Amizade clandestina

LEDA CATUNDA, A Cachoeira, 1985, acrílica s/ plásticos e tecido, 700x400 x 600cm
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Por JOSUÉ PEREIRA DA SILVA*

História de um quase caso, de um quase conto

À memória de Patrizia Piozzi

Foi em um bar à esquina da Rua Joaquim Gustavo com a Praça da República que nos encontramos pela última vez. Perto dali, na Rua Aurora, ficava a livraria Avanço, lugar bastante frequentado por estudantes e intelectuais de esquerda que para ali se encaminhavam em busca das últimas novidades editoriais, inclusive e principalmente livros marxistas em castelhano vindos dos países da América Latina.

Alguns daqueles países ainda respiravam democracia ou mesmo ensaiavam uma experiência de transição pacífica ao socialismo, como ocorrera no Chile de Allende, antes do golpe. Além de ficar perto da livraria, o bar era também um lugar discreto onde se podia conversar tranquilo.

Fazia já uns três anos que nós nos encontrávamos periodicamente ali ou em outros lugares, uma vez por semana ou a cada quinze dias para falar de nossas aulas no Mobral, trocar livros e discutir política. Naquele dia eu precisava dizer a ela que não seria mais possível continuar nossos encontros; a organização me ordenara interromper os encontros, a amizade. Mas como dizer-lhe aquilo? Como interromper uma ligação já antiga e marcada por tanta empatia e afeto?

Há alguns dias, em reunião numa casa na Praia Grande, colocara a questão para a direção da organização na qual acabara de ingressar. Eu sabia que minha amiga tinha ligação com outro grupo trotskista e, por isso, não podia deixar de avisar à direção do grupo recém-nascido que eu mantinha uma relação de amizade com ela, que nos encontrávamos com certa frequência.

Minha organização (ou grupo) era de uma tendência; a dela era de outra. Ambas tinham origem comum no trotskismo e assim se professavam. Mas cada grupo reivindicava apenas para si a ortodoxia trotskista, como, aliás, costuma acontecer com todos eles. Éramos, portanto, adversários políticos; e isso, como alegava a liderança, impossibilitava a continuidade de nossos encontros, de nossa amizade.

O grupo recém-criado no qual eu ingressara surgira em decorrência de um racha, uma cisão em outra organização, de tendência semelhante e da qual eu ainda não fazia parte formalmente, embora estivesse militando ativamente sob sua influência.

Eu atuava no movimento estudantil há mais de um ano e era leitor assíduo de Trotsky há bem mais tempo. Percebia que entre meus companheiros de militância estudantil, sobretudo aqueles que demonstravam mais traquejo e perspicácia, assumindo por isso papeis de liderança, alguma coisa não corria bem. Não era nada aparente, mas dava para perceber que havia uma tensão no ar, alguma coisa latente nas entrelinhas das discussões. Tudo se tornou claro para mim quando, sem mais, um deles me ofereceu carona.

Não era daquelas pessoas de amizade fácil, que queria apenas conversar amenidades, estreitar amizade. Além do mais, morávamos em lados quase opostos da cidade. Pensei comigo, aí tem coisa! Aceitei a carona e, ainda no campus da universidade, ele parou o carro para dar carona a outro militante que, me pareceu, já o esperava. Tratava-se de um colega que eu conhecia de vista nas reuniões de estudantes; era uma pessoa de presença, digamos, marcante, nos eventos e reuniões estudantis.

Durante nosso trajeto, falando de amenidades, ambos se derretiam de simpatia para comigo, o que até então não me parecia uma atitude comum em nenhum deles. Fiquei ainda mais encabulado do que já estava.

Saímos da cidade universitária em direção à Praça Panamericana, subimos a Rua São Gualter e entramos à direita na Praça Valdir Azevedo, onde estacionamos.

O primeiro deles, o que oferecera carona, disse-me então que ambos gostariam de conversar comigo, daí termos parado ali. Perguntou-me então se eu sabia que havia uma organização por trás daquelas atividades dos estudantes. Disse-lhe que não, mas intuía que havia algo mais que eu não conhecia.

A essa altura, os dois se revezavam nas conversas e me informavam sobre a existência de uma organização trotskista, da qual eles faziam parte. Eles me disseram também que haviam observado minha atuação no movimento estudantil, meu afinamento com as posições da organização deles; e, por isso, achavam que eu tinha plenas condições de participar dela como militante organizado. E que o objetivo daquela conversa comigo era me convidar a entrar na tal organização.

Explicaram-me, então, as condições e exigências para ser membro da mesma e se eu estivesse de acordo… Davam-me algum tempo, não muito, para pensar antes de dar uma resposta, que acabou por ser positiva.

Assim, alguns dias e algumas reuniões depois de ter ingressado na tal organização eu estava naquela situação de dizer a minha amiga que nossos encontros não podiam continuar. Mas não precisei dizer muito porque, além de compreensiva, ela entendia do assunto mais do que eu.

Afinal, por intermédio dela eu conheci Trotsky, seus livros; ela começou a me emprestar os textos do revolucionário russo, ao perceber minha percepção internacionalista das lutas sociais durante uma conversa que tivemos por ocasião do golpe no Chile e da consequente morte de Salvador Allende.

O primeiro texto que ela me emprestou foi uma cópia xerografada de A Revolução Permanente – em castelhano, língua com a qual eu não tinha familiaridade. Mas ela logo me disse que para quem sabia português não era difícil; na verdade, era até mais fácil para mim do que o italiano, sua língua natal. Para começar, eu só precisava saber identificar algumas palavras-chave que eram diferentes de suas similares em português. Como huelga, por exemplo, que significa greve. No mais, era só eu começar a ler que em pouco tempo me familiarizaria com o castelhano e me sentiria à vontade.

E assim se deu; a partir do segundo ou terceiro texto, eu já lia com alguma desenvoltura.

Desde aquele dia de uma quase despedida, portanto, nossos encontros se tornaram, por muito tempo, apenas casuais. Finda a época de estudantes, ambos formados, a vida profissional nos levou para lugares distintos. Ficamos sem nos ver por mais de uma década.

Até que um dia, por acaso, nos encontramos na universidade. Coincidência: nós dois estávamos trabalhando na mesma universidade como professores, embora em unidades diferentes. Conversamos bastante naquele dia, tomamos alguns cafés. Falamos do passado, recordações antigas.

Lembramo-nos de como nos conhecemos durante uma reunião da coordenação do Mobral, em um galpão perto da Avenida Dr. Arnaldo, na Rua Galeno de Almeida. Durante a reunião, surgiu uma conversa sobre trabalhadores e sindicatos, da qual ambos participamos. Seu sotaque me chamou a atenção e após a reunião puxei conversa com ela. Perguntei de onde ela era. “Itália”, ela me respondeu. Ela estudava Filosofia na USP; eu me preparava para o vestibular de Economia.

Como ela morava em Perdizes e eu ia visitar uns amigos que moravam para aqueles lados, fomos juntos a pé, e durante o trajeto conversamos sobre política e sobre nossas aulas no Mobral, como as preparávamos, até perto de sua casa. Em nossas aulas, ambos procurávamos despertar a consciência crítica dos alunos.

Ela me dizia como usava matérias de jornal para ensiná-los a ler e para discutir a situação política do país; eu dizia a ela como lhes ensinava aritmética, usando o salário mínimo para mostrar como era insuficiente para suprir as necessidades essenciais de uma família. Desde aquele dia, ficamos amigos.

Certa ocasião ocorreu um episódio bizarro relacionado com nossos encontros que vale a pena recordar. Marcamos um encontro no Parque da Água Branca para discutir um texto. Chegando lá, não encontramos um banco livre onde pudéssemos sentar; então, resolvemos nos sentar na grama. Ficamos ali por um tempo, sentados, discutindo o texto; depois nos despedimos e eu retornei direto para minha casa. Quando lá cheguei, todos sabiam que eu estive no Parque da Água Branca: “deitado na grama com uma loura”. Quem nos viu lá tinha imaginação fértil…

Lembrei-lhe também que foi com ela que fui pela primeira vez a um restaurante chinês. Um dia nos encontramos para nossas já regulares conversas político-pedagógicas e ela me disse que ainda não tinha almoçado e me perguntou se eu gostava de comida chinesa. Não conhecia, disse-lhe. Aí ela me convidou para almoçarmos juntos, mas eu lhe disse que não podia porque não tinha dinheiro. E ela se propôs a pagar a conta. Fomos, então, a um restaurante na Rua Fernão Dias, perto do Largo de Pinheiros; lá comemos frango xadrez com amendoim. Achei a combinação esquisita, mas gostei. A única comida chinesa que eu conhecia naquela época eram os pastéis, porque havia trabalhado em uma pastelaria na Lapa, quando adolescente. Desde aquele frango xadrez me tornei um apreciador da culinária chinesa.

Nesse reencontro também conversamos bastante sobre política. A situação havia mudado, o país se redemocratizado; e, ao menos em parte, nossas posições políticas também mudaram. Mas nossa amizade permanecia a mesma, ainda havia muita empatia mútua. Até sua morte em 2016.

Encerro essa narrativa lembrando uma frase que a mãe dela, idosa, mas ainda forte, pronunciou ao lado de seu caixão, enquanto lhe acariciava a face: “Mio piccolo genio!”.

*Josué Pereira da Silva é professor aposentado da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Sociologia crítica e a crise da esquerda (Intermeios).

Publicado originalmente no livro Quase contos, quase casos.


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