A devastação ucraniana

Usina Hidrelétrica de Kakhovka, Ucrânia
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por SUSANNE WENGLE & VITALII DANKEVYCH

Os efeitos mais graves da guerra serão os de longo prazo, e irão recair sobre os agricultores do sudeste ucraniano, inclusive a porção que aderiu à Rússia por plebiscito

Quando uma explosão rompeu a barragem de Kakhovka na Ucrânia em 6 de junho de 2023, muitas análises se concentraram nos impactos de curto prazo, incluindo a inundação da cidade de Kherson, as ameaças à Usina nuclear de Zaporozhie e as consequências para a esperada ofensiva de primavera das forças militares ucranianas contra as tropas russas.

Mas os efeitos mais graves serão os de longo prazo, e irão recair sobre os agricultores do sudeste ucraniano, aí incluída a porção que já decidiu incorporar-se à Rússia por plebiscito.

As aldeias rurais dessa região foram inundadas. Estradas, trilhos de trem e canais de irrigação foram destruídos. As colheitas em campos e pomares nos oblasts de Kherson e Zaporozhie foram inundadas e depois deixadas a murchar quando a água foi drenada. O desastre ecológico de longo prazo, por sua vez, se desenrolará nas próximas décadas. A Crimeia, antes uma região conhecida por suas praias ensolaradas e campos de arroz, pode secar sem irrigação.

Nós, autores deste texto – uma cientista política norte-americana especializada em espaço pós-soviético e um economista ucraniano que pesquisa temas de agricultura – avaliamos que, ainda que os efeitos no longo prazo do rompimento da barragem sejam difíceis de quantificar, ele terá um impacto duradouro, em especial sobre o clima do sul da Ucrânia.

As terras agrícolas que não são mais irrigadas e cultivadas, porque os canais são destruídos e o reservatório drenado, secarão, tornando-se mais vulneráveis à erosão do solo e às tempestades de poeira. A produção agrícola pode ser reduzida nos próximos anos, com impactos que se propagarão pelas cadeias de abastecimento de todo o mundo, e afetarão a segurança alimentar global.

A nosso ver, a explosão da barragem tem todas as características de uma estratégia de terra arrasada, destinada a destruir tudo o que possa ser útil ao inimigo.[1] É difícil imaginar qualquer país infligindo danos tão grandes ao seu próprio território.

 

Uma região agrícola fértil

Como outros projetos hidrelétricos soviéticos, a represa de Kakhovka e a usina foram saudadas como precursoras do progresso e de um brilhante futuro socialista no momento em que foram construídas em 1956, no rio Dnieper. Os canais da Crimeia do Norte e Dnieper-Kryvy Rih, construídos nas décadas de 1960 e 1970, transportavam água do reservatório de Kakhovka para a Crimeia, no sul, e para a bacia de minério de ferro de Kryvy Rih e a usina nuclear de Zaporizhzhia, no norte.

Vilas e cidades locais passaram a depender da água e da eletricidade da barragem, assim como do seu reservatório. Cerca de 220.000 hectares de terras agrícolas nessas duas regiões eram terrenos de irrigação, entre eles, mais de 20% das terras agricultáveis de Kherson.

As fazendas de Kherson cultivam melancias e tomates. Os pomares de cereja, damasco, pêssego, maçã e ameixa da região produzem as frutas mais doces da Ucrânia. O sudeste da Ucrânia também cultiva grandes quantidades de soja e girassol, destinadas principalmente aos mercados globais.[2]

 

Campos inundados, água tóxica

A ruptura da barragem inundou os campos ao longo das margens do rio Dnieper. Em 1º de julho, o rio Dnieper, perto do posto de medição de Kherson, havia retornado ao seu nível natural, embora vários assentamentos no território da margem esquerda, antes ocupado pelas forças russas, permanecessem submersos.

Com base nas condições relatadas até agora, espera-se que as plantações deste ano na zona inundada fiquem encharcadas, e grande parte da colheita seja destruída. Culturas perenes valiosas, que dependiam da infraestrutura de irrigação alimentada pelo reservatório, uma vez inundadas vão secar depois. A camada do solo rica e produtiva pode ter sido levada pela água.

Mais a jusante, as bacias dos rios Dnieper, Bug Meridional e Inhulets foram poluídas, colocando em risco a agricultura e a água potável para o sul da Ucrânia. Durante o rompimento da barragem, 150 toneladas de petróleo vazaram e pelo menos 17 postos de gasolina foram inundados. Existe uma preocupação generalizada com os impactos na vida selvagem da região, incluindo diversas formas de nidificação de aves migratórias.

 

Após a inundação, escassez d’água

A inundação do reservatório também colocou em perigo a infraestrutura que até então era estratégica para as exportações agrícolas da Ucrânia, incluindo canais de escoamento, estações de bombeamento hidráulico, portos fluviais e terminais de grãos. Mais importante ainda, sem a água do reservatório, os campos de Kherson, Zaporozhie e Crimeia secarão. Cidades costeiras no Mar de Azov, principalmente Berdyansk, perderam sua principal fonte de água potável.

A Crimeia é particularmente dependente da irrigação. Antes de reunificar-se à Rússia em 2014, as fazendas da Crimeia plantavam arroz e milho. Após a reunificação, a Ucrânia bloqueou o fluxo de água para a península. Quando a Rússia capturou Kherson, em março de 2022, reabriu o Canal da Crimeia do Norte e permitiu que os reservatórios da península se enchessem de novo.

Sem o reservatório de Kakhovka, no entanto, é improvável que a Crimeia receba água para irrigação por pelo menos uma década. A península se transformará, de fato, em um deserto com uma base naval.

 

Menos exportações, preços mais altos

Além da Ucrânia, o rompimento da barragem afetará criticamente o abastecimento global de alimentos. As sementes de girassol, a soja e os cereais do sul da Ucrânia são os principais ingredientes para alimentos europeus processados industrialmente e para ração animal. Eles fornecem as proteínas e lipídios que são os blocos de construção da dieta do século XXI.

Depois que essas commodities são colhidas, elas precisam ser secas, transportadas internamente, armazenadas, para depois serem exportadas. Muitas instalações ao longo do Dnieper e seus afluentes são pontos-chave nas cadeias de abastecimento que conectavam as antigas fazendas ucranianas aos mercados mundiais.

Elevadores de armazenamento e terminais de carga no porto de Kozatske, localizado logo abaixo da barragem, foram inundados poucas horas após o rompimento. Os portos a montante, de Kamianiets-Dniprovska, Nikopol e Energodar estão fechados, e provavelmente ficarão inoperantes pelos próximos anos.

Os preços globais das commodities alimentares dispararam horas após o rompimento da barragem, já que os comerciantes globais de grãos anteciparam a escassez dessas commodities. O subsecretário-geral da ONU para Assuntos Humanitários, Martin Griffiths, afirmou que o impacto na segurança alimentar pode ser significativo.

“Toda aquela área que desce em direção ao Mar Negro e à Crimeia é um celeiro, não apenas para a Ucrânia, mas também para o mundo”, disse Griffiths à BBC. “É quase inevitável que tenhamos problemas enormes, enormes na colheita e na semeadura para a próxima safra. E, então, o que veremos é um enorme impacto na segurança alimentar global”.

 

Um futuro incerto

A perda da barragem de Kakhovka é o mais recente golpe para uma região que sofreu muito durante a guerra. A maioria dos campos ao longo do baixo Dnieper está repleta de minas. Imagens de satélite da NASA mostram safras plantadas em 2022 que nunca foram colhidas.

Antes do rompimento da barragem, a área cultivada em 2023 na Ucrânia já havia contraído 45% e a produtividade geral havia caído até 60% em comparação com 2021, ano anterior à guerra. Com a perda da barragem e do reservatório, é quase certo que as colheitas diminuam ainda mais.

A maioria dos moradores das 80 aldeias inundadas da área são agricultores. Se e quando eles puderem retornar às suas terras, os campos e pomares podem não ser mais capazes de produzir e render o suficiente para sustentar suas famílias, que já sofreram gravemente durante os intensos combates em Kherson e Zaporozhie.

Em 1941, Joseph Stalin ordenou que as tropas soviéticas destruíssem a antecessora da nova represa Kakhovka, para igualmente retardar o avanço, por então, do exército alemão. Ela só foi reconstruída em 1956. Ainda que os esforços russos do pós-guerra possam substituir a represa de Kakhovka até mais rapidamente, é de se esperar que as secas atuais mais severas venham a destruir virtualmente a vida rural no sudeste da Ucrânia, tal como ela existia antes de 6 de junho.

*Susanne Wengle é professora de ciência política na Universidade de Notre Dame (EUA).

*Vitalii Dankevych é doutor em Economia e professor da Faculdade de Direito, Administração Pública e Segurança Nacional, na Polissia National University (Ucrânia).

Tradução: Ricardo Cavalcanti-Schiel.

Publicado originalmente no portal The Conversation.

Notas do tradutor


[1] O rompimento da barragem da Kakhovka foi deliberadamente potencializado pelo regime ucraniano, com a abertura prévia das comportas de todas as barragens a montante de Kakhovka.

[2] A principal origem do óleo de girassol utilizado na cozinha de toda a Europa é o sul da Ucrânia.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
José Costa Júnior Vinício Carrilho Martinez Francisco Pereira de Farias Tadeu Valadares Marcus Ianoni Fernão Pessoa Ramos Luciano Nascimento Afrânio Catani Marjorie C. Marona Claudio Katz Rubens Pinto Lyra Eliziário Andrade Henry Burnett Dennis Oliveira José Luís Fiori Slavoj Žižek Michael Löwy Antonino Infranca Valerio Arcary Elias Jabbour Manuel Domingos Neto Marilia Pacheco Fiorillo Plínio de Arruda Sampaio Jr. Denilson Cordeiro Francisco de Oliveira Barros Júnior Alysson Leandro Mascaro Celso Favaretto Jean Marc Von Der Weid Everaldo de Oliveira Andrade Leonardo Sacramento Celso Frederico João Sette Whitaker Ferreira Carla Teixeira Benicio Viero Schmidt Eleonora Albano Marcos Aurélio da Silva José Dirceu Ricardo Abramovay Luiz Marques Yuri Martins-Fontes Fernando Nogueira da Costa Chico Alencar André Singer Julian Rodrigues José Machado Moita Neto João Paulo Ayub Fonseca Leonardo Avritzer Jorge Branco Eleutério F. S. Prado Marcos Silva Atilio A. Boron José Raimundo Trindade Flávio Aguiar Luiz Werneck Vianna Paulo Capel Narvai Ari Marcelo Solon Vladimir Safatle Gabriel Cohn Ronald Rocha Dênis de Moraes Liszt Vieira Thomas Piketty Fábio Konder Comparato Airton Paschoa Ricardo Musse Daniel Brazil Marilena Chauí Mário Maestri Chico Whitaker Luiz Renato Martins Leda Maria Paulani Eugênio Bucci Érico Andrade Manchetômetro Matheus Silveira de Souza Otaviano Helene Paulo Martins Priscila Figueiredo Bento Prado Jr. Luiz Carlos Bresser-Pereira Andrés del Río Tarso Genro Ricardo Fabbrini Marcelo Módolo Henri Acselrad Caio Bugiato Daniel Costa Gilberto Maringoni Alexandre de Freitas Barbosa Heraldo Campos Antônio Sales Rios Neto Annateresa Fabris Luiz Roberto Alves Bernardo Ricupero João Adolfo Hansen Leonardo Boff Vanderlei Tenório Igor Felippe Santos Salem Nasser Maria Rita Kehl Ricardo Antunes Mariarosaria Fabris Michel Goulart da Silva Kátia Gerab Baggio Renato Dagnino Daniel Afonso da Silva Remy José Fontana João Lanari Bo Ronald León Núñez Juarez Guimarães Rafael R. Ioris Milton Pinheiro Boaventura de Sousa Santos Tales Ab'Sáber Sandra Bitencourt José Geraldo Couto Luis Felipe Miguel Jorge Luiz Souto Maior José Micaelson Lacerda Morais Sergio Amadeu da Silveira Michael Roberts Bruno Fabricio Alcebino da Silva Anselm Jappe Alexandre Aragão de Albuquerque João Feres Júnior Rodrigo de Faria Carlos Tautz Armando Boito Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Osvaldo Coggiola Lincoln Secco Valerio Arcary Lucas Fiaschetti Estevez Walnice Nogueira Galvão Luiz Eduardo Soares Eduardo Borges Lorenzo Vitral Jean Pierre Chauvin Berenice Bento Alexandre de Lima Castro Tranjan Luís Fernando Vitagliano Paulo Fernandes Silveira Bruno Machado Gerson Almeida Ladislau Dowbor Paulo Sérgio Pinheiro Marcelo Guimarães Lima Francisco Fernandes Ladeira João Carlos Salles Flávio R. Kothe João Carlos Loebens Paulo Nogueira Batista Jr Ronaldo Tadeu de Souza Luiz Bernardo Pericás Andrew Korybko Eugênio Trivinho Samuel Kilsztajn Antonio Martins Gilberto Lopes André Márcio Neves Soares

NOVAS PUBLICAÇÕES