Amilcar no MuBE

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Por LUIZ RENATO MARTINS*

Comentário sobre a mostra em cartaz até 26 de setembro de 2021.

“O passado leva consigo um índice secreto pelo qual ele é remetido à redenção. Não nos afaga, pois, levemente um sopro de ar que envolveu os que nos precederam? Não ressoa nas vozes a que damos ouvido um eco das que estão, agora, caladas? (…) Se assim é, um encontro secreto está então marcado entre as gerações passadas e a nossa. (…) Então nos foi dada, assim como a cada geração que nos precedeu, uma fraca força messiânica, à qual o passado tem pretensão. Essa pretensão não pode ser descartada sem custo.” (Walter Benjamin, “Tese II”, Sobre o Conceito de História).

“Articular o passado historicamente não significa conhecê-lo ‘tal como ele propriamente foi’. Significa apoderar-se de uma lembrança tal como ela lampeja num instante de perigo. Importa ao materialismo histórico capturar uma imagem do passado como ela inesperadamente se coloca para o sujeito histórico no instante do perigo. O perigo ameaça tanto o conteúdo dado da tradição quanto os seus destinatários.(…) Em cada época é preciso tentar arrancar a transmissão da tradição ao conformismo que está na iminência de subjugá-la.(…)” (Idem, “Tese VI”) [1].

Uma mostra e seu entorno

Começo pelo projeto de Paulo Mendes da Rocha (1928-2021) para o MuBE, onde a mostra de trabalhos de Amilcar de Castro (1920-2002) está agora instalada. O que essa arquitetura proporciona às obras de Amilcar de Castro? Cabe dissociá-las? Ou, ao invés, ir a uma através da outra?

Segundo declarou o arquiteto no início da construção do museu, o projeto objetivou simplificar a edificação e priorizar a presença e as singularidades formais das obras a serem expostas – “e não competir com elas”.[i] De fato, a simplicidade se manifesta nos elementos concretos implantados à flor da terra: uma grande esplanada constituída de praça e jardim acolhe o visitante e permite de pronto uma visão das vias e dos veículos da cidade atual, ao redor. Uma só referência arquitetônica, despojada e essencial, a qualifica: dois discretos pilares-paredes de concreto sustentam, sobre uma área com patamares em cotas diferentes, uma leve e extensa viga – sugestivamente dotada de pé direito baixo (2,37 m), e, com 4,30 m, noutro patamar – que aparece também como laje e marquise.

Fig. 1 Paulo Mendes da Rocha, Croqui MuBE, ca. 1986, arquivo MuBE

Fig. 2 Paulo Mendes da Rocha, Croqui MuBE, ca. 1986, arquivo Daniele Pisani

Apesar de aludir a uma construção ou monumento primitivo (designado com graça pelo arquiteto, como “monolito” ou “uma pedra no céu”),[ii] a simplicidade do esquema não leva o observador a extravio a-histórico. Pois o vigor austero do constructo logo alerta para a importância do desenvolvimento técnico que permitiu ao esquema arquitetônico primordial – ao ser relido hoje – expandir-se à escala ímpar proposta (estampada na leveza da laje-marquise, nos pilares esbeltos e no vão de 60 m) e sintetizar duas temporalidades tão distintas numa única solução, nem por isso menos reflexiva. Feita a síntese, o conjunto – composto da laje-marquise (que evoca um pórtico sóbrio e igualitário) e da esplanada – afirma-se como estrutura destinada ao uso coletivo.

Células da pólis

Com efeito, o conjunto do MuBE nada tem de uma inóspita praça de armas – com solo liso (para tropas e veículos) onde visitantes eventuais convertem-se em vultos minúsculos e dispersos (em contraste, vide o Memorial da América Latina, na Barra Funda). Ao contrário, no MuBE, a praça-esplanada que encima as instalações (recintos expositivos, escritórios etc.) reúne os visitantes, com uma escala acolhedora. À entrada, oferece-se, de pronto um acesso lateral, à esquerda, que leva direto à esplanada; mas há também (a menos que se queira ir logo aos recintos no subsolo), uma alternativa de acesso à esplanada, pela direita, passando, primeiro, por uma plataforma retangular em arena, parcialmente coberta por uma marquise e articulada a um piso escalonado em declive suave.

Apta a funcionar também como arquibancada, a escadaria oferece assento ao público, diante do espaço sob o abrigo da laje-pórtico em forma de marquise reta e austera. Bem visto, a partir dos assentos e do piso-arena à frente, o conjunto ao ar livre compõe uma forma compacta e cômoda de teatro de arena e ágora.[iii]

Fig. 3 Paulo Mendes da Rocha, Croqui MuBE, ca. 1986, arquivo MuBE

Fig. 4 MuBE: esplanada, teatro aberto e marquise, foto LRM, 2021

Frontão de passantes

Logo, o pórtico simples e justo define e distingue o lugar. Também guarnece e celebra o visitante – como um igual entre outros. Um a um, os itens se mostram como equipamentos despojados e essencialmente horizontais – acolhedores e de ar republicano. Para o visitante, oferecem um ponto discreto de fruição civil e de abrigo coletivo em meio ao fluxo de veículos ao redor.

Fig. 5, 6, 7 MuBE: vista da esplanada, com esculturas de Amilcar de Castro, fotos LRM, 2021

Simultaneamente ao descortino empírico da circulação permanente na cidade capitalista, o conjunto apresenta e traz, como num esquema didático demonstrado e próximo, a cena de fundação da política, como arte e fim maior da cidade. Assim, solene e discretamente, cada visitante – ao passar sob a marquise-pórtico – é como que levado a integrar por um momento o frontão, à vista dos demais. Eis a república, disposta no espaço como cena e arena, na qual cada um pode estar no frontão e ocupar o centro.

Formação e ponto de vista

Com efeito, há projetos que concebem volumes espetaculares e de ocupação restrita, para uso privilegiado, enquanto outros preparam espaços para uso espontâneo: vale dizer, cápsulas de tempo livre para uso imprevisível e anônimo, como parte do todo urbano. O modo de raciocínio discretamente exercitado no projeto do MuBE (severo e, não obstante, lírico) é desses últimos.

Com tal descrição e resumo, não quero salientar uma disposição psicológica de autor, e sim certa formação e a perspectiva histórica implicada, que propõem a prioridade programática de projetar para o coletivo. Daí o papel, em geral estruturador, da perspectiva do caminhante nos projetos de Mendes da Rocha, bem como, visto de outro ângulo, o sítio maior ou o horizonte no qual se inscrevem: a cidade habitada, ao invés do entorno vazio.

Recuo comparativo

Um recuo comparativo permite compreender objetivamente a formação histórica desse tipo de ponto de vista. Começando a comparação pela prioridade conferida ao meio urbano: a geração anterior à de Mendes da Rocha, fundadora da arquitetura brasileira moderna (e constituída profissionalmente após a revolução de 1930, exceto quanto ao decano Lúcio Costa [1902 – 1998]), dedicara-se, na esteira do modernismo paulista de 1922 (movimento pau-brasil e outros), a distinguir e afirmar os traços da então suposta identidade nacional.[iv]

Desse modo, os dois arquitetos mais representativos da corrente, Lúcio Costa e Oscar Niemeyer (1907 – 2012), referiam-se costumeiramente a aspectos fixados no período colonial. O caso mais ilustrativo talvez tenha sido o do memorial de Lúcio Costa para o concurso do Plano Piloto de Brasília (1957).[v] Mas está longe de ser o único, talvez devido à premência de evitar a redução da arquitetura moderna brasileira à notória e proclamada raiz externa: a “arquitetura nova”, de Le Corbusier (1887 – 1965), cujo exemplo e patronagem eram simultaneamente reivindicados como gene e índice de atualidade, consoante o compasso internacional.

Desse modo, nota-se que os projetos de Costa e Niemeyer reproduzem com constância programática elementos (alpendres, capelas etc.) dos casarões dos grandes proprietários rurais, ou seja, da chamada casa-grande, isolada na paisagem – mas não só. Também reproduzem traços do léxico do barroco religioso e reiteram a implantação rural das edificações – como, aliás, é o caso dos palácios de Brasília.[vi] A síntese de tal partido de trabalho encontra-se no teor marcadamente antiurbano de tais projetos, como já foi ressaltado por Luiz Recamán.[vii]

Caminhar na cidade

Ao vir associada ao ponto de vista do caminhante urbano, a mobilidade nova da perspectiva de Mendes da Rocha destaca-se do ângulo estático e agrário antes prevalente. O ponto de vista não nacionalista e disjuntivo que irrompe ventila um sentimento de espaço inerente à mobilidade visual coletiva, própria ao trânsito da mão de obra, em circulação incessante, bem como ligada a uma nova temporalidade histórica.

Ambiente intelectual e traços tônicos dessa visão podem ser rastreados mediante o impacto de alguns livros que prepararam, na atmosfera do período, o ponto de vista ao rés do chão e anticolonialista, trazendo memórias, relatos e reflexões inerentes à perspectiva térrea: Geografia da Fome (1948) e Geopolítica da Fome (1951), de Josué de Castro, e Morte e Vida Severina (1955), de João Cabral de Melo Neto, no Brasil; e Pele Negra, Máscaras Brancas (1951), de Frantz Fanon.

Porém, mais do que leituras, certos fatos históricos moldam horizontes. O primeiro projeto arquitetônico de Mendes da Rocha premiado em concurso público – o do ginásio de esportes do Clube Atlético Paulistano (1958, São Paulo), com a estrutura exposta feito inseto, ou melhor, feito combatente guerrilheiro, de armas a tiracolo –, engendrou-se em pleno curso da luta pela independência argelina (1954-62), a qual, por sua vez, já vinha na esteira da capitulação do exército francês, em maio de 1954, diante das forças anticoloniais vietnamitas, em Dien Bien Phu.

Pensando a partir do chão

A geração arquitetônica de Mendes da Rocha e demais que viriam a compor a chamada “escola paulista” (da arquitetura moderna brasileira), para além da formação especializada, de ofício,[viii] constituiu-se historicamente à luz da vitória da revolução cubana que, nascida nas montanhas de Sierra Maestra, entrou aclamada em Havana, em 1 de janeiro de 1959, depois da fuga do ditador. À luz do triunfo estratégico das insurreições, que miraram e conquistaram o chão, caiu a primazia absoluta da guerra aérea e dos bombardeios (que haviam selado tecnologicamente o desfecho da II Guerra Mundial); paralelamente, decresceu também o favor urbanístico do modelo da tábula rasa, reivindicado desde os primórdios do planejamento urbano moderno, a exemplo do plano Haussmann (1852-70) para Paris.

Em contrapartida, conquistaram o favor e o interesse da opinião internacional as ações de guerra popular contra o ocupante, na escala da geografia – ou seja, pautadas pela imersão no terreno, pela ação do combatente a pé, pela mobilidade pedestre etc. De modo análogo, de várias partes despontaram no mundo novos sentimentos de espaço, ligados a novas paisagens e novos chãos. Correlatamente, questionaram-se, no caso das concepções urbanas, os critérios pseudouniversais e eurocêntricos, correntes na arquitetura moderna do pré-guerra.

Em suma, a aurora de um sentimento utópico de espaço luziu. Não podem ser dissociados das concepções de mundo então nascentes, as esplanadas; os acessos generosos e as rampas largas; as arquibancadas e as escadarias acolhedoras – facilmente mutáveis umas nas outras –; as formas anfiteatrais; e os térreos em formas de praça e de largo, em comunicação direta com o leito de passeio público. Têm o valor de equipamentos com a função primordial de acolher o cidadão e, mais ainda, o caminhante. Trazem marcas de origem e de expectativas históricas que não são as das sociedades tecnológicas atuais – de controle e televigilância, via a onipresença de guaritas, lentes e radares dissimulados e de monitores-mediadores. Mas, antes, oferecem espaços para o cidadão anônimo, propícios a formas de espontaneidade plurais, independentes e criativas.

Não obstante a realidade urbana concreta ter se tornado – após 1964 no Brasil, e 1968 no mundo – crescentemente desigual e hostil, a potência crítica e criativa da arquitetura de Mendes da Rocha e a sua vinculação orgânica à cidadania resistiram ao cerco. Mantiveram, em síntese, o partido arquitetônico desejado, de implantação em meio aos fluxos e às misturas da cidade habitada. Assim, os dois aspectos cruciais que destaquei em relação a tal concepção de arquitetura, o ângulo do caminhante e a situação urbana – potencializada por encontros aleatórios e expectativas democráticas – restaram ativos e postos em reciprocidade a partir do solo. Logo, em nítido contraste com os entornos vazios e a visualidade (contemplativa ou das formas) inerente aos vazios – habituais na ordem não urbana.

Ver: dos pés à cabeça e vice-versa

Segui o que o lugar – “o espírito do lugar” (o genius loci, como se dizia na Roma antiga) – propõe ao visitante. Mas não fiz uma volta sem proveito. Com efeito, para tratar das obras de Amilcar de Castro no MuBE, como fechar os olhos à afinidade entre as grandes esculturas e o sítio arquitetônico? E mais: como formular em argumento a sensação de que, ante as esculturas de ferro em grande formato, instaladas na esplanada, o ato de ver compreende a consciência do chão? Vale dizer, dá-se como ato de visão combinado a uma sensação tectônica – porque de fato ela circula ou se irradia incessantemente da cabeça aos pés e destes à cabeça, como que mimeticamente animada pelo entrechoque da escultura e do chão. Enfim, ver, aqui, é indissociável de mimetizar o esforço ou a força – o empuxo do chão sob os pés.[ix]

Fig. 8 e 9 Esculturas de Amilcar de Castro na esplanada do MuBE, fotos LRM, 2021

Portas e janelas

Em consequência, impõe-se tomar a dinâmica tectônica como um vetor crucial de tais esculturas. Porém, tal dinâmica é indissociável de duas funções negativas, articuladas ao seu eixo: a de “porta”, acima referida, e, eventualmente, a de “janela”, a depender da posição do talho no aço.

Ante o vetor tectônico, ambas intervêm decerto negativamente, ora fendendo ora rasgando as espessas chapas de ferro ou aço corten. Desse modo, as esculturas em grande formato ora falam ao corpo ora falam aos olhos, ora a ambos simultaneamente: não apenas se abrem e oferecem fendas, frestas ou passagens ao observador-caminhante, mas também propõem cenas e paisagens, recortes e alternativas visuais.

Fig. 10 e 11 Esculturas de Amilcar de Castro na esplanada do MuBE, fotos LRM, 2021

Participação a pé

O regime da recepção continua a ser aqui o da participação,[x] cara ao neoconcretismo, de cujo manifesto (1959) Amilcar de Castro aparece como o primeiro signatário (em ordem alfabética), conforme foi publicado na capa do Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, exposto na mostra. Sabe-se, porém, que nas obras de Lygia Clark (1920 – 1988) a participação em geral surgia associada à intervenção manual na estrutura cambiante dos objetos (por exemplo, na série dos Bichos [1960 – 64], com dobradiça); enquanto ante as esculturas de Amilcar, a participação dá-se quase sempre ligada ao andar (exceto nas obras de transição feitas nos EUA). Desse modo, a prioridade à mobilidade do caminhar aparenta o modo-participação de Amilcar ao dos relevos espaciais e núcleos (1959 – 64), de Hélio Oiticica (1937 – 1980).[xi]

Fig. 12 Lygia Clark, Bicho de Bolso, alumínio, 1967

Fig. 13 Hélio Oiticica, Grande Núcleo, 1960-66, montado na Galeria 64, Rio de Janeiro, 1966

Importa ter presente que, tal como em relação à concepção arquitetônica do MuBE, achamo-nos aqui em solo estritamente histórico, logo, sendo mediados por uma tradição precisa. Em suma, os modos de ver nas esculturas em grande formato, potenciadas pelas aberturas dispostas ante o transeunte, pertencem à história da democratização da arte no Brasil – vale dizer, ao desejo democrático, segundo Benjamin, de ver de perto e de dentro –, e, portanto, filiam-se igualmente ao processo de superação da “arte de cavalete” (como diziam os construtivistas russos), ou da arte “aurática”, na acepção benjaminiana.[xii]

Mas, pluralidade de visões e abundância de possibilidades à parte, a que vêm, afinal, tais aberturas, ditas “portas” e “janelas”, construídas mediante “cortes e dobras” – tidas em geral como as operações constantes e características da continuidade da obra de Amilcar de Castro –, ao longo de cinquenta anos de trabalho?

“Mostrar a totalidade que existe fora do quadro e que de lá o invade”

Enfrentar a questão do sentido das aberturas requer que se revise antes a tese vigente e correntemente aceita, acerca da continuidade tal e qual das operações de “corte e dobra”. A propósito, cabe um paralelo (ao qual voltaremos adiante): em junho de 1994, o pintor Antonio Dias (1944 – 2018), da geração artística imediatamente seguinte à de Amilcar de Castro (mas parceiro direto de Oiticica), ante a pergunta de uma entrevistadora – de por que utilizava isto e aquilo (no caso, formas geométricas combinadas a palavras) –, respondeu: “(…) para mostrar esta totalidade que existe fora do quadro, e que de lá o invade”.[xiii]

Desde logo, em relação ao contexto do debate sobre o movimento neoconcreto e a noção correlata de “participação”, a fórmula verbal cunhada pelo pintor, a rigor, é tardia. Corresponde, não obstante, ao reconhecimento verbal e à formulação discursiva de um vetor operante em estruturas de seu trabalho, desde o começo de sua trajetória artística – iniciada trinta anos antes (sob o signo traumático do golpe de 1964). Nesse sentido, apesar de tardia, a fórmula destaca o rumo decisivo do seu trabalho; rumo a partir do qual Dias marcou uma ruptura ou guinada crítica ante a arte neoconcreta, que o precedia, ao surgir no primeiro plano da cena artística na mostra Opinião 65 (Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro – MAM/ RJ, Rio de Janeiro, 12.08 – 12.09.1965).[xiv]

Pois bem, no caso, a bússola de Dias vem a calhar para destacar, também contra o polo assinalado pelos trabalhos do ciclo neoconcreto e seus derivados, a inflexão desferida e o norte dos trabalhos subsequentes de Amilcar de Castro – distinguidos pela escala aumentada da envergadura, da massa férrea e da espessura, que alcançaram, a partir de 1978, alturas inéditas ante os trabalhos precedentes do autor.[xv]

Insisto: a expressão corte e dobra” – com que em geral se costuma caracterizar, na fortuna crítica, as esculturas de Amilcar de Castro – sugere a continuidade e a constância estrita de sua obra (1952 – 2002, a se tomar por referência as obras ora expostas). Porém, sem se admitir uma cisão e a distinção correlata, não há como se estabelecer a significação efetiva e historicamente precisa dos novos trabalhos de Amilcar de Castro. Pois, embora as operações de “corte e dobra” grosso modo continuem, alteram-se decisivamente a base material sobre a qual incidem – tanto quanto sua inserção pública, ou seja, o modo de circulação e o seu sentido. Por que e quando assim ocorreu?

Turning-point : um corte histórico – na peça e no todo da obra

De fato, se no início e ao longo dos anos 1950 e 1960, cortes e dobras ocorriam no espaço mental da abstração e em função do raciocínio geométrico – segundo a lição fundadora da Unidade Tripartida (1951), de Max Bill (1908 – 1994), premiada na I Bienal de S. Paulo (1951)[xvi] –, por outro lado, em certo momento, o processo emergiu decisivamente alterado e distinto.

O emblema da reviravolta é uma “porta aberta” numa enorme chapa de ferro: a escultura de grande formato (450 x 450 x 350 x 5 cm) instalada em 1978 na Praça da Sé (marco central da cidade de S. Paulo), dentro de um programa público de implantação de 14 esculturas na praça.[xvii]

Fig. 14 Amilcar de Castro, Sem título, 1978, ferro (sac 50), 450 x 450 x 350 x 5 cm, Praça da Sé, São Paulo, foto Pedro Franciosi

Fig. 15 Amilcar de Castro, Sem título, 1978, ferro (sac 50), 450 x 450 x 350 x 5 cm, Praça da Sé, São Paulo, foto Folha de S. Paulo

É certo que já existia uma peça anterior em grande formato, adquirida em 1977 (depois de pronta) para o jardim de uma agência da Caixa Econômica de Minas Gerais, em Belo Horizonte.[xviii] Na peça em questão, do corte e da dobra de uma chapa circular (com 4 m de diâmetro) abria-se um vazio triangular prolongado parcialmente até o solo. Constituía-se também o volume tridimensional da estrutura mediante o triângulo recortado e dobrado e seu prolongamento. Desse modo, nos termos da obra de Amilcar, a peça, a despeito do formato agigantado e inédito, foi engendrada como antes: a partir de uma forma geométrica (circular, no caso) e consoante desdobramentos também geométricos, tal uma aporia revestida de uma solução concreta e sensível, sem perder o seu quê de paradoxo, a distingui-la das operações da arte concreta (quase sempre tautológicas e evidentes). De um modo ou de outro, vinha assinalado e reiterado, em tais termos, o valor de significação predominante da estrutura (bem como do espaço interno por ela instituído – no caso, o triângulo e suas reverberações, que, em Minas, sabe-se, não são pequenas – )  sobre o entorno.

Mas foi precisamente tal correlação que veio a se inverter criticamente no ano seguinte, 1978, na peça da Praça da Sé.  A viravolta crítica não foi de pequena monta nem de pouco alcance. Em tal peça – concebida mediante uma estrutura literalmente similar a uma “porta aberta” (numa chapa quadrada de ferro, com 4,5 m de lado) – estabeleceu-se, pela ampla abertura, a fluidez plena e corrente entre o espaço interno e o externo; o que implicou, simultaneamente, na subsunção deliberada e evidente da estrutura – e de seu espaço interno – ao entorno.

Ao transformar a relação estética habitual, de prevalência ante a alteridade dada pelo espaço externo (incluindo o observador-participante), desta vez, em relação de fluidez e acolhimento, a peça trouxe, junto com a nova escala (mais de 20 m² e o aumento considerável de peso), uma redefinição estrutural decisiva, consubstanciada na mudança de princípio construtivo. Mudança equivalente, metaforicamente falando, à troca de matriz energética num veículo, cujo movimento deixa de decorrer de uma ejeção – por combustão, descompressão ou processo similar (de todo modo, ação impositiva) de forças e matérias – para advir de uma matriz eólica ou solar, consoante a qual o movimento provém da captação e reelaboração interna de uma energia ou força externa.

Metáforas e alusões à parte, concretamente, a inversão do princípio traduziu-se numa espacialidade nova – posta segundo uma estrutura não mais delineada a partir de desdobramentos e qualidades geométricas, mas, sim, como abertura ou “porta” escancarada. Nessa medida, permitia-se que vários corpos – mediante iniciativa e ação próprias – atravessassem juntos – vale dizer, coletivamente – por dentro da peça.

Em suma, colocou-se, nesses termos, uma passagem ostensivamente aberta no meio da praça; aberta, porém, para que e para quem? Decerto, ficava evidente, para usar os termos de Dias, “que algo de fora a invadia”. Mas, desde aí, significava afinal o que, escapar ou passar para o outro lado dessa instalação ou lâmina de ferro?

O espaço como síntese histórica e bem coletivo

Brotavam, na época, as primeiras manifestações de rua pela reconstrução da democracia no país. Depois de vários atos, nos anos precedentes, ocorridos em recintos específicos (de sindicatos, universidades e igrejas) – dos quais dois marcantes deram-se na catedral (da Praça) da Sé e em sua escadaria e entorno imediato, convertendo a praça em espaço emblemático da luta pelas liberdades democráticas –,[xix] a primeira manifestação estudantil de rua, que tentou percorrer o centro de S. Paulo, irrompeu em 05.05.1977 (uma passeata contra a ditadura, que saiu do Largo São Francisco, à frente da Faculdade de Direito, e foi detida pela polícia, com bombas, no Viaduto do Chá).

No início de 1978 – ano em cujo final se procedeu à instalação da peça na Praça da Sé –, brotaram, por sua vez, as primeiras greves abertas e explícitas de operários metalúrgicos no polo industrial do ABC (então a principal concentração operária no estado, que funcionava como a locomotiva do parque industrial brasileiro). Desafio e confronto se tornaram ostensivos no ABC, em 14 de março do ano seguinte (1979) – véspera da posse do general Figueiredo (1918 – 1999) –, quando estourou uma greve de massa, com forte adesão (cerca de 200 mil metalúrgicos), abrangendo trabalhadores das grandes montadoras do setor automotivo (Volks, Ford, Mercedes, Scania etc.) e de fábricas de autopeças.

Assim, por um crescendo de irrupções, em ruas e fábricas, deflagrou-se, à revelia da agenda oficial, “de abertura lenta e gradual” do regime, o processo popular de uma ruptura democrática, rasgada pela força coletiva, na dura malha de dispositivos repressivos (Lei de Segurança Nacional e outros). A luta pela reconstrução da democracia no país emergiu, apropriando-se do espaço urbano de modo inédito. Leitos de ruas e de calçadas, conquistadas pela caminhada coletiva à polícia e aos automóveis, ganharam um novo sentido. O ar que se respirava nas passeatas (em geral, não autorizadas) parecia despoluído, era novo e pulsava nos pulmões, com força própria. A inflexão estrutural, material e de escala da obra de Amilcar de Castro é indissociável de tal processo, de conquista e criação coletiva do espaço público.

Em síntese, nas esculturas (daí em diante majoritariamente em grande formato) do artista, “cortes e dobras” fizeram-se para atender a um vetor de sentido histórico e coletivo, que atravessava e banhava o trabalho do artista – condensando, por hipótese, os ritmos sociais e históricos do novo espaço político, nascido da massa que se apropriou das ruas e dos pátios fabris. O artista veio ao encontro da torrente histórica nova e revigorante, saudando tal fluxo por meio dos seus austeros pórticos de ferro. Nestes, como vimos, o espaço interno se enlaçava ou confraternizava com o espaço externo, constituindo um novo todo, que infundia nas esculturas a espacialidade nova, inventada coletivamente no confronto com as forças repressivas da ditadura.

Fig. 16 Esculturas de Amilcar de Castro na esplanada do MuBE, foto LRM, 2021

Fig. 17 Escultura de Amilcar de Castro sob a marquise do MuBE, foto LRM, 2021

Desse modo, não apenas o surgimento no ano crucial de 1978, mas o desenvolvimento da nova espacialidade estrutural, tecida da superação da dualidade – entre espaço interno e externo – correspondeu rítmica e objetivamente ao movimento em curso, embora nascente e virtual naquela altura (1978), pela reconstrução das liberdades democráticas em escala nacional.

Fruto de uma síntese histórica, a espacialidade unificada, constituída nas esculturas de grande formato, não era nem meramente empírica nem geométrica, mas irrompia com o gume da novidade histórica e política do momento nacional. Foi precisamente esse o sentido incorporado objetivamente pelas peças de Amilcar de Castro. De tal plasma são feitos os talhos que vemos nas peças de grande formato.

Fincadas no solo com força épica, as esculturas, com igual elã, se aprumam no espaço (histórico e político), posto pela luta coletiva. Tal equilíbrio é novo. Parece paradoxal só para aqueles que veem apenas o que nas peças é fruto do peso e não aquilo que vem com o vento ou com a luz. As peças ao vento flutuam e navegam, singram os ares consoante uma temporalidade frutificada da ação histórica coletiva. Não podiam ser senão grandes como são – pequenas ainda, diante da escala da vontade coletiva contra a opressão.

Fig. 18 Esculturas e desenhos de Amilcar de Castro no subsolo do MuBE, foto LRM, 2021

Fig. 19 Detalhe de escultura de Amilcar de Castro e da parede de concreto aparente do MuBE, foto LRM, 2021

De um modo ou de outro, pôs-se, assim, o rumo da conjugação histórica refletida e construída, nos trabalhos de Amilcar de Castro, entre formas artísticas e formas sociais e coletivas, no sentido não da realidade dada (ditatorial e opressiva), mas da desejada e coletivamente projetada – tornando as esculturas parte ativa e direta do movimento pelas liberdades democráticas.

Do espaço mental à totalidade histórico-social

Noutras palavras, a hipótese é que “cortes e dobras”, realizados ao longo dos anos 1980 e 1990 (período histórico concomitante à organização política de base, em princípio independente, da classe trabalhadora brasileira), fizeram-se para que a totalidade (emprestando as palavras de Dias, referentes ao seu próprio trabalho) de fora da obra – desde lá a invadisse.

Daí, o sentido primordial e objetivo dos novos “cortes e dobras”: acolher e deixar fluir a nova formação histórico-social brasileira, permeada decisivamente pela reorganização da classe trabalhadora, e em especial do operariado metalúrgico. Em síntese, o ganho em escala e peso das esculturas de Amilcar de Castro foi evidente e decisivo, e não se explica nem se subordina à persistência dos procedimentos (de corte e dobra). Pelo contrário, exigiu a reinvenção por completo de tais operações.

Sem dúvida, a hipótese vem a contrapelo da tendência arraigada na historiografia brasileira, useira e vezeira em tomar a forma como pura – fato do cogito ou prerrogativa autoral –, em todo caso dissociada do processo histórico. Tem-se, assim, por assentado em tal chave – a da arte trancada em si mesma, e para poucos – que os procedimentos de “corte e dobra”, na obra de Amilcar de Castro, assim como surgiram, perduraram indefinidamente.[xx] Pressupor, porém, a obra de Amilcar de Castro encerrada em si e de todo isolada do processo histórico e artístico, envolta no vazio absoluto, constitui contrassenso que dispensa refutação.

Sem dúvida, há evidência inconteste de gênese geométrica quanto à obra em cobre presente nesta mostra (Sem título, 1952, cobre, 45 x 45 x 45 cm), preparada por Amilcar para a II Bienal (1953), segundo o exemplo da Unidade Tripartida, de Bill. Por certo, para o jovem escultor, tais operações assentavam de início em dimensão pura ou exclusivamente mental.

Salientam-se também sinais de persistência dos procedimentos nos anos seguintes (compreendendo o período neoconcreto), mesmo que já combinados a outros elementos (paisagem, materiais, narratividade e dramaticidade referidas à gênese da forma etc.). Verifica-se, inclusive, persistência do teor geométrico nas operações que foram desenvolvidas no curso da residência de Amilcar e família nos EUA, durante as duas bolsas Guggenheim (1968-1971), consoante trabalhos também presentes nesta mostra. São obras leves, feitas em ligas de aço inox, caracteristicamente de transição (mediante formas variantes de espacialização empírica, em torno de um eixo, aproximadamente nos moldes dos Bichos, de Lygia Clark), cujo principal seguimento evolutivo ou desdobramento a se considerar, salvo melhor juízo, é o de funcionarem e valerem exemplarmente, ainda hoje, como antípodas das esculturas ora em questão, em grande formato e marcantemente oxidadas.

Decerto, em todos esses casos, as operações (de “corte e dobra”) implicavam e positivavam, demonstrativamente, postulados geométricos. Para tanto, desenvolviam especulações ou achados, extraídos de figuras bidimensionais (formas circulares, quadrangulares, triangulares etc.), que eram habilmente reelaboradas, sem perda ou sobra, em suportes em geral esbeltos.

Trazer consigo a arte dos contrários

Em contrapartida, no ciclo das esculturas com altura, espessura e peso marcantes, as operações de “corte e dobra” passaram a operar negativamente – contra a premissa tectônica do material –, instalando uma dialética interna e processual, e em situação pública e histórica de outro teor. Tectônica e fluidez, como qualidades escultóricas, dispuseram-se então, conforme apontado, em paralelo com o sentido das operações de corte e cisão praticadas nos objetos pictóricos de Antonio Dias. Como estes últimos, os trabalhos de Amilcar passaram a ser construídos a partir do conflito, agenciado como potência intrínseca ou faculdade própria dos trabalhos.

Não se trata pela comparação de determinar influência individual ou emulação. Mas sim, de recompor a história e os seus nexos, e sublinhar o vínculo de tais trabalhos com um processo histórico maior e um projeto coletivo, no qual a dialética das forças (et pour cause, das classes) valia como a matriz de tudo.

Uma vez comparados e distinguidos historicamente, “cortes e dobras revelam sintonia – mesmo que aparentemente a posteriori – com o programa da “arte ambiental”, posto por Oiticica.[xxi] E mostram consonância com as linhas gerais do que foi proposto por esse último, no manifesto-programa da Nova Objetividade Brasileira (1967). Tratavam-se, ambos, de proposições que visaram explicitamente à reconstrução crítica do realismo, combinado a um programa de descolonização, dotado de amplo espectro antropológico e etnográfico na longa duração das artes visuais brasileiras (ou seja, em termos pertinentes e atuais, ainda hoje, quase sessenta anos depois).

Enfim, as operações de “cortar e dobrar” – no sentido de abrir espaços a fim de ceder o passo à realidade – desenvolvem estratégia congênere, por exemplo, à dos objetos de Dias, ao longo de sua série The Illustration of Art (1971 – 78). Nela, Dias introduzia, metodicamente, por meio de cisão retangular, lacunas que evidenciavam a incompletude de suas telas, instalações e objetos planares ou tridimensionais.

Fig. 20 Antonio Dias, O País Inventado, 1976, foto Gabriele Basilico

Fig. 21 Antonio Dias, The Illustration of Art / Economy / Model (A Ilustração da Arte / Economia / Modelo), 1975, foto Nego Miranda

Fig. 22 Esculturas de Amilcar de Castro no subsolo do MuBE, foto LRM, 2021

De modo análogo, as novas esculturas de Amilcar – do ciclo que, para resumir, passarei a referir por realista e épico – vieram a constituir objetos cindidos e incompletos, cujo sentido maior, de então em diante – isto é, a partir da irrupção, nas ruas e fábricas, do movimento pelas liberdades democráticas –, consistia em captar, como por um dispositivo sensor, a totalidade histórica e coletiva – que, nas palavras de Dias, “de fora o(s) invadia”.

Em síntese, a distinção decisiva para a matéria em discussão e do ângulo estrutural da reflexão estética reside na cisão ou na recomposição da unidade dos objetos. Pois, no ciclo inicial, de extração geométrica, as operações de “cortar e dobrar” constituíam objetos cindidos – mas só em aparência. Assim, prontamente, noutro plano – a saber, na esfera da síntese receptiva –, os objetos se completavam, enquanto racionalmente íntegros e unos – sem desfazer, com efeito, de sua dramaticidade intrínseca, referida então à gênese da própria forma, tomada como objeto de autorreferimento. Assim, uns e outros – postos, de qualquer modo, como processos explicitamente autorreferidos de constituição da forma – assumiam ante o entorno o valor suposto de entes autárquicos ou autônomos, enfim, singulares ou especiais.[xxii]

Ao invés, nas peças do ciclo épico-realista, a síntese receptiva não se completa na dimensão estrita e apartada do processo estético, mas, a partir da síntese espacial (entre o interno e o externo do trabalho escultórico), projeta-se na dimensão maior, afirmando e reengendrando relações com os ritmos sociais coletivos.

Fig. 23 Esculturas de Amilcar de Castro na esplanada do MuBE, foto LRM, 2021

Fig. 24 Escultura e desenho de Amilcar de Castro no subsolo do MuBE, foto LRM, 2021

Fig. 25 Detalhe de esculturas de Amilcar de Castro e detalhe da parede de concreto aparente no subsolo do MuBE, foto LRM, 2021

Só então é que as grandes esculturas se desenvolvem pluralmente na recepção, mediante juízo histórico reflexivo; para, eventualmente, se completarem em seu processo de significação por via de ação terceira, ou seja, do transeunte (que nem de geometria precisa saber).[xxiii] Nesses termos, o processo se dá como prática de descondicionamento, em termos em nada distantes, substancialmente, da posição “social-ambiental”, proposta por Oiticica – vale dizer, aquela na qual o objeto estético serve a que indivíduo se “desaliene”, ao objetivar “o seu comportamento ético-espacial”.[xxiv] Termos esses que também não distam das virtudes éticas e políticas atribuídas à espacialidade, na arquitetura de Mendes da Rocha e pares.

Para rematar o ponto, circunscrevendo-o historicamente: à época da inflexão produtiva de Amilcar de Castro falava-se correntemente, noutro plano, em “entulho autoritário”,[xxv] para designar o dispositivo de leis repressivas no país, criadas pelos juristas da ditadura (por sinal, vários ex-reitores da USP [Gama e Silva, Reale, Buzaid]).

Assim, de modo negativo (dialeticamente falando, é claro), as grandes massas das obras em questão – nem sempre em chapas de ferro, mas também em blocos, ditos “sólidos geométricos”, de menor estatura, espessos e compactos (com frequência expostos no chão, como ora na mostra do MuBE) – condensavam, em termos próprios à objetividade estética, não só o entulho, mas o motivo e a finalidade da sua implantação. Condensavam, noutras palavras, os traços do desenvolvimento do parque industrial, expandido em larga medida em decorrência da compressão salarial e da concentração de renda, fenômenos alavancados, internamente, pela superexploração da força de trabalho, à base de repressão violenta, e, externamente, por exportações, em regime de dependência associada.

Autoritária, no caso, era a lógica concentracionária e desenvolvimentista (“crescer o bolo, para depois repartir”) da modernização produtiva preconizada pelos economistas da ditadura e da plutocracia brasileira que a sustentava. Em tal contexto, as operações de “cortar e dobrar” – na massa de ferro – portavam, resumidamente, sentido antitético, equivalente à esperança coletiva de abrir – no entulho duro das leis repressivas – uma passagem cortada e rasgada. Cortes e rasgos, no caso, feitos com o gume da organização e da potência coletiva pelas ações diruptivas da classe trabalhadora brasileira, ao arrepio da legislação-dura vigente.

Negação e salto

Em resumo, alguma continuidade de saber e experiência nos procedimentos de “corte e dobra” decerto existe e pode, pois, ser verificada. Mas à condição de ser posta ou entendida mediante uma operação sintética de negação e superação, em moldes hegelianos. Assim, a correlação existente entre, por um lado, as esculturas neoconcretas e demais, realizadas por Amilcar de Castro no campo da abstração geométrica, e, por outro lado, aquelas do ciclo épico-realista, é de mesma ordem que o desdobramento em salto crítico efetuado pelo materialismo histórico e dialético ante a dialética idealista hegeliana.

Viravolta (dialética) e inversão de sentido relativamente às operações de “corte e dobra” puseram as condições de possibilidade para a obra de Amilcar efetuar seu salto dialético de patamar. A razão objetiva da negação sintética e relativa das delicadas e sutis construções mentais abstratas – para a forma épico-realista das grandes estruturas de ferro e aço – residiu, em resumo e para rematar o tópico, na reemergência da questão operária no Brasil, após o ciclo de expansão econômica bruta e predatória, intitulado pelos adeptos, em modo de fraude e farsa, de “milagre brasileiro”.

Operação crítica de longo alcance, a negação operada por Amilcar levou, no tocante ao plano objetivo específico das obras, do foro mental da geometria e da manufatura artesanal para a escala industrial. Aí, incluiu recurso decisivo à força de trabalho contratada, isto é, à intervenção braçal operária – sem a qual tais obras não seriam concebíveis.

Forma objetiva

Em síntese, a obra madura de Amilcar de Castro, dos anos 1980 e 1990, correspondeu à forma objetiva (nos termos da crítica literária de Roberto Schwarz)[xxvi] do novo e monumental projeto político operário, no Brasil: o de implantar-se no espaço público, conquistar aceitação coletiva e legitimação na sensibilidade das imensas maiorias, que circulavam pelos grandes dutos abertos nas cidades brasileiras em função da economia expandida.

Desse modo, em cada sítio de implantação de uma grande estrutura de ferro ou aço corten, de Amilcar de Castro, estaria, por hipótese, selada e marcada a aliança (contradições inerentes aí incluídas) da intelligentsia crítica brasileira – tal como concebida e forjada nos anos de radicalização democrática e lutas sociais pré-1964 – com o novo operariado temperado na luta política contra a ditadura civil-militar, especialmente a partir de 1978. Aliança política e cultural de classes que, como mostra o ensaio “Cultura e Política, 1964 – 1969/ Alguns esquemas”, de Roberto Schwarz, estabeleceu suas raízes e floresceu na resistência ao golpe civil-militar de 1964, e que, mesmo com existência ceifada nos espaços públicos, pelo AI-5, continuou a dar frutos no período a seguir.[xxvii]

Hoje, quando a opressão sobre a classe trabalhadora e, desde logo, sobre a imensa maioria da sociedade toma de novo a feição de um bloco duro e intransponível, os rasgões no ferro propostos pelas esculturas de Amilcar luzem, com clareza e dramaticidade – pelo que deixam fluir e permitem antever.

Fig. 26 Esculturas e desenhos de Amilcar de Castro no subsolo do MuBE, foto LRM, 2021

Fig. 27 Escultura de Amilcar de Castro sob a marquise do MuBE, foto LRM, 2021

Fig. 28 Teatro, marquise e esplanada do MuBE, com esculturas de Amilcar de Castro, foto LRM, 2021

Aliás, a iluminação da mostra está excelente e confere às peças o teor historicamente teatral e dramático (vale dizer, a feição de augúrio benjaminiano, de redenção histórica, enfim) que lhes é, de nascença, inerente – teor que, no atual momento de perigo geral e de esmagamento da vida democrática no Brasil, volta a ganhar todo sentido, para quem quer que distinga as ligações de tal arte com o processo histórico.

Assim, pelo poder singular que a arte moderna desenvolveu à plenitude – de objetivar simbolicamente sentidos específicos inerentes ao entrecho histórico e ao ponto de vista coletivo –, as esculturas de Amilcar voltam a dar forma estética – como nos anos 1980 e 1990 – à luta dos trabalhadores e frações aliadas (de outras classes) pelas liberdades democráticas e pela refundação coletiva das instituições do sistema republicano corroído pelas práticas oligárquicas, nunca erradicadas da vida social e civil no Brasil.

Tal era o objetivo, como se sabe, do movimento popular contra a ditadura civil-militar, porém nunca consumado, devido ao modelo negociado de transição – via acordos de toda ordem, para preservar institutos e aparelhos do regime – e o subsequente recurso ao Colégio Eleitoral. Restou aberta a demanda histórica coletiva: é ela que hoje flui pelas fendas e banha as esculturas de Amilcar de Castro com uma luminosidade dramática – própria ao entrechoque da luta coletiva pela vida, e pela criatividade imprevisível do trabalho vivo (estampada nos desenhos, como veremos adiante), contra o peso da resignação ante a morte em massa e a robotização.

Nesse sentido, a lição intuída dessas esculturas é palpável como a materialidade emblemática e as operações evidentes e incisivas de trabalho, de que são feitas. Contra os que fizeram 1964, uma abertura real não poderia ser nem gradual nem lenta nem tampouco negociada. Mas requeria o calor altíssimo das ações coletivas concertadas em altos-fornos, com ciência, projeto e engenharia organizativa, para poder – como ocorreu na Argentina – apurar os crimes da ditadura, puni-los e rasgar, em tribunais investidos de valores e significação cívica, a dureza do ferro como papel. Enfim, construir a força coletiva e aguçá-la para os enfrentamentos duros requer projeto e organização. É o que cada peça de aço corten, de Amilcar de Castro, todavia ensina e demonstra, com a espécie de força e objetividade inerentes à arte.[xxviii]

De um modo ou de outro, consumadas ou não as expectativas, seja do movimento de trabalhadores e aliados, seja do escultor, o que, sim, importa notar, para a devida apreciação de suas obras, é que método e parâmetros de trabalho, estruturas concebidas, assim como o papel-chave atribuído ao entorno (sintetizado à lógica interna das obras épico-realistas) compõem um todo. Este último é indissociável do alinhamento histórico e político do autor – sem, portanto, que se possa entender um sem o outro.

*Luiz Renato Martins é professor-orientador dos PPG em História Econômica (FFLCH-USP) e Artes Visuais (ECA-USP); e autor, entre outros livros, de The Long Roots of Formalism in Brazil (Chicago, Haymarket/ HMBS).

Revisão, assistência de pesquisa e edição de imagens: Gustavo Motta.

Primeira parte de texto inédito, para o catálogo da mostra Amilcar de Castro na Dobra do Mundo, curadoria de Guilherme Wisnik, Rodrigo de Castro e Galciani Neves, São Paulo, MuBE, 11.03 – 26.09.2021, em preparação.

Agradeço a cessão solidária de imagens e documentos aos escritórios de arquitetura Paulo Mendes da Rocha (Eliane Duarte Alves e Helene Afanasieff) e MMBB (Marta Moreira); ao Instituto Amilcar de Castro (Leonardo de Castro Cesar) e ao MuBE (Galciani Neves, Guile Wisnik e Rodrigo de Castro, curadores; Pedro Carpinelli e Sr. Edson, assistentes da direção; Flavia Velloso, diretora do museu); a José Resende e a Daniele Pisani.

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CLARO, Amílcar M. (dir.), A Poética do Ferro (dir. geral Sandra Regina Cassettari, vídeo, 22’08’’, STV/SESC/SENAC, 2000);

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Notas


[1] Cf. Walter BENJAMIN, “Tese II” e “Tese VI”, Sobre o Conceito de História [1940], in Michael LÖWY, Walter Benjamin: Aviso de Incêndio – Uma Leitura das Teses “Sobre o Conceito de História”, trad. geral Wanda N.C. Brant, trad. das teses Jeanne Marie Gagnebin e Marcos Lutz Müller, São Paulo, Boitempo, 2005, pp. 48 e 65.

[i] O projeto e o concurso do MuBE, vencido por Mendes da Rocha, datam de 1986, ano também da expropriação do terreno em que foi instalado; a construção ocorreu de 1987 a 1995. Ver o depoimento e a apresentação do projeto pelo arquiteto no documentário de Luiz Bargmann Netto, Concepção Arquitetônica do Projeto – Museu Brasileiro da Escultura e Ecologia ( vídeo, 21’37’’, 1989-90, parte do projeto “Avaliação do processo produtivo do Museu Brasileiro da Escultura (MuBE) SP: do projeto ao uso”, coord. acadêmica Profa. Dra. Sheila Walbe Ornstein, FAU-USP/FAPESP), disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=bZ4ZN3kqOGQ.

[ii] Cf. idem. Ver também depoimento do engenheiro Mário Franco, calculista da obra, em L. Bargmann Netto, O Edifício do Museu Brasileiro da Escultura – Concepção Estrutural (vídeo, 24’44’’, 1989-90, parte do projeto “Avaliação do processo…, op. cit). disponível em: http://iptv.usp.br/portal/transmisao/video.action;jsessionid=8F7FE51F62B8DF64A1077B9DB70E0FE2?idItem=9187

[iii] Ambos palcos destinados a “espetáculos imprevisíveis” (disse-me o arquiteto ao telefone, em 22.03.2021, na última conversa nossa).

[iv] Ver L. R. MARTINS, “De Tarsila a Oiticica: estratégias de ocupação do espaço no Brasil”, in Margem Esquerda – ensaios marxistas, n. 2, São Paulo, Boitempo, novembro 2003, pp. 151-162. Para versão mais recente, ver idem, “Strategies of Occupying Space in Brazil, from Tarsila to Oiticica”, in idem, The Long Roots of Formalism in Brazil, ed. by Juan Grigera, transl. by Renato Rezende, intr. by Alex Potts, Chicago, Haymarket/Historical Materialism Book Series, p. 15-26.

[v] Cf. L. Costa, “Brasília: memorial descritivo do Plano Pilôto de Brasília, projeto vencedor do concurso público nacional” (1957), in idem, Sobre Arquitetura, Alberto Xavier (org.), 2ed. coord. por Anna Paula Cortez, Porto Alegre, UniRitter Ed., 2007 (Edição fac-símile de L. Costa, Sôbre Arquitetura, Alberto Xavier (org.), Porto Alegre, UFRGS, 1962), p. 265. Para comentários e análises detalhadas acerca dos sete projetos premiados no concurso do Plano Piloto (1956/1957), ver Milton BRAGA, O Concurso de Brasília: Sete Projetos para uma Capital, ensaio fotográfico de Nelson Kon, edição e apresentação de Guilherme Wisnik, São Paulo, Cosac Naify, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo (IMESP), Museu da Casa Brasileira, 2010.

[vi] Ver L.R. MARTINS, “Forma-libre: modo brasileño de abstracción o el malestar en la historia”, in Verónica Hernández DÍAZ (org.), XXXV Coloquio Internacional de Historia del Arte. Continuo/ Discontinuo. Los Dilemas de la Historia del Arte en América Latina, México, Instituto de Investigações Estéticas – Universidad Nacional Autónoma de México, 2017, p. 209-229. Para versão mais recente, ver L.R. MARTINS, “‘Free Form’: Brazilian Mode of Abstraction or a Malaise in History”, in idem, The Long Roots…, op. cit., pp. 27-43.

[vii] Ver Luiz RECAMÁN, Oscar Niemeyer, Forma Arquitetônica e Cidade no Brasil Moderno, tese de doutoramento, orientação Celso Fernando Favaretto, depto. de Filosofia, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002. Versão resumida de algumas das linhas mestras da tese encontra-se em idem, “Forma sem utopia”, in Elisabeta Andreoli e Adrian Forty (orgs.), Arquitetura Moderna Brasileira, London, Phaidon Press Limited, 2004, pp. 106-39. Ver também sobre o teor anti-urbano dos projetos de Brasília, L. R. MARTINS, “Free Form’…”, op. cit., pp. 27-43.

[viii] No âmbito específico das oportunidades profissionais, exerceu papel importante, para o desenvolvimento da referida “escola”, o extenso plano de construção de prédios públicos, fomentado pelo plano de ação do governo do estado de S. Paulo (PAGE – 1959/1963), sob a coordenação de Plínio de Arruda Sampaio. Ver a respeito Daniele PISANI, “Arquitetura paulista, semelhanças de família”, in Paulo Mendes da Rocha: Obra Completa, fotografias de Leonardo Finotti, São Paulo, Gustavo Gili, 2013, pp. 47-85; ver também Miguel Antonio BUZZAR, Maria Tereza de Barros CORDIDO e Lucia Noemia SIMONI, “A arquitetura moderna produzida a partir do plano de ação do governo Carvalho Pinto – PAGE (1959/1963)”, in Arq.Urb, n. 14, segundo semestre 2015, São Paulo, Universidade São Judas Tadeu, pp. 157-70.

[ix] Com palavras suas, e segundo razões paralelas ou contíguas, o crítico e curador Paulo Sérgio Duarte – que coordenou três das principais retrospectivas de Amilcar de Castro (Retrospectiva, Rio de Janeiro, Paço Imperial, 06.06-13.07.1989; Artista Homenageado, Porto Alegre, Bienal do Mercosul, 30.09-04.12.2005; Amilcar de Castro, Rio de Janeiro, MAM-RJ, 26.11.2014-01.03.2015) – assim descreveu a trama das sensações de estar diante de tais obras: “Na sua verticalidade as esculturas não se erguem diante dos olhos como paredes, não barram meu caminho nem obstruem minha visão, são como portas, muitas variações da porta, daquela que me permite atravessá-la (…)”. Cf. P. S. Duarte, “Amilcar de Castro ou a aventura da coerência”, in Novos Estudos CEBRAP, nº 28, São Paulo, Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, outubro de 1990, p. 152.

[x] Segundo um esboço da noção de “participação”, inserido no caderno de notas de Lygia Clark: “a obra de arte deve exigir uma participação imediata do espectador e ele, espectador, deve ser jogado dentro dela”. Ver a propósito Mário PEDROSA, “A obra de Lygia Clark” [1963], in idem, Acadêmicos e Modernos: Textos Escolhidos, vol III, org. e apres. Otília Arantes, São Paulo, Edusp, 1995, p. 350; e idem, “Significação de Lygia Clark” [1960], in idem, Dos Murais de Portinari aos Espaços de Brasília, org. Aracy Amaral, São Paulo, Perspectiva, 1981, p. 197. Sobre a noção de “participação”, como relação ativa do observador com o objeto estético, ver Hélio OITICICA, “Esquema geral da Nova Objetividade”, in Vv. Aa., Nova Objetividade Brasileira, catálogo, Mario Barata (pref.), Rio de Janeiro, gráfica A. Cruz, 1967, pp. 4-18 – sem numeração; e in H. OITICICA, Hélio Oiticica – Museu é o Mundo, org. César Oiticica Filho, Rio de Janeiro, Beco do Azougue, 2011, pp. 87-101 (ver principalmente ‘Item 3: Participação do espectador’, pp. 96-97); ver também L. R. MARTINS, “Strategies of Occupying Space…”, op. cit., p. 23; idem, “De Tarsila a Oiticica…”, op. cit., p. 159.

[xi] Aplicar-se-ia também a tal modo de participação o dito “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça” – divisa da narrativa ágil e diruptiva de Glauber Rocha (1939 – 1981), especialmente em Terra em Transe (1967). Porém, no caso das esculturas em questão, ter-se-ia de trocar o “uma câmera na mão”, de Glauber, por algo vinculando o olhar ao caminhar.

[xii] Ver Walter Benjamin, A Obra de Arte na Época de sua Reprodutibilidade Técnica (segunda versão), apresentação, tradução e notas Francisco de Ambrosis Pinheiro Machado, Porto Alegre, ed. Zouk, 2012. A propósito, observe-se que, em linhas gerais, as démarches críticas, acima referidas, de superação da forma aurática e singular da obra de arte, em prol da democratização da arte, foram consubstanciadas, nos termos do debate estético e artístico brasileiro, na proposição da “antiarte”, adiante discutida.

[xiii] Cf. Antonio DIAS, “Em Conversação: Nadja von Tilinsky + Antonio Dias”, in Vv. Aa.. Antonio Dias: Trabalhos / Arbeiten / Works 1967 – 1994, Darmstadt/ São Paulo, Cantz Verlag/ Paço das Artes, 1994, pp. 54-55.

[xiv] Oiticica distinguiu, na proposição lançada nessa mostra pelo objeto pictórico Nota sobre a morte imprevista (1965), de Antonio Dias, “o ‘turning point’ decisivo (…) no campo pictórico-estrutural”. Assim, muito mais do que um achado, restrito a uma obra individual, Oiticica distinguiu na obra do jovem Dias o índice emblemático de um processo amplo, de reconstrução do realismo nas artes visuais brasileiras, constituído a partir de várias raízes (incluindo o Cinema Novo e outros pintores participantes da mesma mostra: Gerchman [1942 – 2008], Escosteguy [1916 – 1989] etc.), Cf. H. OITICICA, “Esquema geral…”, op. cit., p. 90 (“Item 2: Tendência para o objeto ao ser negado e superado o quadro de cavalete”). Sobre o movimento de construção nas artes visuais brasileiras de um novo realismo, em resposta ao golpe de 1964, ver também L. R. Martins, “Trees of Brazil”, in The Long Roots…, op. cit., pp. 73-113.

[xv] Há sinais de que pelo menos desde 1965 Amilcar tinha em vista fazer esculturas de grande escala. De fato, nesse ano, seus trabalhos na Bienal de Arte de São Paulo incluíam 5 esculturas com altura média de 1,80 m (não tive acesso a fotos dessas peças). No entanto, por uma razão ou outra, a experiência não teve seguimento nos anos seguintes. Em 1977, é que a hipótese da grande escala foi retomada mediante dois trabalhos, com estruturas todavia derivadas de obras dos anos 1960, conforme detalhado à frente. Assim, apenas de 1978 em diante é que o grande formato se impôs como constante, trazendo consigo mudanças estruturais correlatas, conforme discutirei a seguir.

[xvi] Sobre as leituras iniciais e a primeira visita de Amilcar de Castro a uma mostra das obras de Bill, em 1950 no Rio de Janeiro, ver Márcio Sampaio, “Vida e Arte: uma poética em construção”, in Ronaldo Brito (ed.), Amilcar de Castro, São Paulo, Takano, 2001, p. 208.

[xvii] Em combinação com a inauguração da estação Sé do metrô, em fevereiro de 1978, a Empresa Municipal de Urbanização-EMURB planejou a unificação da Praça Clóvis com a Praça da Sé e a reurbanização do conjunto, para inauguração no 425º aniversário da cidade (25.01.1979). A instalação correlata de esculturas na praça, em 1978-79, derivou de um programa de 1975, com várias propostas, logo suspensas. Lançado pelo engenheiro João Evangelista Leão, presidente da comissão de zoneamento da cidade, que contou com o concurso do historiador e artista Flavio Motta (1923 – 2016) e do artista Marcello Nitsche (1942 – 2017), o programa convocou vários artistas residentes em S. Paulo para a revitalização de áreas degradadas (Minhocão, rua 25 de Março, av. Santos Dumont etc.), mas só algumas propostas foram de fato implementadas. Por sua vez, para a Praça da Sé (na gestão seguinte), foram convidados, com mais recursos, também artistas não residentes na cidade (Amilcar de Castro, Franz Weissmann [1911 – 2005], Sérgio Camargo [1930 – 1990], entre outros).

[xviii] Para foto da peça (350 x 400 x 350 x 5 cm), na Caixa Econômica de Minas Gerais, Belo Horizonte, ver R. Brito, op. cit., p. 102.

[xix] Ocorreram na catedral da Sé os dois primeiros atos da retomada dos protestos explícitos e de massa contra a ditadura, desde a onda repressiva que se seguiu à decretação do AI-5, em 13.12.1968: a missa-manifestação em 17.03.1973, contra o assassinato do estudante da USP Alexandre Vanucchi Leme, com 5 mil presentes estimados; o culto-ecumênico em 31.10.1975, contra a tortura e o assassinato do jornalista da TV Cultura Vladimir Herzog, com 8 mil presentes estimados.

[xx] Para o confronto na discussão estética, no Brasil, entre as noções de “forma pura” e “forma objetiva”, ver L.R. MARTINS, “Muito além da forma pura” (posfácio), in Neil DAVIDSON, Desenvolvimento Desigual e Combinado: Modernidade, Modernismo e Revolução Permanente, org. e revisão crítica de L.R. Martins, apresentação de Steve Edwards, prefácio de Ricardo Antunes, trad. Pedro Rocha de Oliveira, São Paulo, Editora Unifesp/ Ideias Baratas, 2020, pp. 321-46. Ver também nota 28, adiante.

[xxi] Ver M. Pedrosa, “Arte Ambiental, Arte Pós-Moderna, Hélio Oiticica” [1966], in idem, Dos Murais…, op. cit., pp. 205-209 ; ver também H. OITICICA, “Julho de 1966 / Posição e Programa / Programa Ambiental” [1966], in idem, Hélio Oiticica – Museu é o Mundo, org. C. Oiticica Filho, op. cit., pp. 79-85.

[xxii] Ver a propósito a noção correlata proposta por Ferreira GULLAR, “Teoria do Não-Objeto” [1960], in Aracy AMARAL (supervisão e coordenação), Projeto Construtivo Brasileiro na Arte (1950 – 1962), Rio de Janeiro, Museu de Arte Moderna/ São Paulo, Pinacoteca do Estado, 1977, pp. 85-94. Para a discussão da noção ver Sérgio Bruno MARTINS, “Entre a fenomenologia e o historicismo: Amilcar de Castro enquanto ponto cego da teoria do não-objeto”, in Novos Estudos CEBRAP, nº 104, São Paulo, Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, março de 2016, pp. 195-207.

[xxiii] Relatei certa vez a Amilcar, meses após a mostra no Centro de Arte Hélio Oiticica (11.12.1999 – 26.03.2000), que havia visto, numa rua lateral vizinha ao Centro, uma peça em grande formato ocupada por um morador de rua. O topo da escultura funcionava simultaneamente como cabide e varal para secar roupas. Uma grande dobra da chapa, constituindo um plano próximo do chão, funcionava como abrigo noturno, embaixo do qual o chão fora forrado de papelão. Amilcar vibrou de contentamento com o seu parangolé, convertido em objeto funcional pela operação (de participação) anônima.

[xxiv] Cf. H. Oiticica, “Aparecimento do Suprasensorial”, in idem, Hélio Oiticica – Museu…, org. C. Oiticica Filho, op. cit., p. 106.

[xxv] Ver <https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2021/03/entulho-revirado.shtml>.

[xxvi] Para a história do debate estético no Brasil acerca da noção materialista de “forma objetiva” forjada na crítica literária brasileira, mas envolvendo também as noções correlatas de “arte negativa”, de “open-project (projeto-aberto)” e de “arte ambiental”, elaboradas no curso do diálogo entre Dias e Oiticica, ver L.R. Martins, “Muito além da forma (…)”, op. cit., pp. 327-45. Para detalhes sobre a noção de “open-project”, ver Hélio Oiticica, “Special for Antonio Dias’ Project-Book” (6-12/aug./1969 – London) e A. Dias, “Project-Book – 10 Plans for Open Projects”, notas para o álbum Trama (de Antonio Dias), in Antonio Dias, Antonio Dias, textos de Achille Bonito Oliva e Paulo Sergio Duarte, São Paulo, Cosac Naify/APC, 2015, pp. 94-7. Sobre detalhes do projeto-aberto de “arte ambiental” a quatro mãos e de longa duração, entre Dias e Oiticica, ver Gustavo Motta, No Fio da Navalha – Diagramas da Arte Brasileira: do ‘Programa Ambiental’ à Economia do Modelo, dissertação de mestrado, São Paulo, Programa de Pós-graduação em Artes Visuais, Escola de Comunicações e Artes (ECA), Universidade de São Paulo (USP), 2011, pp. 169-81, disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27160/tde-13032013-143600/pt-br.php>.

[xxvii] Ver Roberto SCHWARZ, “Cultura e Política: 1964 – 1969” [1970], in idem, O Pai de Família e Outros Estudos, São Paulo, Paz e Terra, 1992, pp. 61-92. O texto foi publicado originalmente sob o título “Remarques sur la culture et la politique au Brésil, 1964 – 1969”, in revue Les Temps Modernes, nº 288, Paris, Presses d’aujourd’hui, juillet 1970, pp. 37-73.

[xxviii] Tal como a clareza do método de rasgar e dobrar o ferro, o alinhamento político do autor era inequívoco. Em 09.05.1998 (ano eleitoral), às vésperas de uma nova mostra em S. Paulo, na galeria Raquel Arnaud, Amilcar de Castro foi interpelado pelo jornalista José Carlos SANTANA (“Amilcar de Castro brinca com a matéria em nova mostra”, in “Encontros Notáveis/ Cultura/ Caderno2” [ano IX Número 4, 107, sábado, 09.05.1998], O Estado de S. Paulo, pp. D1 e D11, nos seguintes termos: “Estado – O sr. votou em Fernando Henrique Cardoso e vai votar nele para mais um mandato?/ Amilcar – Não votei e jamais votaria. É um sociólogo metido a sebo, vaidoso demais, nele não voto, não. Eu sempre votei no Lula e acho uma pena o Brasil não dar a ele a oportunidade de fazer alguma coisa por este país. Ele sabe do que o povo precisa e tem gente muito boa com ele, gente séria e sábia”. Assinalada a posição de Amilcar (sem que caiba discutir aqui a posição lulista ou petista – que, desde logo, não subscrevo, coisa que também não vem ao caso –), cumpre tomar como sinal decisivo, para a interpretação e a história da obra do escultor, o modo sem meias palavras com que o autor apresentava seu alinhamento político. Tal modo é paralelo e condizente com a evidência, presente na viravolta espacial de suas esculturas e, nas circunstâncias, na lição política de suas peças – a despeito de tais elementos serem sistematicamente desconsiderados na “fortuna crítica” da obra de Amilcar de Castro. Tampouco cabe entrar no mérito da consecução posterior, ou não, pelos governos federais do PT a partir de 2003, das expectativas políticas do autor. Amilcar, registre-se, infelizmente, faleceu (em pleno vigor produtivo) em 21.11.2002, antes da posse do primeiro governo Lula (01.01.2003)].

 

 

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