para o centro do debate as relações entre a base material e a superestrutura, bem como uma crítica ao determinismo mecânico. Se a sociedade é socialista, a superestrutura também o é: como explicar então o stalinismo? Qual a necessidade de uma revolução cultural em um país que já é comunista como a China?

Para criticar as visões mecanicistas, Althusser revolucionou a interpretação tradicional da categoria modo de produção. Mas, para isso, precisou também criticar as concepções historicistas e, em especial, sua versão hegeliana. A totalidade em Hegel, segundo observa, é uma totalidade expressiva na qual o todo se faz presente em cada uma de suas partes. Nessa perspectiva, a concepção de história apoia-se na crença de um tempo linear, homogêneo e, também, de um tempo contemporâneo de si mesmo: “todos os elementos do todo coexistem sempre no mesmo tempo, no mesmo presente, e são, pois, contemporâneos uns dos outros no mesmo período” (p. 33).

Althusser critica essa concepção expressiva da totalidade e a visão linear do tempo histórico. Contrapõe à primeira, a concepção de um todo complexo estruturado já dado. Desse modo, quando fala em modo de produção afirma que nele coexistem tempos heterogêneos, níveis diferentes de historicidade das diversas instâncias. Estas, não são partes expressivas da totalidade que as contém, e não mantém entre si relações simétricas que espelham a mesma determinação do todo. A totalidade de Althusser também é estruturada em sua descentração articulada, em seus efeitos estruturais: é, enfim, uma totalidade que substitui a determinação simples da base material pela sobredeterminação, conceito importado da psicanálise.

Os historiadores como Braudel, Labrousse e L. Febvre, afirma Althusser, perceberam o caráter descontínuo do tempo histórico, a existência de tempos curtos, durações médias e longas durações, mas não foram além da constatação, não viram que tais variações são variações da estrutura do tempo. O projeto althusseriano de uma histórica estrutural tem como modelo declarado a antropologia de Lévi-Strauss (p. 48).

Tal modelo não se contenta em ser uma simples “inversão” da dialética hegeliana, a substituição da Ideia pelos momentos sucessivos da economia. Para Althusser, há em Marx uma nova concepção das relações entre base e superestrutura. “Jamais a dialética econômica age em estado puro”; “nem no primeiro nem no último instante, a hora solitária da “última instância” jamais soa” (p. 99). Isto porque em Marx, ao contrário de Hegel, não estamos diante de uma contradição simples, mas do acúmulo de contradições que coexistem na vida social. Althusser apoia-se aqui no texto de Mao Tsé-Tung, Sobre a contradição, que analisa as conjunturas revolucionárias. Mao afirmou que a contradição principal coexiste com as contradições secundárias, que há contradições antagônicas e não antagônicas etc. Desse modo, a visão temporal própria do historicismo hegeliano é substituída por uma visão espacial em que as múltiplas contradições coexistem, que elas são hierarquizadas, sobredeterminadas, sendo que a instância econômica é determinante em última instância. Por isso, as modificações ocorridas na base material não modificam automaticamente a superestrutura, pois as suas várias instâncias possuem uma temporalidade própria e um poder de sobrevivência.

O modo de produção é uma estrutura complexa formada por três instâncias (a econômica, a jurídico-política e a ideológica). Assim concebido, ele é interpretado como uma combinatória de instâncias, cada qual com seu nível específico de historicidade. No lugar da antiga causalidade simples (a superestrutura mecanicamente determinada pela base), Althusser propõe a causalidade estrutural ou causalidade metonímica. Entre as instâncias não há uma causalidade direta. A instância econômica continua sendo a determinante “em última instância”, mas outra instância pode exercer o papel de dominante. No mundo feudal, por exemplo, a instância ideológica (o catolicismo) exerce esse papel, pois é ela que garantia a reprodução social. Mas essa esfera está sobredeterminada pelas contradições presentes nas demais instâncias. Assim, a causalidade estrutural procura explicar a combinação entre as várias instâncias de um determinado modo de produção.

A superestrutura, convém insistir, não é um reflexo da base, algo oferecido à visão do pesquisador. O conceito de sobredeterminação designa, contrariamente, a ausência da estrutura – uma estrutura invisível que, não obstante, produz efeitos. Nas palavras de François Dosse: “Esse conceito de eficácia de uma ausência, essa estrutura definida como causa ausente para os seus efeitos, na medida em que ela excede cada um de seus elementos, da mesma maneira que o significante excede o significado, se aproxima a essa estrutura a-esférica que define o Sujeito em Lacan, esse Sujeito construído a partir da falta, da perda do primeiro Significante”. (DOSSE: 1993, p. 341).

Nesse plano extremamente abstrato, a ideologia perde a sua inércia e, em sua autonomia relativa, ganha eficácia podendo exercer, em alguns casos, o papel dominante sobre as demais instâncias do modo de produção.

 

A materialidade da ideologia

Althusser, no célebre ensaio Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado, de 1970, sai da abstração filosófica que caracterizava os seus textos até então, para compreender como se efetua a reprodução das relações de produção. Na verdade, o ensaio é um fragmento retirado de um livro que Althusser pretendia escrever e que só foi publicado postumamente em 1995 a partir das anotações deixadas pelo autor (ALTHUSSER: 2008). A compreensão da teoria sobre os aparelhos ideológicos torna-se mais clara quando se leva em conta o momento histórico em que as ideias foram gestadas e quando inserida no livro do qual é apenas uma parte.

Diversos intérpretes já observaram que o vendaval de 1968 era uma possibilidade inexistente na obra de Althusser (como, aliás, em outros autores). Althusser, numa avaliação otimista logo desmentida pela história, viu aquele acontecimento, bem como as lutas pela libertação nacional nos países colonizados e o movimento dos negros nos Estados Unidos e das mulheres em diversos países, o prenúncio de uma irresistível ofensiva socialista.

Numa previsão delirante, afirmou: “Estamos entrando em um século que verá o triunfo do socialismo na terra inteira. Basta observar a corrente irresistível das lutas populares para concluir que, em um prazo mais ou menos curto, e através de todas as peripécias possíveis, inclusive a gravíssima crise do Movimento Comunista Internacional, a Revolução está, desde agora, na ordem do dia. Dentro de cem anos ou até mesmo, talvez, cinquenta, a face do mundo estará modificada: a Revolução levará a melhor na terra inteira” (p. 26).

Os textos de Althusser, a partir de 1968, sofreram a influência desse diagnóstico voluntarista e de sua aproximação com o maoísmo. Cito apenas um exemplo desta guinada à esquerda: a apresentação que escreveu, em 1971, para o livro de sua discípula Marta Harnecker, Os conceitos elementares do materialismo histórico (HARNECKER, 1973). Esta autora, que foi a grande divulgadora da obra de Althusser, especialmente na América Latina, havia reescrito o livro para a sua sexta edição acompanhando a orientação de seu mestre. As classes sociais que, até então, eram vistas como “suporte” das estruturas são agora postas em ação: a luta de classes, diz Althusser, está “no coração da prática cotidiana do movimento operário. Está no coração de O capital, no coração da teoria marxista”.  Convém lembrar que o trânsito do reino das estruturas para o das práticas assinala, também, a influência de Michel Foucault que, no mesmo período, deixava para trás o estruturalismo rígido para enfocar as práticas – no seu caso, as práticas discursivas.

O elogio ao Foucault de História da loucura, contudo, coexistia com a crítica implacável feita anteriormente aos grupos neoanarquistas que se apoiavam nas ideias daquele autor. Para eles, afirmava Althusser, “a essência da exploração é a repressão” dispersas nas várias instituições e não, como quer o marxismo, no Estado. A irritação de Althusser voltava-se especialmente contra a tese do caráter repressor do saber e sua consequência política: “Daí a necessidade da “revolta” contra a “autoridade do saber”; daí a rebelião “antiautoritária” contra a representação do saber” (ALTHUSSER: 2008, p. 201) – o próprio marxismo era desse modo contestado pelos discípulos de Foucault no movimento estudantil.

Pode parecer surpreendente que num momento de convulsão social Althusser tenha dado ao seu livro o título Sobre a reprodução – o que ecoa as preocupações de Lévi-Strauss sobre a estabilidade das chamadas “sociedades frias”, condenadas a não se desenvolverem. Althusser, contudo, adverte que pretende inicialmente lembrar “a natureza da exploração, da repressão e da ideologização capitalista”, prometendo um segundo volume em que tratará da “luta de classes nas formações sociais capitalistas” (ALTHUSSER: 2008, p. 21).

Como Marx já havia tratado detalhadamente da reprodução das forças produtivas, Althusser se dedica a desenvolver a reprodução das relações de produção.

Defendendo enfaticamente a tese do primado das relações de produção sobre as forças produtivas, critica as passagens em que Marx afirma o contrário como, por exemplo, a Miséria da filosofia (“com o moinho de água, temos o feudalismo, com a máquina a vapor, o capitalismo”), o Prefácio de 1859 e os Grundrisse. Critica igualmente as teses humanistas modernas que afirmam o primado do homem sobre os meios de produção a partir do momento em que, pretensamente, “a ciência tornou-se força produtiva direta” (embora não cite nenhum autor, trata-se de uma referência direta ao movimento “autonomista” e ao seu principal teórico, Toni Negri).

A defesa do primado das relações de produção privilegia a análise sincrônica em detrimento da diacrônica. Mas o que move Althusser não é a contemplação de realidades estáveis e, sim, a denúncia da exploração capitalista que se realiza na esfera produtiva e se perpetua na reprodução. E a reprodução, segundo Althusser, se realiza graças à intervenção do Estado através de seus aparelhos repressivos e ideológicos.

A compreensão da ideologia sofre nesse momento uma súbita modificação.  Ela, agora, habita em lugares institucionais, como a escola, a família, os sindicatos, os partidos etc. Não estamos mais nas análises anteriores que contrapunham a ciência à ideologia e que consideravam esta algo perene, como se pode ver nessa citação: “tudo se passa como se as sociedades humanas não pudessem subsistir sem essas formações específicas, esses sistemas de representações (de diversos níveis) que são as ideologias. As sociedades humanas segregam a ideologia como o elemento e a atmosfera mesma indispensáveis à sua respiração, à sua vida histórica. Só uma concepção ideológica do mundo pode imaginar sociedades sem ideologias” (ALTHUSSER: 1967, p. 205).

Tínhamos, até então, uma compreensão transhistórica em que a ideologia era sempre determinada pela estrutura em todas as sociedades existentes e sobredeterminada, no capitalismo, pela luta de classes. O “imaginário social” em que se constituía a ideologia sofre uma inesperada mudança de rumos quando incluída nos Aparelhos Ideológicos de Estado (AIE). Não se trata mais de uma relação espontânea dos homens com suas condições de existência e nem da “atmosfera” presente em toda sociedade. A ideologia agora está a serviço de um sistema de dominação. Ela perdeu sua “autonomia relativa” e passou a servir de instrumento para assegurar a reprodução social. No feudalismo, dominava o AIE religioso; no capitalismo, o AIE escolar (lembremos aqui que Althusser convidou Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron para lecionarem na École Normale Supérieure).

Com essa inflexão, Althusser observou que Marx “fala da ideologia e que nós falamos dos aparelhos ideológicos de Estado (…). A ideologia não existe no “mundo das ideias” concebido como “mundo espiritual”, mas em instituições e nas práticas sociais dessas mesmas instituições. Seríamos até tentados a dizer que a ideologia existe em aparelhos e nas práticas próprias desses mesmos aparelhos” (ALTHUSSER: 2008, pp. 178-9).

Sendo assim, pode-se constatar que Althusser transitou de uma visão estritamente epistemológica (a ideologia como representação da relação imaginária com as condições de existência, vista sempre em oposição a ciência) para uma visão política diretamente influenciada por Gramsci.

Não há muita semelhança entre os aparelhos privados e públicos de hegemonia listados por Gramsci e os AIE enumerados por Althusser. Os autores diferem, contudo, nas concepções políticas daí derivadas. Gramsci, em nome da hegemonia considera fundamental antes da tomada do Estado a “guerra de posição”, a luta no interior das diferentes instituições. Althusser, a rigor, não desdenha essa necessidade: a luta de classes no interior dos AIE pode fazer “ranger as estruturas”, como no caso dos estudantes em 1968 em sua contestação do AIE escolar ou dos padres progressistas, tendo como exemplo citado Camilo Torres que, ao aderir à guerrilha, confrontou a orientação do AIE religioso. A súbita guinada à esquerda de Althusser levou-o a incentivar a “guerra de movimento” e a necessidade de destruir o aparelho estatal e não a “guerra de posição” preconizada por Gramsci.

*Celso Frederico é professor aposentado sênior da ECA-USP. Autor, entre outros livros, de Ensaios sobre marxismo e cultura (Mórula).

 

Referências


ALTHUSSER, Louis. Análise crítica da teoria marxista (Rio de Janeiro: Zahar, 1967).

ALTHUSSER, L. Sobre a reprodução (Petrópolis, 2008).

HARNECKER, Marta, Los conceptos elementales del materialismo histórico (Córdoba: Siglo Veintiuno, 1973).

DOSSE, François, História do estruturalismo, vol. I (São Paulo: Ensaio/Unicamp, 1993).

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