Um retrato perturbador

August Kopisch (1799 - 1853), Os Pântanos Pontinos ao pôr do sol, 1848.
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Por LUIZ EDUARDO SOARES*

Em vez de fazer jornalismo, a grande imprensa optou por disputar a direção política do futuro, a hegemonia do dia seguinte, o comando do processo de transição

O dia 29 de maio de 2021 foi glorioso para a resistência antifascista no Brasil. A escala das manifestações nas ruas, apesar dos riscos provocados pela pandemia, representa um marco de magnitude histórica. Por outro lado, no dia seguinte, a grande imprensa nos ofereceu, mais uma vez, o retrato perturbador de suas próprias vísceras expostas. As capas do Globo e do Estadão destacam o “reaquecimento do PIB” e a “reinvenção das cidades turísticas”, respectivamente. A Folha foi mais digna: “Milhares saem às ruas contra Bolsonaro pelo país”, ao lado de foto razoável, embora a reportagem na página A-12 seja decepcionante, um símile político da matéria risivelmente provinciana sobre o jogo da véspera, o empate entre São Paulo e Fluminense.

Como interpretar as escolhas editoriais? O que elas nos dizem sobre a posição das elites e seus cálculos? O que o silêncio eloquente confessa? A comparação com 1984 é trivial, mas pertinente. A Rede Globo custou a admitir a existência do maior movimento de massas até então. Por quê? Ainda defendia a ditadura? Não, naquele momento não se tratava de abraçar-se ao cadáver insepulto do antigo regime, mas de disputar a direção política do futuro, a hegemonia do dia seguinte, o comando do processo de transição.

O que torna as coberturas das manifestações de 29 de maio de 2021 e as de 2016 tão diferentes? Quantas vezes assistimos, perplexos, a reportagens ao vivo da GloboNews sobre protestos anti-Dilma em pequenas cidades do interior, nas quais repórteres constrangidos, ante imagens de praças vazias, se esforçavam por convencer os telespectadores sobre a relevância histórica dos acontecimentos que testemunhavam. Tratava-se de objetividade jornalística ou de engajamento na campanha contra Dilma? O endosso absolutamente acrítico à Lava-Jato, dando curso aos vazamentos que provinham dos acusadores, pingando a conta-gotas nos momentos estrategicamente “oportunos”, concorreu para a exclusão de Lula da disputa, a demonização da política e a emergência da mais torpe e vil presidência de nossa história.

O remédio converteu-se em veneno, porque foram com muita sede ao pote do golpismo, celebraram o pacto fáustico com os apetites mais selvagens em nome da “Ponte para o Futuro”, tornaram austeridade, desregulamentação, meritocracia e minimalização do Estado o credo supremo de sua comum veneração, dispuseram-se a confundir combate à corrupção com a versão cínica de uma suposta guerra santa da sociedade contra o Estado.

A nenhuma leitora, a nenhum leitor minimamente razoável escapará o viés político das operações editoriais, que estruturam hierarquias de relevância, impactando a agenda pública. As fake-news mais tóxicas não são as notícias falsas, passíveis de desmascaramento, mas a desonestidade intelectual que injeta, subrepticiamente, opinião na informação. Essa infecção ideológica se realiza sobretudo por meio da seletividade editorial, no modo de apresentar e hierarquizar as informações. Emitir opiniões é legítimo, infiltrá-las de forma solerte, naturalizando-as, é exercício ilegítimo de um poder imenso que assim se corrompe.

Qual a finalidade do embuste estampado sem pudor, nas manchetes de hoje? Abraçar-se ao cadáver adiado do fascismo brasileiro? Não, esses órgãos têm sido críticos do governo. Trata-se, a meu juízo, como em 1984, guardadas as óbvias diferenças, de disputar a direção política do futuro, o comando do processo de transição para o pós-Bolsonaro. Com ou sem Lula, até onde irá a reestruturação do Estado, em todos os níveis? Quais as posições relativas dos principais atores econômicos? Qual será a inserção do Brasil no mapa geopolítico? Que posição lhe caberá na divisão internacional do trabalho e da produção? Até onde nos levarão os movimentos negros, feministas, por moradia, pela terra? Haverá ou não – e a que preço”; com quais consequências? – enfrentamento ao que tenho denominado “enclave antidemocrático” da segurança pública e da Justiça criminal?

Enquanto o povo vai às ruas, as elites se recolhem, planejando seus lances, e começam, tudo indica, a examinar a hipótese Queremista: Pós-Bolsonaro com Bolsonaro. Não duvidem, meus amigos, minhas amigas: o ardor moralista desses vetustos patriotas é tão volúvel quanto são elásticos seus elevadíssimos valores.

Luiz Eduardo Soares foi secretário nacional de segurança pública (2003). Autor, entre outros livros, de Desmilitarizar – Segurança pública e direitos humanos (Boitempo).

Publicado originalmente no portal Brasil 247.

 

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