Annie Ernaux e a fotografia

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Por ANNATERESA FABRIS*

Tal como os fotógrafos atentos ao espetáculo do cotidiano, a escritora demonstra a capacidade de lidar com aspectos da civilização de massa de maneira distanciada, mas nem por isso menos crítica

Publicado em 1993, Journal du dehors não apresentava o prefácio acrescentado por Annie Ernaux na edição de bolso lançada em 1996. Nele a escritora dava conta do que significava viver numa ”cidade nova”, na qual não estavam inscritas “as marcas do passado e da história”. A chegada num lugar “saído do nada em alguns anos, destituído de toda memória, com construções espalhadas num território imenso, de limites incertos” tinha constituído uma “experiência perturbadora. Eu estava submersa num sentimento de estranheza, incapaz de ver algo além das esplanadas ventosas, das fachadas de cimento rosa ou azul, do deserto das ruas dos conjuntos habitacionais. A impressão contínua de flutuar entre céu e terra, numa no man’s land. Meu olhar era semelhante às paredes de vidro dos prédios de escritório, que não refletiam ninguém, apenas as torres e as nuvens”.

Aos poucos, Annie Ernaux foi saindo da “esquizofrenia” e começou a apreciar a vida num “recanto cosmopolita, no meio de existências iniciadas alhures, numa província francesa, no Vietnã, no Magreb ou na Costa do Marfim – como a minha na Normandia”. A aceitação do lugar leva-a a observá-lo de perto. Interessa-se pelas brincadeiras das crianças, pelo modo como as pessoas caminhavam pelos corredores do centro comercial Trois-Fontaines, pelos passageiros nos abrigos dos ônibus, pelas conversas ouvidas no RER, o trem regional que ligava Cergy-Le Haut a Marne-la-Vallée-Chessy, passando por Paris. Essa aceitação desperta nela a vontade de “transcrever cenas, gestos de anônimos, […], grafitis nos muros, apagados logo depois de inscritos. Tudo o que, de um modo ou de outro, provocava em mim uma emoção, uma inquietação ou revolta”.

Essas circunstâncias estão na base do diário do afora, que não deve ser considerado uma reportagem, uma investigação de sociologia urbana, e sim “uma tentativa de alcançar a realidade de uma época – essa modernidade da qual uma cidade nova fornece o sentimento agudo sem que possamos defini-la – por meio de uma coleção de instantâneos da vida cotidiana coletiva”.

A escritora busca os signos dessa modernidade em manifestações que podem parecer anódinas ou desprovidas de significado: o modo de olhar para as compras no caixa do supermercado, as palavras usadas para pedir um corte de carne ou apreciar um quadro denunciam “os desejos e as frustrações, as desigualdades socioculturais”. Por isso, ela conclui: “A sensação e a reflexão suscitadas pelos lugares ou pelos objetos são independentes de seu valor cultural e o hipermercado oferece tanto sentido e verdade humana quanto a sala de concerto”.

O objetivo da empreitada é sublinhado no penúltimo parágrafo: “Evitei, na medida do possível, colocar-me em cena e exprimir a emoção que está na origem de cada texto. Ao contrário, procurei praticar uma espécie de escrita fotográfica do real, na qual as existências cruzadas conservariam sua opacidade e seu enigma. (Mais tarde, vendo as fotografias que Paul Strand fez dos habitantes de um vilarejo italiano, Luzzano, fotografias que impressionam pela presença violenta, quase dolorosa – os seres estão lá, simplesmente lá –, pensaria estar diante de um ideal, inacessível, de escrita)”.

No fecho do prefácio, Annie Ernaux acaba reconhecendo que colocou bastante de si nesse diário peculiar: obsessões e lembranças que determinaram “inconscientemente a escolha da palavra, da cena a ser fixada”. Diante disso, constata que é possível descobrir a si mesma no ato de projetar-se no mundo exterior, pois são “os outros, anônimos encontrados no metrô, nas salas de espera que, pelo interesse, pela cólera ou pela vergonha com que nos atravessam, despertam nossa memória e nos revelam a nós mesmos”.

Esse breve texto introdutório requer algumas considerações que ajudarão a compreender melhor o significado do diário. Em 1975, a escritora foi viver em Cergy-Pontoise, uma cidade nova criada oficialmente em 11 de agosto de 1972, à margem do rio Oise, que englobou o vilarejo de Cergy, cuja existência está documentada desde o século XII, e a cidade de Pontoise, que ostenta mais de dois mil anos de história.

Portanto, a falta de memória e de história deve ser reportada exclusivamente à cidade nova, organizada em forma de ferradura, ainda em construção nos dias de hoje e cujos marcos principais são o bairro administrativo e de negócios, dominado pela pirâmide invertida do prédio da prefeitura, concebido pelo arquiteto Henry Bernard, e o Eixo Maior, de autoria do artista israelense Dani Karavan.

No diário, Annie Ernaux refere-se, de passagem, ao sol que se punha entre “as barras entrecruzadas dos pilares que desciam em direção ao centro da Cidade Nova”, ao açougue do vilarejo, situado abaixo da nova configuração urbana, e ao empório Hédiard, “no bairro das lojas chiques”, pois sua atenção é atraída, sobretudo, pelas pessoas que encontra nos supermercados, nos centros comerciais, nas lojas de departamento, no trem regional, no metrô, que lhe permitem construir um retrato sem retoques da sociedade contemporânea.

O diário, como esclarece Catherine Rannoux-Wespel, não foi concebido como tal; tornou-se progressivamente o texto publicado em 1993 por meio de tentativas e deslocamentos sucessivos e de uma longa interrogação. O produto final é fruto de três conjuntos: um maço de papéis contendo observações e anotações sobre a experiência de vida em Cergy-Pontoise; notas relativas ao projeto de um romance intitulado A cidade nova, ainda em gestação em 1982, momento em que Annie Ernaux dá início ao projeto “autossociobiográfico” com a redação de O lugar, publicado no ano seguinte,[1] e fragmentos, quase todos datados, que serão transpostos com variações no texto editado.

Entre os três conjuntos, o primeiro é o mais íntimo; traz anotações sobre a imensidão, a falta de profundidade, o deserto, o silêncio e o vento, a perda do corpo. Nele, a autora traça um paralelo entre os canteiros de obras da cidade moderna e o “faroeste”, filmes futuristas (“pior que Alphaville[2]”) e as ruínas.

Confrontada com a “impossibilidade da narrativa”, Annie Ernaux recorre ao fragmento, que remete à evidência e está em sintonia com a “cidade em pedaços”. O diário em si tem início em 1984 e traz anotações, em folhas soltas, sobre o que vê no trem, na rua, nos centros comerciais de Cergy-Pontoise e Paris. A experiência da cidade moderna não produz apontamentos regulares e chega, finalmente, a um tipo de escrita associada à dimensão coletiva e ao anonimato. O universo social da vida moderna é o leitmotiv do diário e as reflexões sobre a questão literária cedem lugar à problemática da função social do escritor.

O diário traz, com efeito, diversas reflexões sobre literatura. Uma breve anotação entre parênteses “(Percebo que procuro sempre os signos da literatura na realidade)”, datada de 1986, é seguida, pouco depois, por uma constatação sobre a caracterização da figura do escritor por meio de sinais exteriores. As afirmações de que um escritor deve ter um gato ou uma caderneta de apontamentos suscitam um comentário um tanto desalentado: “A escrita, então, não é suficiente, são necessários signos exteriores, provas materiais para definir o escritor, o ‘verdadeiro’, quando esses signos são acessíveis a todos”.

Num apontamento de 1989, Annie Ernaux descreve uma cena presenciada no metrô que a leva a estabelecer um elo com sua prática de escrita: um jovem casal alterna momentos de violência verbal com carícias, como se estivesse sozinho no vagão. Trata-se de uma impressão falsa, pois, de tempos em tempos, eles olham para os passageiros de maneira desafiadora. “Impressão terrível”, anota a autora para arrematar “Digo a mim mesma que a literatura é isso para mim”.

Depois de assistir a um “exercício retórico” na estação Charles-de-Gaulle-Étoile entre um bêbado e um sujeito meio perdido, Ernaux ensaia uma declaração de princípios sobre a maneira de retratar os “fatos reais”. Eles podem ser relatados “com precisão, em sua brutalidade, em seu aspecto instantâneo, fora de toda narrativa”, ou serem guardados para “fazê-los (eventualmente) ‘servir’, para entrar num conjunto (um romance, por exemplo)”. Os fragmentos registrados no diário a deixam insatisfeita, pois ela necessita “sentir-se engajada num trabalho longo e construído (não sujeito ao acaso dos dias e dos encontros)”. Ao mesmo tempo, porém, tem consciência de que não pode deixar de “transcrever as cenas do RER, os gestos e as palavras das pessoas por si mesmas, sem que sirvam para alguma coisa”.

Essa última observação, que encerra em si a relação da escrita ernaultiana com a fotografia, induz a retomar o que ela escreveu sobre Paul Strand. Motivada pelas fotografias que integram o livro Un paese (1955), ambientado em Luzzara (e não Luzzano), vilarejo natal de Cesare Zavattini, autor dos textos, Ernaux demonstra seu apreço pelo “realismo dinâmico” do fotógrafo. Com esse termo, Paul Strand defendia um tipo de realismo militante, alicerçado na relação dialética entre geral e particular e na qualidade metafórica da imagem, distante tanto do registro imparcial quanto da busca do excepcional ou sensacional.

O que lhe interessava de fato era a captação de “temas normais”, enfeixando numa rua toda uma cidade ou num canto de cozinha o modo de vida de um país. A “presença” que atrai Ernaux é determinada pelo abandono de qualquer narrativa heroica e pela escolha de um tipo singelo de retrato: seus modelos eram captados em poses frontais, contra fundos neutros e emoldurados por uma porção minúscula de espaço.[3]

Numa entrevista concedia por ocasião da exposição Exteriores: Annie Ernaux e a fotografia, apresentada na Maison Européenne de la Photographie entre 28 de fevereiro e 26 de maio deste ano, a escritora volta a citar o nome de Paul Strand, mas substitui a referência a Un paese por outro empreendimento: La France de profil (1952). O retrato do jovem camponês de Gondeville (1951) suscita o mesmo tipo de reflexão de 1996: trata-se de imagens que expressam o “estar lá”. O observador não sabe nada dos modelos, que trazem em si “uma força, um enigma”. Ernault declara abertamente estar em busca de algo parecido na captura do real ensaiada no diário: “É evidente, pelo título, que isso se passava no exterior. Que era possível descobrir uma riqueza absolutamente incrível: o exterior”.

A leitura da tradução britânica do diário, que recebeu o título de Exteriors, despertara na curadora Lou Stoppard a ideia de uma pesquisa sobre as relações entre Annie Ernaux e a fotografia. Para levar adiante o projeto, a curadora realizou, entre 4 e 22 de abril de 2022, uma residência curatorial na Maison Européenne de la Photographie, cujo resultado final foi a exposição do corrente ano.

No relatório dessa experiência, Stoppard explica as razões que a levaram a tomar Journal du dehors como um paradigma para a análise da questão que estava no centro de seus interesses. Enquanto em outros escritos de Ernaux as imagens desempenham os papéis de temas ou incitadores, no diário são os textos que parecem “tornar-se fotografias, objetos num quadro que o leitor ou ‘espectador’ pode, a um só tempo, observar e penetrar. Simultaneamente distante e implicado, o leitor-espectador vê e imagina, está presente e lembra. E, contudo, ele nada mais faz do que encontrar uma cena, uma imagem”.

Estimulada pela leitura, Stoppard indaga o que aconteceria se comparasse os textos do Journal du dehors com fotografias. O processo seria capaz de revelar o tratamento dispensado à literatura em oposição à fotografia? Ou teria condições de dizer algo sobre as expectativas e os ideais projetados em cada meio de comunicação? Ao discutir o projeto com Ernaux, a curadora ficou impressionada com a descrição feita por ela a respeito da sinergia entre fotografia e escrita: “Quando escrevo, procuro transmitir, na medida do possível, o peso da realidade. A realidade nos agarra, somos, em algum lugar, quase prisioneiros. Que as palavras sejam como fotos pelas quais somos dominados, fascinados. É a fascinação do real”. Se a literatura é uma maneira de criar marcas, a fotografia faz o mesmo graças ao sentido de evidência, ao registro, à lembrança, num processo que confere dignidade e certa imortalidade aos sujeitos abordados.

Tendo estabelecido que o ponto central do projeto seria a abordagem de trechos do diário como fotografias, a curadora concentra-se, a princípio, nos livros disponíveis na biblioteca da MEP e, dentre estes, privilegia a questão da fotografia de rua desenvolvida na França num período que vai de Eugène Atget a Sabine Weiss. Depois de entrar em contato com Ernaux, percebe os limites do projeto e se dá conta de que ela buscava “uma ética”, isto é, um modo de olhar e de ver.

A partir das observações da escritora, resolve dissociar o projeto de um lugar geográfico definido para aderir ao “sentimento de distância, de estranheza e de separação” que caracterizava o diário. Nos livros da biblioteca da MEP, Stoppard descobre séries fotográficas de Daido Moryiama, Mohamed Bourouissa, Lou Stoumen, Harvey Benge, Yosuke Yagima, Derk Zijlher e Felipe Abreu, que pareciam aclarar o texto de Ernaux e que, reciprocamente, pareciam poder ser iluminados por ele.

Se o objetivo do projeto não era o de ilustrar os textos de Ernaux com imagens, no entanto, há momentos de “coincidência visual” em função de alguns temas comuns como estações, supermercados, clientes. Para alcançar seu propósito, Stoppard concentra-se na busca “de uma intenção compartilhada, de um espírito similar ou de um dinamismo”. A sinergia procurada dizia respeito não apenas aos temas, mas igualmente a uma ética: “a inacessibilidade” descrita por Annie Ernaux. Ou seja, o “sentimento de uma suspensão de juízo moral, de uma aceitação simultânea de como as coisas são e uma curiosidade em relação a elas. Uma atenção dirigida à realidade e um desejo de dizer: eis o que era, eis o que é”.

Finalmente, a curadora toma a decisão de utilizar a coleção da MEP como base do projeto, estabelecendo como limites temporais os anos de 1940 e 2000 e selecionando trabalhos realizados na França, na Inglaterra, no Japão e nos Estados Unidos, dentre outros. Em alguns conjuntos de imagens, ela descobre uma sinergia profunda com a escrita de Annie Ernaux. É o caso da série “Acidentes” (s.d.), de Henry Wessel, que partilharia com a autora o questionamento dos limites e das exigências de uma narrativa e o interesse pelos fragmentos aparentemente aleatórios da vida. É o caso também de Bernard Pierre Wolff, que teria em comum com Annie Ernaux o interesse por personagens negligenciados ou ignorados pela sociedade.

Com base em tais pressupostos, Stoppard elabora o projeto da mostra Exteriores: Annie Ernaux e a fotografia, guiada pela ideia de analisar seu trabalho “além do contexto da literatura” e de colocá-lo no universo da fotografia, no qual questões de “proximidade, realidade, fisicalidade, evidência […] já são centrais”. No desenho final, a curadora mantém 1940 como data inicial, mas avança até 2021, privilegiando imagens realizadas nos Estados Unidos, no Japão, na Inglaterra e na Itália. Enquanto alguns dos trabalhos selecionados lidam com “um amplo senso de distância ou com uma identidade fraturada”, outros abordam o dia a dia: rituais da vida, linguagem publicitária, comércio etc.

Lembrando o que Simon Baker vira nas imagens de Moriyama – “um compromisso resoluto em relação ao cotidiano”, a captação do mundo “como ele é” –, Stoppard afirma sua relação com esse tipo de pesquisa, sublinhando seu interesse por fotografias que dão peso às coisas, as quais, de outro modo, poderiam ser ignoradas ou esquecidas. Annie Ernaux age do mesmo modo quando afirma querer pôr fim ao apagamento das coisas em virtude da passagem do tempo. Não se trata de um sentimento nostálgico, mas de “uma atenção à vida, à preciosidade e precariedade do momento”.

No ensaio produzido para a mostra, a curadora estabelece elos entre o texto de Ernaux e algumas das imagens selecionadas. O distanciamento localizado no diário ecoa nas tomadas de cidades europeias realizadas por Jean-Christophe Béchet. A violência ocultada pela superfície da vida urbana tem um exemplo paradigmático no peixeiro brandindo uma faca, flagrado por Richard Kalvar. A natureza casual dos encontros com desconhecidos é representada pela fotografia de quatro pessoas nos jardins de Luxemburgo, de autoria de Marie-Paule Nègre. As performances de classe e de status podem ser observadas nas imagens de Janine Niepce e de Wolff. Os momentos de estranheza podem ser enfeixados na já citada série “Acidentes”. A onipresença dos meios de comunicação de massa é resumida numa imagem televisiva da Guerra do Golfo captada por Barbara Alper.

Em alguns momentos as assonâncias são derivadas de coincidências biográficas ou de visões semelhantes sobre o ato criador. Issei Suda, que registrou em Vida nova (2002) sua relação amorosa com uma mulher sem nome, é associado com a narrativa ernaultiana de Paixão simples (1991)[4]. Mas sua presença na mostra é determinada pela semelhança entre a ideia de que nos lugares cotidianos pode acontecer qualquer tipo de história, pode nascer “a grande literatura” (série “Fushikaden”) e o que Annie Ernaux escreveu em O acontecimento (2000)[5]: toda experiência merece ser narrada. Essa mesma ideia explica a escolha de imagens de Garry Winogrand, para quem qualquer coisa é digna de ser fotografada.

Uma das imagens apresentadas na mostra e reproduzida no catálogo – Habitação social em Vitry. Mãe e filho (1965), de Niepce – suscita em Ernaux uma reflexão sobre a maternidade. A jovem mulher olhando pela janela dá-lhe a impressão de uma vida encerrada entre quatro paredes. O polegar que o menino coloca na boca da mãe é interpretado por ela como uma maneira de impedir a fala. Essa espécie de dissociação entre mãe e filho leva-a a afirmar: “Ela, ela olha para longe. Lá dentro há uma extrema violência, uma extrema crueldade, e, ao mesmo tempo, uma grande doçura. Revi a mim mesma”.

Ao reportar um comentário da escritora sobre a mesma imagem, Stoppard acentua a separação entre as duas figuras: o menino olha para a mãe, mas ela olha para o mundo. Isso a leva a concluir: “Para mim, seu comentário ilustra à perfeição o que eu tento fazer com essa exposição: estabelecer paralelos entre diferentes maneiras de observar e encontrar a realidade”.

Janine Niepce, Habitação social em Vitry. Mãe e filho, 1965.

A bem da verdade, a fotografia de Janine Niepce funciona como uma tela sobre a qual Ernaux projeta o próprio desassossego com a função materna, da qual oferecera um retrato sem retoques em La femme gelée (1981). Habituada a uma vida de estudos e não preparada para os afazeres domésticos, a protagonista desse romance autobiográfico assiste ao desmoronamento do ideal de um casamento paritário ao ver-se obrigada a assumir a função tradicional de dona de casa. A situação torna-se mais aflitiva com o nascimento do primeiro filho, que a confina cada vez mais num papel que ela não esperava ter que desempenhar, provocando uma profunda sensação de encarceramento.

O romance termina com o anúncio da segunda gravidez, que leva a narradora a projetar imagens do que a espera: “As alegrias da primeira idade, os passeios com o carrinho de um lado e Bicou do outro. Adeus aos estágios pedagógicos, ao sindicato, aos cumes nevados que, mais tarde, dão a ele uma cor de playboy durante o inverno. Domingos intermináveis com duas crianças para cuidar, em lugar de uma. […] Inútil dizer, eu bem sabia que, dentro de nove meses, estarei sozinha às voltas com o leite em pó e as esterilizações, acabaram-se as diversões de ontem, quando ele brincava de papai-mamadeira, juventude, agora não há mais desvio de papel, como ele poderia, ele trabalha o dia todo etc. […] Gozar, durante o maior tempo possível, dos últimos momentos apenas com uma criança. Toda a minha história de mulher é a de uma escada que se desce bufando”.

Em virtude da variedade de imagens, Stoppard começa a agrupá-las em temas: espaço público como um palco onde as pessoas se exibem e julgam; saída do interior para o exterior; deslocamentos e afazeres; compras e diversos momentos de lazer. A par disso, pensa na representação de um dia numa cidade: “o anonimato das pessoas no trem, o senso de possibilidade nas estações, o assalto visual das lojas, dos anúncios e das mercadorias, o irresistível apelo visual de tudo isso – particularmente a multidão, preenchida com a vulgaridade e a beleza dos outros e cheia de sensações que desaparecem quase instantaneamente, assim que você for embora”.

A seleção de quarenta e duas cenas do diário e de cento e cinquenta imagens de vinte e nove fotógrafos é, por fim, organizada em cinco eixos: “Interior/Exterior”, “Confrontos”, “Travessias”, “Lugares de encontro” e “Socializar”.

A associação entre os textos de Annie Ernaux e as imagens fotográficas tem como resultado uma intensificação da escrita, que adquire “uma clareza suplementar e uma imobilidade propriamente fotográfica” ao ser lida em painéis pendurados na parede, de acordo com Anna-Louise Milne. A autora acredita que essa conjunção acrescenta um espaço “à rotina dos deslocamentos cotidianos, aos corredores subterrâneos imutáveis com seus pedintes habituais, ao mesmo estacionamento diante do mesmo supermercado, aos esquemas de deslocamento que narram nossa maneira de viver e de trabalhar, que conferem ao diário de Ernaux sua corrosividade particular”.

Numa entrevista concedida a Siegfried Forster, Stoppard explica a razão que a levou a selecionar as imagens de Claude Dityvon[6] e a associá-las à escrita “DEMÊNCIA” encontrada por Ernaux no muro do estacionamento coberto do RER. Essas fotografias trazem “uma espécie de tranquilidade”; são, de algum modo, “planas e o termo ‘plano’[7] é frequentemente usado por Annie para descrever sua escrita. Não quero realmente que as imagens tenham o ar de serem ilustrativas. Trata-se, antes, de um ethos, de um modo de ver.

Em seu texto, Annie Ernaux faz referência a uma mulher numa maca levada por dois bombeiros, e a imagem de Dityvon intitula-se Depois do incêndio com bombeiros no segundo plano. Isso mostra até que ponto esses momentos de drama são ‘banais’ e ‘normais’ na vida de todos os dias, as brigas, os momentos de violência… Annie tem uma maneira similar de escrever sobre coisas que poderiam ser dramáticas, mas sem sensacionalismo. Há sempre essa espécie de clareza e de calma”.

Claude Dityvon, Depois do incêndio, Les Olympiades, Paris, 13º, 1979.

Mais do que numa fotografia, o trecho comentado por Stoppard faz pensar numa sequência cinematográfica. Annie Ernaux, com efeito, descreve uma cena bastante animada que se passa num fim de tarde frio: uma mulher numa maca carregada por dois bombeiros atravessa a praça “como uma rainha no meio de pessoas que iam fazer compras no Franprix”; crianças brincavam perto da viatura dos bombeiros no estacionamento; uma voz vinda de um imóvel gritava um nome; o rapaz encarregado de recolher os carrinhos do supermercado, “de olhar terrível”, estava apoiado contra o muro da passagem que levava do estacionamento à praça. Vestia um blazer azul e a mesma calça cinza que caía sobre sapatos grandes.

O que serve de elo entre os trechos do diário e as imagens selecionadas é o interesse de Ernaux pela sociedade contemporânea e, em particular, pelo ambiente urbano e suas peculiaridades (violência social, estereótipos de classe, desigualdades), tendo como cenário trens, estações, corredores, escadas rolantes, supermercados, calçadas. De maneira significativa, o percurso visual do catálogo, iniciado com as três imagens de Dityvon, prossegue com cenas de rua (Dolorès Marat, Daido Moriyama, Garry Winogrand, Luigi Ghirri, Mika Ninagawa, Jean-Philippe Charbonnier, Bernard Pierre Wolff, Yingguang Guo), com tomadas de escadas rolantes (Marat, Ursula Schulz-Dornburg), de centros comerciais (Kheng-Li Wee), de meios de transporte (Hiro, Gianni Berengo Gardin, Johan van der Keuken), de momentos de lazer (Marie-Paule Nègre, Tony Ray-Jones, Issei Suda), de flagrantes nem sempre fortuitos (Henry Wessel, Mohamed Bourouissa, Moriyama, Jean-Christophe Béchet, Harry Callahan, Ninagawa, Wolff), de instantes de violência (Marguerite Bornhauser), de interiores de cafés/restaurantes (William Klein, Winogrand, Janine Niepce), com imagens televisivas (Klein, Barbara Alper), com visões de mercados e supermercados (Clarisse Hahn, Charbonnier, Richard Kalvar) e de lojas (Niepce, van der Keuken), com alguns retratos (Martine Franck, Suda, Niepce, Ibei Kimura), terminando com uma imagem sombria dos arredores da Gare de l’Est, feita por van der Keuken em 1958.

O catálogo não está estruturado nos moldes da exposição. É organizado como um fluxo contínuo de textos e imagens, cabendo ao leitor a tarefa de estabelecer conexões e/ou associações entre o escrito e o visual. Na mostra, a grande fotografia de Hiro, Estação Shinjuku, Tóquio, Japão (1962), era associada, na parede em frente, com uma declaração do historiador Jacques Le Goff – “O metrô me desorienta”–, seguida de um comentário de Ernaux: “As pessoas que o tomam todo dia se sentiriam desorientadas indo ao Collège de France? Não é possível sabê-lo”.

A imagem impressionante de um trem superlotado, com os passageiros espremidos contra as portas, dando a sensação de um aquário singular, acompanha no catálogo a descrição de um rapaz de vinte/vinte e cinco anos concentrado em tratar as unhas da mão com um alicate. Os passageiros fingem não ver o rapaz “feliz com insolência”, que admira a “beleza produzida” em cada dedo. Ernaux conclui: “Ninguém pode fazer nada contra sua felicidade – como indica o ar das pessoas em volta – mal-educada”.

Hiro, Estação Shinjuku, Tóquio, Japão, 1962.

Na exposição, essa foto repleta de pessoas numa situação desconfortável estabelecia um diálogo dialético com duas imagens de Callahan da série “Arquivos franceses” (1957-1958), ambientadas em Aix-en-Provence e caracterizadas por poderosos contrastes de luz e sombra, das quais emanava um senso de quietude. O confronto entre registros tão diferentes é visto por Anna-Louise Milne como uma estratégia que lança luz sobre a qualidade estranha do diário de Ernaux, ao mesmo tempo próximo e distanciado da vida comum.

No catálogo, essa sensação de um contraste vigoroso perde-se não só pela distância entre as imagens, mas, sobretudo, pelo contexto verbal em que as fotos de Callahan são inseridas: um flagrante de supermercado, no qual a escritora nota a substituição do coletor de carrinhos por um novo modelo que funciona com moedas e a despreocupação de duas caixas que fofocam sobre uma colega, sem preocupar-se com os clientes.

A julgar pela descrição feita por Milne, uma das salas da exposição tinha um aspecto problemático, visto agrupar duas fotografias de Mohamed Bourouissa e uma de Marguerite Bornhauser – O impasse (2007), na qual quatro rapazes são captados num ambiente degradado perto de um automóvel queimado, e A prisão (2008), que dá a ver um homem jovem sentado no chão, algemado e de peito nu, que olha para uma garota vestindo uma camiseta comprida; Sem título (2015), que registra o impacto de uma bala num vidro perto da casa de espetáculos Bataclan – e alguns trechos de Ernaux relativos à violência.

Se as inscrições “Apenas o cu” e “Não há sub-homens”, vistas num muro, poderiam relativizar a questão do preconceito, a referência a um estacionamento subterrâneo, no qual o barulho dos exaustores não permitiria ouvir “os gritos num caso de estupro”, associada às duas imagens de Bourouissa e ao registro de Bornhausen, dá a impressão de uma naturalização da violência, atribuída exclusivamente aos grupos menos favorecidos da sociedade.

Mohamed Bourouissa, O impasse, 2007.

De fato, as fotografias de Bourouissa integram a série “Periférico” (2005-2008), cujo título faz alusão ao rodoanel de Paris que separa o centro dos subúrbios. Feita de cenas posadas, repletas de uma tensão dramática, que têm como fontes de inspiração a pintura de Caravaggio, Théodore Géricault e Eugène Delacroix e a fotografia de Jeff Wall e Philip-Lorca di Corcia, a série pretende subverter as imagens convencionais da periferia por meio de “recomposições conscientemente estruturadas dos clichês dos meios de comunicação de massa”, a fim de inscrever “a história recente do subúrbio” na história da arte ocidental, como aponta Nikola Lorenzin. A imagem de Bornhauser, por sua vez, rememora a noite de 13 de novembro de 2015, quando oito atentados praticados perto do Stade de France (Saint Denis), em cafés ao ar livre e na casa de espetáculos por militantes islâmicos resultaram em cento e trinta mortos.[8]

Milne define essas imagens como “cenas de uma violência totalmente contemporânea”, que atesta o fracasso da mobilidade social, cara à geração de Annie Ernaux, e das formas-fetiches da vida moderna como o automóvel, sem perceber o efeito preconceituoso criado por essas justaposições. No catálogo, esse efeito problemático, do qual Stoppard e Ernaux não se deram conta na mostra, é mitigado pela associação entre a cena do subterrâneo (antecedida pela visão do gato esmagado, “como que inscrito no asfalto”) com quatro imagens da série “Incidentes” (s. d.), de Wessel, e pela assonância criada entre as duas inscrições registradas no diário e O impasse.

O flagrante de Bornhauser adquire um novo significado ao ser confrontado com o registro enxuto de uma frase que chama a atenção da escritora num texto lido por um estudante no RER: “A verdade está ligada à realidade”.

Em diversos momentos, ao percorrer o catálogo, se tem a impressão de que Stoppard nem sempre foi feliz em suas associações e que as imagens selecionadas poderiam ter sido substituídas por outras, sem mudanças substanciais no resultado. Por mais que ela fale em ethos e em estranhamento, é difícil, em alguns momentos, compreender as aproximações propostas, que não funcionam nem por assonância nem por dissonância. Um desafio suplementar aguarda o leitor do catálogo: a relação texto/imagem não segue um padrão determinado, podendo haver três ou mais fotografias antes de excertos do diário, ou vice-versa, criando situações ambíguas ou até mesmo incompreensíveis pela opacidade das escolhas.

Exemplos de assonâncias livres podem ser detectados na cena da avó e do neto no trem, registrada por Ernaux, e numa das fotografias de Marat, Neve em Paris (1997), que representa as silhuetas indistintas de uma mulher e uma criança; na tomada Praça da Revolta (2005), de Ursula Schulz-Dornburg, que capta três mulheres numa escada rolante, e na anotação sobre o livro em que cada página começa com a pergunta “Que horas são?” que leva uma menina no trem a uma crise de choro e a uma reação violenta; na visão do homem que exibia sua genitália num corredor deserto do metrô, que a escritora considera um “gesto insuportável de se ver”, uma “forma pungente da dignidade: expor que ele é um homem”, seguida por algumas imagens femininas expostas numa rua de Pisa e captadas por Béchet (2000).

Dolorès Marat, Neve em Paris, 1997.

Outros exemplos de assonâncias podem ser localizados no encontro entre as frases escritas numa parede da Universidade de Nanterre – “Gozar sem entraves / Sexualidade livre / Amor livre / Estudante, você dorme, você perde a vida / Vamos impor a igualdade econômica”– e a fotografia Blackpool (1968), de Ray-Jones, na qual se veem uma representação gigantesca de um casal dançando e um casal passando na rua; na cena do mendigo pedindo esmola no vagão do RER, que suscita em Annie Ernaux a ideia de que ele não denuncia, mas conforta a sociedade, desempenhando o papel do bufão que coloca “uma distância artística entre a realidade social, miséria, alcoolismo, à qual remete com sua pessoa, e o público-viajante.

Papel que ele desempenha por instinto com um imenso talento”, antecedida por New York City (1984), de Wolff, marcada pelo contraste entre o idoso de bengala e o cartaz “Men working”, e sucedida por outra imagem de Wolff retratando um casal de toxicômanos se beijando na rua 14 (1975).

Existem também exemplos de dissonâncias críticas entre a letra dos textos e o conteúdo das imagens. É o caso de uma anotação ácida e melancólica sobre um homem que dá ao cachorro o comando de voltar para casa, tornando-o culpado, seguida por uma constatação: “A frase milenar para as crianças, as mulheres e os cães”, que se espelha na imagem da moça vestindo uma capa de chuva agarrada, indiferente ao que se passa ao seu redor, captada por Charbonnier em 1977.

É o caso também da cena registrada no empório Hédiard, onde a entrada de uma mulher negra de túnica é seguida com preocupação pela gerente, que se confronta com uma tomada engraçada de Charbonnier num supermercado: um homem olhando para o lado, com um braço na cintura, enquanto com o outro segura um carrinho e uma bolsa feminina, pensando “Para onde ela foi?” (1973). E ainda do flagrante da garota no RER, que desembrulha as compras feitas para admirá-la e tocá-las, suscitando na escritora a imagem da “felicidade de possuir algo de belo”, do “desejo de beleza realizado. Elo com as coisas tão comovente”, precedido pela fotografia de Niepce de uma mulher fazendo as compras de Natal na luxuosa loja de Dior (1957).

Jean-Philippe Charbonnier, Uma capa de chuva colada à pele, Saint-Paul, Paris, 1977.

Uma dissonância não explorada no catálogo é aquela entre o pronunciamento televisivo do presidente da República [François Mitterand] usando o termo “petites gens” [arraia miúda] para designar uma boa parte da população francesa, provocando uma justa indignação em Ernaux, e a fotografia da transmissão da final do concurso de Miss França feita por Klein diretamente de uma tela de TV (2001). A fricção entre a gravidade da fala do presidente, que definira “inferior” toda uma categoria de cidadãos, e a frivolidade do evento captado pelas lentes fotográficas poderia gerar um curto-circuito que produziria um alto grau de estranhamento entre os dois registros.

Outra dissonância, de caráter irônico, poderia ter brotado do contraste entre a fala preconceituosa do presidente e a imagem televisiva captada por Alper durante a Guerra do Golfo que trazia os dizeres “Durante uma crise, a TV pode efetivamente encorajar a estabilidade numa sociedade” (1991). Stoppard também não explorou devidamente no catálogo a imagem de um ready made criado por uma anotação sucinta da escritora: “Um carrinho derrubado na grama, bem longe do centro comercial, como um brinquedo esquecido”. Essa imagem profundamente fotográfica não encontra nenhuma correspondência no conjunto de imagens que integram a publicação, a menos que não se considere como tal a já citada tomada de Alper que tem como epicentro um avião. No entanto, mais três textos se interpõem entre o ready made verbal e o ready made visual, dificultando a possível aproximação.

A leitura do diário de Annie Ernaux demonstra que a curadora deixou escapar alguns trechos dotados de uma visualidade propriamente fotográfica. É o caso de uma anotação de 1986 que remete ao novo realismo francês da década de 1960, particularmente às acumulações de Arman. A escritora descreve um terreno baldio, tomado por todo tipo de detrito – embalagens, garrafas, uma revista, um cano de ferro –, nos quais detecta “signos de presenças acumuladas, de solidões sucessivas”.

O que mais chama sua atenção é a “metamorfose de todos esses objetos, quebrados, amassados, achatados intencionalmente pelas pessoas que os deixaram e pelas intempéries. Adicionando dois desgastes”. Outra anotação dotada da qualidade de um instantâneo foi deixada de lado por Stoppard: a garota de perfil vista no metrô, mascando chiclete “com uma rapidez feroz, sem pausa”, que poderia provocar num homem a fantasia de que ela seria capaz de realizar um gesto violento de natureza sexual. A visão do futuro do hipermercado poderia também ter sido selecionada, pois está repleta de referências a um novo regime visual.

Ao indagar se a informação relativa à origem do 1º de abril difundida pelos alto-falantes teria como objetivo “atenuar a insistência publicitária”, Ernaux imagina o futuro do hipermercado: repleto de telas cinematográficas e animações sobre pintura e literatura e ministrando cursos de informática, que o transformariam num “espaço peep-show”.

A anotação relativa ao apagamento das letras “dé” na estação Chambre des députés, que converteu os deputados em “putas”, poderia ter sido igualmente selecionada por seu aspecto de flagrante e associada a algumas tomadas de Brassaï pertencentes à coleção da Maison Européenne de la Photographie, que não integraram a seleção de Stoppard.

O encontro entre o relato do apagamento e as imagens de cartazes rasgados (1958-1960) – os quais trazem à memória outras obras do novo realismo, como os “palimpsestos” de François Dufrêne, Raymond Haines, Jacques de Villeglé e as décollages de Mimmo Rotella, iniciadas em Roma em 1954 – teria tornado ainda mais agudo o texto de Ernaux, que fala de um “sinal de antiparlamentarismo” que prenuncia o fascismo, mas que, ao mesmo tempo, se pergunta se a pessoa que apagou as letras não queria simplesmente se divertir e divertir os outros: “É possível dissociar o sentido presente e individual de um ato de seu sentido futuro, possível, de suas consequências?”.

A descrição da loja de lingerie e das sensações suscitadas (beleza, fragilidade, leveza) não chamou a atenção da curadora, apesar de sua carga visual implícita. Ernaux não se limita a exteriorizar o significado do contato com tamanha beleza, tão legítimo quanto o desejo de “respirar ar puro”, mas vai além, dando livre vazão ao imaginário erótico que lhe faz vislumbrar homens vestindo lingerie de seda “para nos dar o prazer da doçura e da fragilidade descobertas e tocadas em seus corpos”.

Este não é o único momento em que a escritora se entrega ao prazer do consumo. Isso já tinha sido feito em anotações anteriores, destituídas, contudo, da sutil carga erótica do registro de 1991. A primeira centrava-se no desejo de possuir alguma peça de roupa diferente das que já tinha, mas não necessária; a segunda, na sensação de estar no meio de “um ataque de cores, de formas” e de ser “rasgada por essas coisas vivas, incontáveis, que podemos pôr sobre nós”. Tal como no primeiro caso, a saída da loja de departamentos e o contato com o chão “úmido e preto” do bulevar Haussmann a levam de volta à razão: não precisava nem de pulôver, nem de vestidos, nem de nada.

Se Stoppard estava tão atenta aos efeitos de consumo, como escreve no ensaio do catálogo, por que deixou de fora essas anotações nas quais Ernaux se confunde com a multidão de anônimos que povoam as páginas do diário, por reconhecer-se como portadora da mesma pulsão a adquirir coisas belas e inúteis no fim das contas? Sua imagem não sairia arranhada, mas, ao contrário, ganharia uma dimensão mais próxima dos desejos e ambições de um ser humano como outro qualquer. Ela própria tinha promovido um mergulho na vida comum, quando escreve num excerto selecionado para a mostra que era “atravessada pelas pessoas, por sua existência como uma puta”.

Essa ponderação de 1988 tinha sido precedida, dois anos antes, por uma explanação acerca dos motivos que a induziam a descrever cenas vistas no dia a dia: “O que busco, com tamanho afinco, na realidade? O sentido? Amiúde, mas nem sempre, por hábito intelectual (adquirido) de não se entregar apenas à sensação […]. Ou então, anotar os gestos, as atitudes, as palavras das pessoas que encontro me dá a ilusão de estar próxima delas. Não falo com elas, apenas olho para elas e escuto o que dizem. Mas a emoção que deixam em mim é uma coisa real. É possível que procure algo sobre mim através delas, suas maneiras de segurar-se, suas conversas (Frequentemente, ‘por que não sou aquela mulher?’ sentada diante de mim no metrô etc.)”.

Esse movimento solidário, esse reconhecer-se no outro se dissipa quando Ernaux se depara com a Cidade Nova, que continua desconhecida mesmo depois de doze anos. Não pode fazer muito diante de seu aspecto inóspito, a não ser anotar os lugares em que esteve para fazer compras, as passagens pela rodovia, a cor do céu… “Nenhuma descrição” – conclui – “e nenhum relato também. Apenas instantes, encontros. Um etnotexto”. Stoppard foi, sem dúvida, capturada por essa qualidade etnográfica da escrita de Annie Ernaux, que esquadrinha o ambiente circundante para traçar um retrato da sociedade contemporânea e para falar de si através dos outros.

Se é verdade, como alguns dizem, que toda fotografia é um autorretrato, Ernaux cria um autorretrato multifacetado em seu diário singular, movida pela crença de que o olhar lançado sobre o exterior não pode deixar de fazer vir à tona sentimentos arraigados e, por vezes, adormecidos. Essa sintonia fina entre exterior e interior pode ser percebida no momento em que a escritora reconhece fazer parte da “cultura popular” ao ouvir palavras “transmitidas de geração em geração, ausentes dos jornais e dos livros, ignoradas pela escola”.

E também na reflexão sobre a relação dicotômica que pode ser estabelecida com o lugar de origem, mais uma vez evocada a partir de palavras pouco usadas na contemporaneidade. É possível pensar que elas desapareceram junto com a miséria a que estavam vinculadas. Ou imaginar a própria volta a uma cidade deixada para trás há muito tempo e encontrar as pessoas idênticas ao que eram no passado. Nos dois casos, trata-se de um desconhecimento da realidade e de uma concepção do eu como medida única: “no primeiro, identificação de todos os outros consigo mesmo, no segundo, desejo de reapropriar-se do eu de outrora em seres detidos para sempre em sua última imagem, no momento em que deixamos a cidade”.

Como atesta o diário, Annie Ernaux escapou dessa armadilha graças a uma visão atenta e empática da realidade ao seu redor, da qual captou tiques, gestos fugazes, interações, aspirações, sem erigir-se em juiz ou consciência moral. As fotografias selecionadas por Stoppard seguem esse mesmo padrão: apresentam visões múltiplas de uma humanidade que aparenta ter os mesmos hábitos e os mesmos comportamentos, pouco importando o lugar de origem, já que parece fazer parte de um inconsciente coletivo subjacentes às mais diversas configurações sociais.

A curadora conseguiu captar esse substrato comum, mas, pelo menos no catálogo, não soube estabelecer as devidas conexões, deixando muitas imagens à deriva e suscitando uma interrogação geral: por que não inseriu em sua seleção trabalhos de Robert Frank, Henri Cartier-Bresson, Ralph Gibson, Larry Clark, Martin Parr, dentre outros, já que elas integram a coleção da Maison Européenne de la Photographie?

De todo modo, apesar das ressalvas, a operação levada a cabo por Stoppard conseguiu sublinhar o caráter fotográfico da escrita ernaultiana, baseada na crença de que o ato de ver não é um mero deslizar pela superfície das coisas. É, ao contrário, um modo de refletir, de interpretar, de tomar consciência do que se passa ao redor e, por que não, de surpreender-se com a variedade dos fenômenos oferecidos pela aparente banalidade do cotidiano.

Tal como os fotógrafos atentos ao espetáculo do cotidiano, a escritora demonstra a capacidade de lidar com aspectos da civilização de massa de maneira distanciada, mas nem por isso menos crítica, criando instantâneos de situações gerais ou disparando flashes sobre signos que poderiam passar despercebidos se não fossem tornados visíveis pelo interesse que despertaram nela.

*Annateresa Fabris é professora aposentada do Departamento de Artes Plásticas da ECA-USP. É autora, entre outros livros, de Realidade e ficção na fotografia latino-americana (Editora da UFRGS).

Referência


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Notas

[1]Por meio da história de vida do pai, a autora debruça-se sobre relações familiares e de classe, numa narrativa despojada na qual a memória pessoal se mistura com a observação sociológica.

[2] Ernaux refere-se ao filme de ficção científica Alphaville, dirigido por Jean-Luc Godard, que estreia em 1965. Numa época posterior à década de 1960, o detetive Lemmy Caution é enviado para Alphaville, uma cidade distópica e totalitária, distante anos-luz da Terra. A cidade é dominada por um supercomputador e tem como característica principal o banimento de qualquer sentimento. Caution derrota o supercomputador propondo-lhe um enigma (que envolve provavelmente a palavra amor) e deixa Alphaville na companhia de Natacha von Braun, que conquistara falando-lhe do “mundo exterior” e dos sentimentos e recitando o poema de Paul Éluard, Capitale de la douleur.

[3] Sobre o assunto, ver: Fabris & Fabris, 2006.

[4] Com precisão cirúrgica, a autora narra a paixão avassaladora por um homem casado, com o qual se relacionou depois do divórcio. No livro autobiográfico, Ernaux mostra como viveu a experiência do limite, substituindo a razão pelo “pensamento mágico” e deixando de lado o tempo cronológico em prol da presença e da ausência do amante.

[5] De maneira enxuta e distanciada, Ernaux rememora o périplo empreendido em 1963 para realizar um aborto clandestino, refletindo sobre a violência exercida pela sociedade sobre o corpo feminino.

[6] No catálogo estão reproduzidas três fotografias de Dityvon associadas ao trecho inicial do diário de Ernaux: Depois do incêndio, Les Olympiades, Paris 13o (1979), Rue du Départ, centro comercial, torre Montparnasse (1979) e 18 horas, ponte de Bercy, Paris (1979). A última representa duas mulheres num ponto de ônibus.

[7] Ernaux define a escrita plana como uma “escrita de constatação, diligentemente desprovida de juízo de valor, uma escrita o mais próximo possível da realidade, privada de afetos”. No Brasil, como demonstra a tradução de O lugar, foi usado o termo “neutra”, mas ele não responde de todo aos objetivos da autora.

[8] É interessante notar que o motivo do impacto das balas nos vidros foi também registrado por outros profissionais como Steven Wassenaar e Hans Lucas, da Agência France Press, que captaram esse efeito no café Le Carillon.


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