Anticiência, desigualdade e liberalismo

Imagem: Pieter Bruegel
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por ADRIANO LUIZ DUARTE

A descrença nos valores democráticos se expressa no descrédito da ciência

A descrença nos valores democráticos se expressa no descrédito da Ciência. Proliferam grupos organizados, sites, blogs e vídeos em defesa do argumento de que a terra é plana. Cresce o movimento antivacina, com a divulgação de que o vírus atenuado pode levar ao autismo. A Teoria da Evolução passa a ser contestada e o design inteligente, a nova roupagem do criacionismo, explicaria a origem das espécies. O aquecimento global passa a ser encarado como mera propaganda de críticos que ignoram os benefícios do desenvolvimento industrial, portanto uma simples teoria da conspiração.

Essa visão distorcida se desdobra também na negação dos germes e, mais recentemente, na negação da existência da covid-19 e, consequentemente, nas suas formas constatadas de disseminação. No entanto, o ataque à Ciência não é um fenômeno contemporâneo, e tampouco parece ter uma unidade ou um objetivo claro. O mais surpreendente é que esses ataques não têm sido simples assaltos à razão, aos centros de pesquisa e ensino — muitas vezes eles são orquestrados em nome da “razão e da ciência”, provindos de centros de pesquisa e ensino (EPSTEIN, 1998).

Mas como a ciência não é uma entidade unitária, pensar esses movimentos como uma simples oposição entre Ciência versus Anticiência é simplificar o problema. Isso nos coloca uma questão importante: qual a especificidade que, hoje, conecta esses elementos díspares e, aparentemente, desconectados? É possível sugerir que os elementos anticiência se encontram ao colocar em dúvida a positividade de alguns dos valores comumente atribuídos às ciências – menos os valores ontológicos, epistemológicos e mais os políticos ou sociais. A ciência parece viver uma crise de confiança; contudo, não é tarefa simples compreender se essa crise advém de uma sociedade polarizada, ou a ela dá origem.

Em julho de 2019, o Instituo Gallup realizou uma pesquisa acerca do grau de confiança na Ciência com mais de 140 mil pessoas em 144 países. A pesquisa, encomendada pela organização britânica Wellcome Trust, mostrou que, no Brasil, 73% dos entrevistados desconfiavam da ciência e 23% consideravam que a produção científica contribui pouco para o desenvolvimento social e econômico do país. Mas o Brasil não foi um caso isolado, em países como França e Japão, os índices de desconfiança chegaram a 77% dos entrevistados (ANDRADE, 2019). Sobre a relação entre ciência e religião, o relatório Wellcome Global Monitor mostrou que 64% das pessoas, diante de um conflito que os oponha, disseram confiar mais na religião. Importante destacar que quanto maior o índice de desigualdade social, maior é a desconfiança em relação à ciência. Mais que isso, essa postura parece diretamente relacionada à desconfiança em relação às instituições sociais em geral. A descrença na ciência parece expressar uma suspeição generalizada em todas as estruturas de poder das sociedades chamadas democráticas – governos, justiça, imprensa, representação política etc. – e parece responder a uma questão empírica incontornável: de fato, os benefícios da ciência e da tecnologia não têm sido capazes de melhorar a vida da maioria das pessoas, e isso fica ainda mais manifesto quanto maior é o grau de desigualdade social experimentado por elas.

Já se sugeriu que há também uma corrente mais profunda e permanente de anti-intelectualismo na cultura ocidental, especialmente na tradição estadunidense, impulsionado, sobretudo, pela convergência entre o pensamento religioso, o discurso político conservador e a influência dos empresários sobre a sociedade e o Estado, com seu temor de contestação social (HOFSTADTER, 1963). Segundo Hofstadter, o anti-intelectualismo está associado a uma supervalorização do conhecimento prático em detrimento do especulativo. A Guerra Fria teria acentuado ainda mais esses traços e destacado o medo de que conteúdos humanistas pudessem inspirar uma postura politicamente crítica e desafiadora. Desde o século XIX, a ciência tem sido percebida, crescentemente, como motor do progresso e veículo central para a promoção da qualidade de vida. Mesmo quando esse princípio enfrentou contestações, sobretudo a partir da esquerda socialista, isso ocorreu dentro dos marcos da própria ciência, mais para destacar sua incapacidade de atingir a todos do que para desqualificá-la como vetor do progresso. Entretanto, esse quadro começou a mudar em algum momento na década de 1970. A partir de então, ganha lugar no senso comum a crença de que a ciência se movia por interesses privados a serviço da acumulação de capital e não servindo, portanto, ao interesse da maioria das pessoas.

No Brasil, isso ficou claro no estudo Percepção pública da Ciência & Tecnologia no Brasil 2019, feito pelo Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE), por demanda do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) — levantamento que é feito, periodicamente, desde 2006. Essa pesquisa

(…) entrevistou 2.200 pessoas de todas as regiões do país e constatou uma diminuição do percentual de indivíduos que consideram que ciência e tecnologia só trazem benefícios para a humanidade – de 54%, em 2015, para 31%, em 2019. Também verificou um crescimento dos que julgam que ciência e tecnologia produzem tanto benefícios quanto malefícios – de 12% em 2015, para 19%, em 2019. Registrou ainda uma redução na proporção dos que consideram os cientistas pessoas que fazem coisas úteis para a sociedade. Em 2010, esse número era de 55,5% dos entrevistados, em 2015 caiu para 52% e, em 2019, para 41%. (ANDRADE, 2019, s.p.)

Embora pareça evidente a conexão entre a desconfiança da ciência e a conjuntura política em que vivemos, nem sempre é fácil mostrá-la com clareza. Um estudo publicado em 2017 pelo Pew Researh Center[i]sobre os EUA, por exemplo, mostrou que os eleitores do Partido Republicano são os mais desconfiados em relação a temas como mudança climática, agricultura geneticamente modificada, eficiência de vacinas etc. Tal informação pode nos levar a pensar que haja aqui uma resistência específica a temas e a evidências científicas quando esses possam implicar um aumento da regulamentação estatal. Entre novembro de 2017 e fevereiro de 2018, a União Europeia promoveu um inquérito entre cidadãos e organizações jornalísticas, com o objetivo de avaliar a eficácia da atuação dos agentes de mercado acerca das fake news. O questionário recebeu 2.986 respostas, sendo 2.784 de indivíduos e 202 de organizações jornalísticas (sites, jornais, blogs informativos etc.), alcançando, sobretudo, países como Bélgica, França, Itália, Espanha e países do Reino Unido. 84% acreditavam que as fake news se difundiam para orientar o debate político; 65%, que elas eram produzidas com o objetivo de gerar receitas para empresas e indivíduos; 88% concordaram que a desinformação nas redes sociais se disseminava recorrendo às emoções da população; e, por fim, 50% apontaram que a simples verificação posterior à disseminação de uma fake news não seria razoável, pelo fato de que a correção posterior não alcançaria o mesmo público da notícia original. Uma das sugestões da pesquisa, de acordo com, foi a substituição da expressão fake news – porque ela, de fato, não daria conta do sentido político e mercadológico do fenômeno – pela palavra mais precisa: desinformação. (Cazarré 2018)

Parece evidente não se tratar de “mero” desafio de fazer com a que ciência estabeleça um melhor diálogo com a sociedade. Não se trata simplesmente de reconstruir uma plataforma de legitimação social ou de absoluta transparência para os procedimentos científicos, nem, tampouco, de tornar a ciência mais aberta aos debates sociais ou de trazer o conhecimento de suas pesquisas para perto do cidadão comum; muito menos de tentar convencer os que negam seus procedimentos ou conclusões. Essas medidas de aumento de transparência não seriam capazes de combater o conluio entre Ciência, Estado e Empresas pela simples razão que o movimento anticiência está a serviço de um determinado modo de fazer política. Em resumo, a defesa de certas posições políticas se embasaria na escolha cuidadosa de alguns princípios anticiência. É preciso reconhecer que a postura anticiência não é um simples irracionalismo, mas uma racionalidade politicamente instrumental e seletiva, a serviço do mercado.

“O fenômeno é nítido nas discussões sobre as mudanças climáticas. O consenso entre cientistas sobre o aumento da temperatura global nos últimos 130 anos e o peso das atividades humanas nesse processo gerou uma participação mais efetiva dos governos na regulação da emissão de gases estufa. “Várias organizações financiadas pela indústria de combustíveis fósseis tentaram minar a compreensão do público sobre o consenso científico que havia sido alcançado sobre esse assunto, promovendo pesquisadores ‘céticos’, disseminando dúvidas e controvérsias (…) Esse movimento foi tão intenso que, (…), conseguiu fazer com que a mídia se sentisse compelida a relatar as opiniões de grupos contrários” (ANDRADE, 2019, s.p.).

Nos movimentos anticiência, não há a simples ignorância ou desconhecimento dos princípios ou procedimentos científicos em si. Portanto, não faz sentido combatê-los contrapondo a verdade à mentira, pois esses movimentos são profundamente ideológicos, não apenas expressam ideias ou valores falsos, mas constroem um sentido e uma intepretação do mundo e da ciência que mascaram ou negam a realidade conflituosa e dividida do mundo.

Não se combate uma ideologia com a verdade, porque a ideologia não é o contrário ou a negação da verdade, mas é outra verdade, que caminha em sentido contrário, servindo a valores sociais e a interesses econômicos específicos. Assim, nessa quadra histórica do capitalismo neoliberal e globalizado, a desinformação – fake news, se preferirem – e o movimento anticiência precisam ser desmontados como elementos fundamentais do processo de acumulação de capital, porque é aí que ela faz sua aparição e adquire seu sentido.

*Adriano Luiz Duarte é professor de história na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Referências


EPSTEIN, Isaac. “Ciência e Anticiência (apontamentos para um verbete)”. Comunicação & Sociedade, n. 29, 1998.

ANDRADE, Rodrigo de Oliveira. “Resistência à ciência”. Pesquisa Fapesp, n° 284, outubro de 2019.  https://revistapesquisa.fapesp.br/resistencia-a-ciencia/ Acesso em 14 out. de 2020

CAZARRÉ, Marieta. Países europeus combatem desinformação na web de formas distintas. Agência Brasil – Lisboa, 08/07/2018. https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2018-07/fake-news-paises-europeus-combatem-o-problema-de-formas-distintas.

HOFSTADTER, Richard. Anti-Intellectualism in American Life. New York: Vintage Books, 1963.

Nota


[i] Pew Research Center é um think tank fundado em 2004 em Washington DC. Ele produz informações sobre questões, atitudes e tendências que estão moldando os EUA e o mundo.

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

MAIS AUTORES

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Paulo Nogueira Batista Jr Luiz Carlos Bresser-Pereira Tales Ab'Sáber Fernão Pessoa Ramos Heraldo Campos Rubens Pinto Lyra Milton Pinheiro Yuri Martins-Fontes Alysson Leandro Mascaro Manuel Domingos Neto Juarez Guimarães Antonio Martins Marilia Pacheco Fiorillo Marjorie C. Marona Eugênio Bucci Fernando Nogueira da Costa Dennis Oliveira Henri Acselrad Ladislau Dowbor Francisco de Oliveira Barros Júnior Luís Fernando Vitagliano Julian Rodrigues Bento Prado Jr. José Costa Júnior Elias Jabbour Luiz Renato Martins Paulo Fernandes Silveira Flávio R. Kothe Gilberto Maringoni Marcos Aurélio da Silva Tarso Genro Daniel Brazil João Carlos Salles Bruno Fabricio Alcebino da Silva Slavoj Žižek Luiz Marques Henry Burnett Celso Favaretto Rafael R. Ioris Vladimir Safatle Antonino Infranca Vinício Carrilho Martinez Alexandre de Freitas Barbosa Paulo Sérgio Pinheiro Kátia Gerab Baggio Jorge Branco Valerio Arcary Mário Maestri Annateresa Fabris Ronald Rocha Alexandre de Oliveira Torres Carrasco João Carlos Loebens Daniel Costa Michel Goulart da Silva Michael Löwy Manchetômetro Renato Dagnino Ricardo Fabbrini Luciano Nascimento Francisco Fernandes Ladeira Daniel Afonso da Silva José Luís Fiori Eleonora Albano Leonardo Sacramento Luiz Werneck Vianna Denilson Cordeiro João Adolfo Hansen Sandra Bitencourt André Singer Boaventura de Sousa Santos Salem Nasser Luiz Bernardo Pericás Michael Roberts João Feres Júnior Marcelo Guimarães Lima Walnice Nogueira Galvão Ari Marcelo Solon Maria Rita Kehl Armando Boito José Micaelson Lacerda Morais Marcus Ianoni Eduardo Borges Tadeu Valadares Alexandre Aragão de Albuquerque Airton Paschoa Matheus Silveira de Souza Marilena Chauí Gerson Almeida Eugênio Trivinho Luis Felipe Miguel Lorenzo Vitral Ricardo Abramovay Samuel Kilsztajn Anselm Jappe João Sette Whitaker Ferreira Liszt Vieira Paulo Capel Narvai Leonardo Boff Andrew Korybko Andrés del Río Plínio de Arruda Sampaio Jr. Paulo Martins Bruno Machado Jorge Luiz Souto Maior Thomas Piketty Mariarosaria Fabris Caio Bugiato Otaviano Helene Igor Felippe Santos Bernardo Ricupero Carlos Tautz José Machado Moita Neto Carla Teixeira Antônio Sales Rios Neto Claudio Katz Ricardo Antunes Jean Marc Von Der Weid Lincoln Secco Luiz Roberto Alves Chico Whitaker Valerio Arcary Flávio Aguiar João Paulo Ayub Fonseca Ronald León Núñez Everaldo de Oliveira Andrade Sergio Amadeu da Silveira Berenice Bento Gabriel Cohn Marcelo Módolo Alexandre de Lima Castro Tranjan Vanderlei Tenório Benicio Viero Schmidt Leonardo Avritzer Luiz Eduardo Soares João Lanari Bo Osvaldo Coggiola José Geraldo Couto Ricardo Musse André Márcio Neves Soares Priscila Figueiredo Dênis de Moraes Leda Maria Paulani Fábio Konder Comparato Gilberto Lopes Remy José Fontana José Dirceu Afrânio Catani Ronaldo Tadeu de Souza Lucas Fiaschetti Estevez Celso Frederico Eliziário Andrade Eleutério F. S. Prado Érico Andrade Chico Alencar Atilio A. Boron José Raimundo Trindade Francisco Pereira de Farias Marcos Silva Jean Pierre Chauvin Rodrigo de Faria

NOVAS PUBLICAÇÕES