Política psicanalisada

Imagem: Vijay Sadasivuni
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram
image_pdfimage_print

Por ALEXANDRE HECKER*

O caldo de cultura em que o monstro se nutre vem da parte inconsciente da cultura

Nossa indignação política e moral contemporânea já foi experimentada por muita gente boa. Lê-se na biografia que Elisabeth Roudinesco fez de Freud – Sigmund Freud, em sua época e em nosso tempo – um trecho em que ela comenta, e cita literalmente, um ensaio de Thomas Mann, Bruder Hitler [Irmão Hitler], de 1939, no qual o grande literato compara Freud ao ditador, “um sábio e um monstro”. A interpretação transcrita do que Thomas Mann apresenta de Hitler é sugestiva de outra comparação mais atual e assustadora. Ele, incrédulo, conjecturava sobre a tremenda inversão de valores na Alemanha que propiciara a ascensão daquele estranho líder.

Trazendo o assunto aqui para nós, seria como não entender de que forma o brasileiro, conhecido por ser acolhedor, amante da folia carnavalesca, da aproximação sensual, um indivíduo que puxa conversa em qualquer botequim com qualquer desconhecido, que já foi definido por Sérgio Buarque como “homem cordial”, passou a ser repositório de hostilidades, agredindo os outros na rua – situação em que, numa esquina da cidade de São Paulo, o próprio autor destas linhas fui vítima e, portanto, autotestemunha. Como este pequeno brasileiro se transfigurou num furibundo iconoclasta a destruir irresponsavelmente o patrimônio histórico nacional, a assassinar portadores de opiniões divergentes?!

Thomas Mann não atinava como a civilização alemã, “que atingira o mais alto grau da Europa, tanto no saber, na competência, na ciência, na filosofia” adotara aquele homem como chefe: Hitler era um perdedor, “um vagabundo de hospício”, um “patinho feio, tomando-se por cisne, um charlatão”. O justo oposto do que a ética protestante modelara durante décadas, séculos. Era, novamente nas palavras exatas do romancista, “um miserável, impostor histérico… um cavaleiro da indústria do poder, cuja arte se resume a provocar com um repugnante talento de médium a corda sensível do povo e fazê-la vibrar num transe obsceno. […] esse cretino que odeia a revolução social, esse sádico hipócrita, esse rancoroso sem honra”. Poder-se-ia usar terminologia semelhante para o desclassificado que ocupou o principal cargo de nosso país. Como ocorreu essa degenerescência?

Utilizando-se de conceitos psicanalíticos de seu grande amigo, Freud, Thomas Mann esboçava uma explicação para a tremenda tragédia: o caldo de cultura em que o monstro se nutria vinha da parte inconsciente da cultura alemã, de sua parte tenebrosa, a que o Herr Professor chamava pulsão de morte.

Conforme o mestre Roberto Da Matta, em O que faz o Brasil, Brasil?, seria “preciso carnavalizar um pouco mais a sociedade como um todo, introduzindo os valores desta festa relacional em outras esferas de nossa vida social”. Só assim espantaríamos a fera bolsonarista, para a tranquilidade psíquica nacional.

*Alexandre Hecker é professor aposentado de História Contemporânea nas Faculdades Sumaré. Autor, entre outros livros, de Socialismo sociável: História da esquerda democrática em São Paulo (1945-1965) (Ed. Unesp). [https://amzn.to/3QRfs1J]


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Discurso filosófico da acumulação primitiva
Por NATÁLIA T. RODRIGUES: Comentário sobre o livro de Pedro Rocha de Oliveira
O anti-humanismo contemporâneo
Por MARCEL ALENTEJO DA BOA MORTE & LÁZARO VASCONCELOS OLIVEIRA: A escravidão moderna é basilar para a formação da identidade do sujeito na alteridade do escravizado
A situação futura da Rússia
Por EMMANUEL TODD: O historiador francês revela como previu "retorno da Rússia" em 2002 baseado em queda da mortalidade infantil (1993-1999) e conhecimento da estrutura familiar comunitária que sobreviveu ao comunismo como "pano de fundo cultural estável"
Inteligência artificial geral
Por DIOGO F. BARDAL: Diogo Bardal subverte o pânico tecnológico contemporâneo ao questionar por que uma inteligência verdadeiramente superior embarcaria no "ápice da alienação" do poder e dominação, propondo que AGI genuína descobrirá os "vieses aprisionantes" do utilitarismo e progresso técnico
A desobediência como virtude
Por GABRIEL TELES: A articulação entre marxismo e psicanálise revela que a ideologia atua "não como discurso frio que engana, mas como afeto quente que molda desejos", transformando obediência em responsabilidade e sofrimento em mérito
Desnacionalização do ensino superior privado
Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA: Quando a educação deixa de ser um direito para se tornar commodity financeira, 80% dos universitários brasileiros ficam reféns de decisões tomadas em Wall Street, não em salas de aula
O conflito Israel x Irã
Por EDUARDO BRITO, KAIO AROLDO, LUCAS VALLADARES, OSCAR LUIS ROSA MORAES SANTOS e LUCAS TRENTIN RECH: O ataque israelense ao Irã não é um evento isolado, porém mais um capítulo na disputa pelo controle do capital fóssil no Oriente Médio
Romper com Israel já!
Por FRANCISCO FOOT HARDMAN: O Brasil deve fazer valer sua tradição altamente meritória de política externa independente rompendo com o Estado genocida que exterminou 55 mil palestinos em Gaza
Oposição frontal ao governo Lula é ultra-esquerdismo
Por VALERIO ARCARY: A oposição frontal ao governo Lula, neste momento, não é vanguarda — é miopia. Enquanto o PSol oscila abaixo dos 5% e o bolsonarismo mantém 30% do país, a esquerda anticapitalista não pode se dar ao luxo de ser 'a mais radical da sala'
A ideologia do capital posto em plataformas
Por ELEUTÉRIO F. S. PRADO: Eleutério Prado desvenda como Peter Thiel inverte a crítica marxista para defender que "capitalismo e concorrência são opostos", cristalizando o monopólio como virtuoso enquanto promete "cidades de liberdade" policiadas por robôs com inteligência artificial
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES