Amazônia – garimpo, mercúrio e genocídio indígena

Imagem: Tom Fisk
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por SAMUEL KILSZTAJN*

O garimpo de ouro é ilegal em terras indígenas, o descarte de mercúrio na natureza é criminoso, os indígenas são protegidos pela Constituição Brasileira, mas o genocídio segue ininterrupto na Amazônia Legal

No século XVI, os portugueses invadiram e colonizaram as terras do Brasil e promoveram o genocídio dos povos indígenas que habitavam a região. Até meados do século XX, os juruás (brancos alienígenas) haviam se restringido a ocupar, basicamente, apenas o litoral do país. Contudo, com a internacionalização do capital produtivo que se seguiu à Segunda Guerra Mundial, os alienígenas resolveram transferir a capital do país para o interior, de modo a tomar posse do Centro-Oeste e da bacia Amazônica.

Quando a capital foi transferida do Rio de Janeiro para Brasília, diversas etnias indígenas, que haviam sobrevivido às perseguições e ao genocídio perpetrado pelos europeus desde o “descobrimento” do Brasil, tiveram que enfrentar a apropriação de terras que até então não haviam sido cobiçadas pelos juruás. Os invasores, com seus cartórios e títulos de propriedade espúrios, inverteram a ordem dos fatores, comportando-se como se os intrusos fossem os milenares habitantes destas terras.

O genocídio dos indígenas, iniciado no século XVI, ganhou então novo ímpeto. O que para os juruás era ocupar um espaço vazio com um museu futurista a céu aberto, para os indígenas foi o grande assalto às suas terras na segunda metade do século XX, que abriu caminho para a rodovia Transamazônica, durante a ditadura militar, e constitui hoje o pesadelo que sangra vivo na Amazônia legal. No compasso da Transamazônica, o meu colega Antônio Delfim Netto, por meio de incentivos fiscais, distribuiu glebas na Amazônia para as grandes empresas do país, como terras devolutas, embora fossem habitadas por indígenas e sertanejos que possuíam a terra, mas não possuíam títulos de propriedade.

O garimpo é ilegal em terras indígenas e o mercúrio é largamente utilizado na amálgama com o ouro na lavagem do minério na Amazônia. O mercúrio, metabolizado pelos peixes, ao ser ingerido por animais e seres humanos se acumula no sistema nervoso e é altamente tóxico, levando à perda da coordenação motora, danos irreversíveis na reprodução e, em casos extremos, à morte. A intoxicação por mercúrio é conhecida como doença de Minamata, diagnosticada em 1956 em vítimas da contaminação de águas residuais da indústria química japonesa Chisso.

Além do garimpo em terras indígenas ser ilegal, o mercúrio utilizado pelo garimpo do ouro provém do comércio também ilegal agenciado por redes de tráfico internacional. A Constituição Brasileira reconhece o direito dos povos originários de manter sua identidade e, portanto, deveria proteger os indígenas da invasão e exposição ao ávido mercado do garimpo de ouro, que tem arregimentado parte da população indígena na defesa de sua extração.

Estudos da Fiocruz constatam elevados níveis de mercúrio entre os povos Yanomami. O neurologista Erik Jennings, da Secretaria Especial de Saúde Indígena, analisou os níveis de mercúrio no sangue de mais de uma centena de moradores do Alto Tapajós. A ONG Repórter Brasil divulgou os resultados da pesquisa de Erik, com 99% da população examinada apresentando níveis superiores ao considerado seguro pela Organização Mundial da Saúde, alguns com nível até 15 vezes superior ao recomendado. Repórter Brasil também lançou recentemente o documentário Relatos de um correspondente de guerra na Amazônia de Daniel Camargos e Ana Aranha em homenagem a Dom Phillips e Bruno Pereira, assassinados em junho de 2022. O Pulitzer Center on Crisis Reporting, através do programa Rainforest Journalism Fund, com inscrições sempre abertas para novas propostas, tem financiado os custos de viagens de jornalistas, escritores e cineastas e divulgado os trabalhos que retratam a grave situação da Amazônia. O documentário Amazônia, a nova Minamata? de Jorge Bodanzky e Nuno Godolphim denuncia o impacto destrutivo do garimpo de ouro e a contaminação por mercúrio do Vale do Tapajós, território dos Munduruku, que ameaça todos os povos indígenas da Amazônia.

O império da mercadoria, que transborda as relações produtivas, transforma tudo em mercadoria, até montanhas, rios, honra etc. Krenak conta que foi procurado por uma grande rede de supermercados para que intermediasse a produção de 10 mil balaios. A rede de supermercados achava que estava fazendo um favor aos indígenas, oferecendo trabalho a eles, mas o Krenak se recusou dizendo que os indígenas não são idiotas, não são adeptos do fordismo.

A doutrina do progresso é um engodo. A mercadoria sempre justifica o progresso técnico, escondendo-se atrás do dever de atender as necessidades dos pobres, eternamente mantidos pobres para que continuem justificando o progresso. O destino dos pobres é passar necessidades básicas em meio à opulência e ao desperdício dos ricos, que vivem cercados por uma parafernália de novos produtos supérfluos de última geração. Estamos atravessando a Era da distopia, uma sociedade do espetáculo, do consumo, do desperdício e da produção de lixo que convive com uma população que revira o lixo das grandes cidades em busca de alimentos e de materiais recicláveis para revenda.

Pedro Álvares Cabral e seus companheiros não solicitaram visto de entrada às autoridades indígenas para desembarcar nas terras do Brasil. Não solicitaram visto, apropriaram-se das terras dos nativos e ainda saíram caçando seus habitantes, uma atitude muito pouco cortês e nada civilizada desses europeus, muitas vezes justificada com o pretexto de civilizar os indígenas, impondo à força sua verdade sobre a deles. Uma atitude, poderíamos dizer, até selvagem por parte desses imigrantes. Os povos autodenominados civilizados carregam em seu imaginário que sua cultura é superior e invejável, e que todos os povos assim chamados primitivos gostariam de ser civilizados como eles.

Leonardo Boff disse que não nos satisfaz o meio-ambiente, pois queremos o ambiente inteiro. Entre as riquezas da Amazônia, o que eu mais gostaria que fosse preservado é a cultura desses povos originários das terras do Brasil, que continuam militando pela vida, apesar de cinco séculos de assalto e genocídio. Nunca me identifiquei como economista, apesar da vida, por capricho, ter me graduado e qualificado como mestre, doutor e titular em economia; mas faço questão de usar todas estas minhas credenciais para me declarar contra o progresso econômico. E, como não sou nativo, também faço questão de utilizar o nome Samuel Juruá na minha apresentação e correspondência com os indígenas. Faço votos para que possamos todos aprender com esses “primitivos” a nos desfazer do peso e dos grilhões da mercadoria, faço votos para que possamos voltar a nos integrar à terra, às plantas, aos animais e à vida comunitária.

E para onde vai todo esse ouro extraído do subsolo da Amazônia? Por incrível que pareça, depois de extraído, depois de todos os estragos que causa, esse festival de horror, o ouro volta para o subsolo, para o subsolo dos bancos centrais, porque é muito pesado para ser depositado nos pisos superiores de suas sedes. E quando o Banca d’Italia vende ouro para o Deutsche Bundesbank, o ouro não viaja de navio nem de trem; tampouco é carregado da pilha de lingotes da Itália para a pilha de lingotes da Alemanha depositadas em um dos muitos bancos centrais, digamos o Federal Reserve. Basta trocar a plaquinha da pilha de lingotes com o nome Banca d’Italia por uma plaquinha onde se lê Deutsche Bundesbank e estamos conversados.

*Samuel Kilsztajn é Samuel Kilsztajn é professor titular da PUC-SP. Autor, entre outros livros, de Shulem, Returnees e Yiddish (https://amzn.to/3ZkegH7).


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Matheus Silveira de Souza João Adolfo Hansen Érico Andrade Marilena Chauí Francisco de Oliveira Barros Júnior Plínio de Arruda Sampaio Jr. Marcos Silva Denilson Cordeiro Eliziário Andrade Anselm Jappe Gerson Almeida Tales Ab'Sáber Leonardo Avritzer Sandra Bitencourt João Lanari Bo Walnice Nogueira Galvão Paulo Fernandes Silveira Eleonora Albano Luís Fernando Vitagliano José Luís Fiori José Raimundo Trindade Michael Löwy Eugênio Bucci Caio Bugiato Alexandre de Oliveira Torres Carrasco João Carlos Loebens Eduardo Borges Paulo Martins Liszt Vieira Bernardo Ricupero Rodrigo de Faria Valerio Arcary Luis Felipe Miguel Maria Rita Kehl Flávio R. Kothe Sergio Amadeu da Silveira Mariarosaria Fabris Jorge Luiz Souto Maior Alexandre de Lima Castro Tranjan Luiz Renato Martins Leonardo Sacramento Salem Nasser Marilia Pacheco Fiorillo Valerio Arcary Yuri Martins-Fontes Chico Alencar Priscila Figueiredo Alexandre de Freitas Barbosa Daniel Brazil Paulo Sérgio Pinheiro Michel Goulart da Silva Antonio Martins José Machado Moita Neto Marjorie C. Marona Francisco Fernandes Ladeira Benicio Viero Schmidt Everaldo de Oliveira Andrade Gabriel Cohn Jorge Branco Renato Dagnino Eleutério F. S. Prado Mário Maestri Slavoj Žižek Luiz Werneck Vianna Ricardo Musse Ronald Rocha Ronald León Núñez Alysson Leandro Mascaro José Micaelson Lacerda Morais João Feres Júnior Andrew Korybko Henri Acselrad Marcos Aurélio da Silva Bruno Fabricio Alcebino da Silva Annateresa Fabris Ricardo Antunes Remy José Fontana Fernando Nogueira da Costa Luiz Eduardo Soares Gilberto Lopes Antonino Infranca Lucas Fiaschetti Estevez Thomas Piketty Luiz Bernardo Pericás Rafael R. Ioris Chico Whitaker Boaventura de Sousa Santos Dênis de Moraes Ladislau Dowbor José Dirceu Vladimir Safatle Julian Rodrigues João Sette Whitaker Ferreira Marcelo Módolo João Paulo Ayub Fonseca Lorenzo Vitral Berenice Bento Paulo Nogueira Batista Jr Daniel Afonso da Silva Eugênio Trivinho João Carlos Salles Carla Teixeira Milton Pinheiro Armando Boito José Geraldo Couto Elias Jabbour Tadeu Valadares Celso Frederico Heraldo Campos Leda Maria Paulani Manchetômetro Ronaldo Tadeu de Souza Osvaldo Coggiola André Singer Luiz Roberto Alves Marcelo Guimarães Lima Bento Prado Jr. Michael Roberts Vinício Carrilho Martinez Tarso Genro José Costa Júnior Juarez Guimarães Flávio Aguiar Igor Felippe Santos Carlos Tautz Marcus Ianoni Ricardo Abramovay Jean Marc Von Der Weid Ricardo Fabbrini Andrés del Río Luiz Marques Daniel Costa Paulo Capel Narvai Rubens Pinto Lyra Luciano Nascimento Dennis Oliveira Atilio A. Boron Gilberto Maringoni Claudio Katz Lincoln Secco Fábio Konder Comparato Otaviano Helene Celso Favaretto André Márcio Neves Soares Ari Marcelo Solon Afrânio Catani Samuel Kilsztajn Alexandre Aragão de Albuquerque Bruno Machado Luiz Carlos Bresser-Pereira Henry Burnett Jean Pierre Chauvin Antônio Sales Rios Neto Kátia Gerab Baggio Francisco Pereira de Farias Airton Paschoa Leonardo Boff Fernão Pessoa Ramos Manuel Domingos Neto Vanderlei Tenório

NOVAS PUBLICAÇÕES