Amazônia – garimpo, mercúrio e genocídio indígena

Imagem: Tom Fisk
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Por SAMUEL KILSZTAJN*

O garimpo de ouro é ilegal em terras indígenas, o descarte de mercúrio na natureza é criminoso, os indígenas são protegidos pela Constituição Brasileira, mas o genocídio segue ininterrupto na Amazônia Legal

No século XVI, os portugueses invadiram e colonizaram as terras do Brasil e promoveram o genocídio dos povos indígenas que habitavam a região. Até meados do século XX, os juruás (brancos alienígenas) haviam se restringido a ocupar, basicamente, apenas o litoral do país. Contudo, com a internacionalização do capital produtivo que se seguiu à Segunda Guerra Mundial, os alienígenas resolveram transferir a capital do país para o interior, de modo a tomar posse do Centro-Oeste e da bacia Amazônica.

Quando a capital foi transferida do Rio de Janeiro para Brasília, diversas etnias indígenas, que haviam sobrevivido às perseguições e ao genocídio perpetrado pelos europeus desde o “descobrimento” do Brasil, tiveram que enfrentar a apropriação de terras que até então não haviam sido cobiçadas pelos juruás. Os invasores, com seus cartórios e títulos de propriedade espúrios, inverteram a ordem dos fatores, comportando-se como se os intrusos fossem os milenares habitantes destas terras.

O genocídio dos indígenas, iniciado no século XVI, ganhou então novo ímpeto. O que para os juruás era ocupar um espaço vazio com um museu futurista a céu aberto, para os indígenas foi o grande assalto às suas terras na segunda metade do século XX, que abriu caminho para a rodovia Transamazônica, durante a ditadura militar, e constitui hoje o pesadelo que sangra vivo na Amazônia legal. No compasso da Transamazônica, o meu colega Antônio Delfim Netto, por meio de incentivos fiscais, distribuiu glebas na Amazônia para as grandes empresas do país, como terras devolutas, embora fossem habitadas por indígenas e sertanejos que possuíam a terra, mas não possuíam títulos de propriedade.

O garimpo é ilegal em terras indígenas e o mercúrio é largamente utilizado na amálgama com o ouro na lavagem do minério na Amazônia. O mercúrio, metabolizado pelos peixes, ao ser ingerido por animais e seres humanos se acumula no sistema nervoso e é altamente tóxico, levando à perda da coordenação motora, danos irreversíveis na reprodução e, em casos extremos, à morte. A intoxicação por mercúrio é conhecida como doença de Minamata, diagnosticada em 1956 em vítimas da contaminação de águas residuais da indústria química japonesa Chisso.

Além do garimpo em terras indígenas ser ilegal, o mercúrio utilizado pelo garimpo do ouro provém do comércio também ilegal agenciado por redes de tráfico internacional. A Constituição Brasileira reconhece o direito dos povos originários de manter sua identidade e, portanto, deveria proteger os indígenas da invasão e exposição ao ávido mercado do garimpo de ouro, que tem arregimentado parte da população indígena na defesa de sua extração.

Estudos da Fiocruz constatam elevados níveis de mercúrio entre os povos Yanomami. O neurologista Erik Jennings, da Secretaria Especial de Saúde Indígena, analisou os níveis de mercúrio no sangue de mais de uma centena de moradores do Alto Tapajós. A ONG Repórter Brasil divulgou os resultados da pesquisa de Erik, com 99% da população examinada apresentando níveis superiores ao considerado seguro pela Organização Mundial da Saúde, alguns com nível até 15 vezes superior ao recomendado. Repórter Brasil também lançou recentemente o documentário Relatos de um correspondente de guerra na Amazônia de Daniel Camargos e Ana Aranha em homenagem a Dom Phillips e Bruno Pereira, assassinados em junho de 2022. O Pulitzer Center on Crisis Reporting, através do programa Rainforest Journalism Fund, com inscrições sempre abertas para novas propostas, tem financiado os custos de viagens de jornalistas, escritores e cineastas e divulgado os trabalhos que retratam a grave situação da Amazônia. O documentário Amazônia, a nova Minamata? de Jorge Bodanzky e Nuno Godolphim denuncia o impacto destrutivo do garimpo de ouro e a contaminação por mercúrio do Vale do Tapajós, território dos Munduruku, que ameaça todos os povos indígenas da Amazônia.

O império da mercadoria, que transborda as relações produtivas, transforma tudo em mercadoria, até montanhas, rios, honra etc. Krenak conta que foi procurado por uma grande rede de supermercados para que intermediasse a produção de 10 mil balaios. A rede de supermercados achava que estava fazendo um favor aos indígenas, oferecendo trabalho a eles, mas o Krenak se recusou dizendo que os indígenas não são idiotas, não são adeptos do fordismo.

A doutrina do progresso é um engodo. A mercadoria sempre justifica o progresso técnico, escondendo-se atrás do dever de atender as necessidades dos pobres, eternamente mantidos pobres para que continuem justificando o progresso. O destino dos pobres é passar necessidades básicas em meio à opulência e ao desperdício dos ricos, que vivem cercados por uma parafernália de novos produtos supérfluos de última geração. Estamos atravessando a Era da distopia, uma sociedade do espetáculo, do consumo, do desperdício e da produção de lixo que convive com uma população que revira o lixo das grandes cidades em busca de alimentos e de materiais recicláveis para revenda.

Pedro Álvares Cabral e seus companheiros não solicitaram visto de entrada às autoridades indígenas para desembarcar nas terras do Brasil. Não solicitaram visto, apropriaram-se das terras dos nativos e ainda saíram caçando seus habitantes, uma atitude muito pouco cortês e nada civilizada desses europeus, muitas vezes justificada com o pretexto de civilizar os indígenas, impondo à força sua verdade sobre a deles. Uma atitude, poderíamos dizer, até selvagem por parte desses imigrantes. Os povos autodenominados civilizados carregam em seu imaginário que sua cultura é superior e invejável, e que todos os povos assim chamados primitivos gostariam de ser civilizados como eles.

Leonardo Boff disse que não nos satisfaz o meio-ambiente, pois queremos o ambiente inteiro. Entre as riquezas da Amazônia, o que eu mais gostaria que fosse preservado é a cultura desses povos originários das terras do Brasil, que continuam militando pela vida, apesar de cinco séculos de assalto e genocídio. Nunca me identifiquei como economista, apesar da vida, por capricho, ter me graduado e qualificado como mestre, doutor e titular em economia; mas faço questão de usar todas estas minhas credenciais para me declarar contra o progresso econômico. E, como não sou nativo, também faço questão de utilizar o nome Samuel Juruá na minha apresentação e correspondência com os indígenas. Faço votos para que possamos todos aprender com esses “primitivos” a nos desfazer do peso e dos grilhões da mercadoria, faço votos para que possamos voltar a nos integrar à terra, às plantas, aos animais e à vida comunitária.

E para onde vai todo esse ouro extraído do subsolo da Amazônia? Por incrível que pareça, depois de extraído, depois de todos os estragos que causa, esse festival de horror, o ouro volta para o subsolo, para o subsolo dos bancos centrais, porque é muito pesado para ser depositado nos pisos superiores de suas sedes. E quando o Banca d’Italia vende ouro para o Deutsche Bundesbank, o ouro não viaja de navio nem de trem; tampouco é carregado da pilha de lingotes da Itália para a pilha de lingotes da Alemanha depositadas em um dos muitos bancos centrais, digamos o Federal Reserve. Basta trocar a plaquinha da pilha de lingotes com o nome Banca d’Italia por uma plaquinha onde se lê Deutsche Bundesbank e estamos conversados.

*Samuel Kilsztajn é Samuel Kilsztajn é professor titular da PUC-SP. Autor, entre outros livros, de Shulem, Returnees e Yiddish (https://amzn.to/3ZkegH7).


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