Por LINCOLN SECCO*
Comentário sobre o filme de Dellani Lima & Lucas Barbi
Ele é o cara mais punk que eu já conheci. Costumo brincar com o Mao que este será o título da biografia dele que eu vou escrever. O filme de Dellani Lima e Lucas Barbi exibido na 45ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo revela as diversas frentes de atuação de José Rodrigues Mao Junior: o punk do ABC paulista, o vocalista dos Garotos podres, o professor da rede pública, o sindicalista, o historiador, o militante e muito mais.
É difícil encontrar sob suas faces públicas a essência do personagem. O crítico de O Globo, Mauro Ferreira, o definiu muito bem como “o eterno garoto punk da periferia do ABC Paulista”. No entanto, o filme vai além e deixa que o rosto dele se forme aos poucos nos nossos olhos, quase como um quadro pontilhista, feito de trechos de aulas e debates, comícios e protestos, encontros e rachas políticos, fotogramas esmaecidos pelo tempo e a irrupção de uma cena punk nova, com meninas subindo ao palco e jovens sambando com rock. Um mérito da montagem de Dellani Lima.
Os diretores recordaram a força visual da banda, o impacto do som no público, o abuso do backing vocal e a performance humorística do Mao. Mas também expuseram o aggiornamento do punk rock no registro de falas dos novos integrantes da banda, ex fãs que adentraram definitivamente a história dos Garotos podres: Deedy (guitarrista), Uel (baixista) e Tony Karpa (baterista). A fixação da câmera no dedilhar das cordas e a fala final do baterista são pontos altos do filme.
As faces do Mao estão misturadas tanto quanto a cultura e a região onde ele surgiu. O ABC tem uma tradição comunista, trabalhista e petista; sua classe operária é um encontro de italianos e nordestinos. Os shows nunca tiveram uma total separação entre público e palco; o professor Mao da sala de aula nunca deixou de dar lições históricas sobre as letras que cantaria em seguida nos shows; e a opção solitária do vocalista por uma militância de esquerda não é um ponto fora da curva nos meios da sua cultura musical, seja aqui no Brasil, seja na Europa com os Skinheads Against Racial Prejudice (Sharp).
O que confere unidade ao filme é a militância antifascista que se inicia na ditadura, questionando a censura, tocando para o fundo de greve e apoiando as campanhas do PT e da CUT, algo que o restante da velha formação da banda nunca compartilhou. E este o motivo pelo qual eles foram esquecidos.
O filme também expõe a rede de relações política e a interlocução científica de um personagem que combina a sala de aula, o ativismo militante e a pesquisa acadêmica. Mao defendeu uma tese na Universidade de São Paulo intitulada A Revolução Cubana e a questão nacional. Uma obra pioneira que seguramente é a melhor exposição do tema publicada no Brasil. Ele expõe o processo histórico tomando o nacionalismo revolucionário como um elemento de longa duração, de tal forma que a revolução não se inicia em 1956, mas no século XIX. E continua até hoje.
Mao tem sólidos conhecimentos de história militar, o que o singulariza entre os estudiosos das revoluções. É difícil sustentar com ele um debate sobre as Guerras Napoleônicas ou acerca do papel da União Soviética na Guerra Civil Espanhola.
Escrevemos juntos nos anos 1990 A Revolução Chinesa: até onde vai a força do dragão? Registre-se que a pergunta do subtítulo foi feita numa época em que a economia brasileira poderia ser uma rival da chinesa. A China ainda estava decolando. O livro mostrou que o Partido Comunista Chinês nunca foi monolítico e isso se revelou na sua estratégia militar e na variedade de suas políticas econômicas; ele herdou uma tradição de revoltas camponesas milenar.
São muitas faces que desenham um único rosto: o de uma personalidade que particulariza em sua trajetória de vida os processos gerais de nossa história recente. Nele, o universal se expressa através da música e dos livros, nas lutas e nas aulas, mas sobretudo na intransigência dos princípios. Em qualquer conjuntura, ele é um socialista do início ao fim. Perante o fascismo não transige nem negocia. Não se verga, nem recua. Eis o Mao que vi nos confrontos com a polícia, nas assembleias, em solidariedade a colegas presos, em tantos debates, brigas, correrias e nas greves de professores. Foram conversas demais, com vinho demais. Mas sempre com esperança. Este é o personagem a que se pode assistir nesse indispensável filme biográfico.
*Lincoln Secco é professor do Departamento de História da USP. Autor, entre outros livros, de História do PT (Ateliê Editorial).
Referência
As faces do Mao
Brasil, 2021, documentário, 77 minutos.
Direção, roteiro e fotografia: Dellani Lima & Lucas Barbi.
Montagem: Dellani Lima.