Anos loucos – histórias da psicanálise às margens dos anos 1920

Patrick Caulfield, a fumaça de freud, 1997
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Por VERA IACONELLI*

Apresentação do livro recém-lançado de Luiz Eduardo Prado de Oliveira

Ao ler este tão inspirado livro, veio-me à mente outra figura contemporânea de Freud dentre os inúmeros artistas, escritores, políticos e cientistas que nele aparecem, quando o autor nos convida a mergulhar nessa época em que a psicanálise já ia para seus 20 anos. Trata-se de Marie Skłodowska Curie, pioneira nas pesquisas sobre a radioatividade, conhecida pela proeza de ser a primeira mulher a ganhar o Prêmio Nobel, tornando-se também a primeira pessoa a recebê-lo duas vezes e em duas áreas distintas: física e química.

Menos para comparar genialidades do que para ilustrar riscos a que estão expostos pioneiros em campos de pesquisa, cuja matéria-prima seja tão potente quanto incontrolável. É sabido que a cientista, assim como o marido e outros envolvidos nessa pesquisa, viria a morrer em decorrência do contato prolongado e desprotegido com a radioatividade.

Freud e demais envolvidos na obsessiva pesquisa do inconsciente também vão se descobrir, tarde demais, expostos a rico material, cujo poder de cura não esconde o risco de adoecimento. Isso que tem a pretensão de curar, e o faz, quando mal manejado, revela-se tóxico.

Cura do câncer, por um lado, bomba atômica, por outro, veremos que a arrogância diante do desconhecido nunca foi boa conselheira. São Anos Loucos, Années Folles ou Roaring Twenties, dirá Luiz Eduardo Prado de Oliveira, cuja fina ironia e crítica ácida não escondem a paixão pela psicanálise e o respeito por sua história. Desmistificando seus criadores e revelando sua humanidade falha e equivocada, aproxima-nos do material de seu objeto: a descoberta do inconsciente-radioatividade sem o devido cuidado e conhecimento ao manejá-lo.

Profundo conhecedor da história do movimento que atravessou a cultura ocidental a partir do eixo eurocêntrico, o autor usará a linha do famoso carretel do jogo do fort-da para falar da grave dificuldade de Freud de se separar das adoradas filhas e, mais ainda, do efeito da pesquisa psicanalítica no seio desprotegido das relações familiares. Mais ainda, o efeito das paixões – e mortes – familiares no âmago da teoria.

Luiz Eduardo Prado de Oliveira sugere uma forma própria de trabalhar o material – tanto o inédito quanto o já anteriormente publicado –, entrelaçando os fatos cronológicos íntimos com a formulação das teorias para nos propor questões instigantes. A reflexão que essa metodologia suscita tem efeitos sobre o leitor, que não sairá com a mesma impressão do criador da psicanálise e de alguns de seus seguidores. Aula de iconoclastia que a psicanálise preza defender, por ser contra a manutenção de mitos, principalmente entre seus fundadores. Humanizar Freud para melhor fazer uso de suas descobertas.

Neste volume, temos acesso, através de correspondência inédita, e também de material já conhecido, a uma parte significativa da vida privada da família Freud. Aquela que melhor revela Sigmund como um pai notoriamente invasivo. Cioso de suas três filhas – além dos três filhos homens –, dedicado e amoroso, Freud amargou a perda precoce daquela que seria a preferida, Sophie, em decorrência de uma pneumonia fulminante.

O neto, filho de Sophie, por sua vez, não é ninguém menos do que o menino que levou a fama pela brincadeira do carretel. Este livro apresenta pela primeira vez o Diário de Sophie com seu filhinho Ernst, no qual aparece a célebre cena do fort-da. A criança, Wolfgang Ernst Halberstadt – sobrenome do pai –, cresceu e veio a se chamar W. Ernest Freud pela necessidade de sustentar e manter a linhagem dos Freud.

Por fim, apenas Ernest Freud, neto d’O Freud. Com a morte prematura e traumática da mãe, Ernest vai conhecer uma série de desventuras, em parte pelas circunstâncias da época, em parte pelas dificuldades próprias dos Freud – cuja história transgeracional de humilhação e perdas deixa profundas marcas –, em parte por seus temerários experimentos psicanalíticos.

E que época! O período entre as duas Grandes Guerras Mundiais, em cujo epicentro habitavam a epidemia de gripe de 1918 e a Grande Depressão econômica. Nada mau como contexto para a produção de Além do princípio de prazer. Mas, se a época era propícia, a grande sacada do autor é de nos revelar o quanto o mundo privado foi tanto ou mais responsável pelas formulações que lemos em “APP”, para os íntimos.

Luiz Eduardo Prado de Oliveira está entre os íntimos desta e de outras obras monumentais de Freud, como podemos ver em sua colaboração na primorosa publicação das Obras Incompletas de Sigmund Freud, realizada pela editora Autêntica. Projeto que pode ser considerado motivo de orgulho para o mercado editorial da psicanálise brasileira, principalmente em tempos de pandemia e renovadas ameaças à democracia em nosso país.

O livro apresenta ainda a obsessiva análise de Anna Freud, levada a cabo pelo próprio pai, um material riquíssimo para entender as origens das formulações da pulsão de morte, intimamente ligada à homossexualidade da filha, bastante induzida pelo pai, que afastava da filha todos seus pretendentes. No mesmo ano em que publica Além do princípio de prazer, Freud publica também “A psicogênese de um caso de homossexualismo numa mulher”; e Luiz Eduardo Prado de Oliveira propõe entre eles um paralelismo inquietante . Para o Além, as sabidas contribuições de Sándor Ferenczi, Victor Tausk e Lou Andreas-Salomé não serão negligenciadas aqui, tampouco voltaremos a ler Freud da mesma forma ao conhecer o teor da correspondência da família.

O desfile das mulheres de Freud não para em Sophie, como sabemos. Sem nem tocar no nome das pacientes desbravadoras da psicanálise instantaneamente associadas a Freud, veremos uma constelação feminina de tirar o fôlego do leitor: Anna, não a “O”, mas a filha paciente; Martha, a esposa; Minna, a cunhada amiga íntima; Mathilde, a filha mais velha; Andreas-Salomé, a discípula disputada; Dorothy Tiffany Burlingham, paciente e nora, vivendo com a filha…

O continente negro, que Sigmund tenta desbravar, conhecer e controlar, irradia, deixando o pretenso conquistador chamuscado.

A nós caberá assumir que não há escusas para o mau uso desse poderoso legado que herdamos do gênio de Sigmund Freud. O sofrimento dos pioneiros nos serve de alerta e reflexão e nos coloca, mais do que nunca, diante da ética da psicanálise.

*Vera Iaconelli, psicanalista, é doutora em psicologia pela USP. Autora, entre outros livros, de Mal-estar na maternidade: do infanticídio à função materna (Zagodoni).

Referência


Luiz Eduardo Prado de Oliveira. Anos loucos: histórias da psicanálise às margens dos anos 1920. Belo Horizonte, Autêntica, 2022, 230 págs (https://amzn.to/3OWE74w).


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