As prisões da mente

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Por FLÁVIO R. KOTHE*

A criação artística não vem do nada, mas da ruptura com o já dito. O problema é que continuamos presos às mesmas metáforas – corpo e alma, forma e matéria – como se fossem respostas, e não prisões

1.

Hegel aventou que há uma essência “ideativa” em todas as artes e que a poesia seria a mais elevada das artes por ser a mais universal. Ela é, no entanto, menos “universal” que a pintura, a música, a escultura, a dança, pois estas são compreensíveis por povos de diferentes línguas, culturas e épocas, enquanto na poesia a primeira barreira é formada pela língua de acesso e, dentro da língua, pelos códigos de diferentes tipos de texto, perfis das diversas escolas, cacoetes de cada autor.

Horácio supunha que, com seus poemas, tinha erigido um monumento mais perene que o bronze, mas só podia supor isso na medida em que latim era língua oficial do império romano, da igreja católica, do ensino cristão.

Um autor francês, alemão, ianque ou inglês achar que qualquer pessoa civilizada deva entender o que está escrito na língua dele é arrogância colonialista, em que o processo civilizatório é ditado pela política da potência com maior poder de fogo. Pela Inteligência artificial se consegue a rápida tradução de textos, o que supera a primeira barreira da língua, sem resolver a diferença de qualidade textual.

O que a Inteligência artificial parece não conseguir é a criatividade original da poesia, pois ela monta textos a partir de repertórios já estabelecidos, sem ter o discernimento de começar onde eles acabam e tomar uma direção significativa e nova.

A palavra na poesia já foi comparada à moeda que valia em ouro o valor e nela inscrito, enquanto a da prosa equivaleria ao papel-moeda, que tem o valor que ele afirma ter, pois “in god we trust”. Essa comparação está ultrapassada na economia, não se imprimem mais moedas com valor real, e ela não define a diferença entre gêneros literários: há prosa de alta qualidade, em que cada palavra é precisa e necessária, assim como há muita escrita em verso que não tem consistência nem valor.

O ouro tem o valor que lhe é atribuído conforme a época e o meio, mas não é mera convenção. Ele é raro, permite lâminas finas e um acabamento duradouro. O que seja considerado “poético” varia conforme culturas e grupos sociais, sem que algum deles possa ter certeza de suas certezas.

Que se queira que o poético tenha valor permanente pode partilhar o esquema escolástico de que verdades seriam eternas por estarem na mente divina. Espaço e tempo são inerentes a todos os entes, mas a essência deles não se confunde com seu estar num aqui e agora. Quando o escultor faz do mármore uma escultura, ele dá à coisa uma significação e uma beleza que não havia antes, mas que continua na nova coisa que é o mármore transformado.

A estátua é um ente, assim como ente é a pedra de que é feita. O escultor põe na pedra entidades que nela não havia, mas que ele discerniu como possíveis antes que as mostrasse a outros. Fica fácil supor que no corpo da pedra foi injetada uma alma que a enche de significação. Assim se recai na metafísica cristã, que costuma ser a mesma do público receptor da teorização. Não se dá um passo adiante pela repetição, mas se parece ter dito algo inteligente.

2.

Como se dá, todavia, essa conexão entre o ente considerado mais simples, como a pedra ou a página em branco, e esse outro ente, carregado de entidades que não havia antes aí? Com o é que um ente pode ser outro ente? Ou essa pergunta está mal formulada? Um ente não é outro ente, ele é o que ele é e está aí. O outro ente que surge, a estátua ou a página escrita, abriga sentidos diversos, conjuga um ente a outro ente e mais outro e outro. De que modo ele é outros, não como mero símbolo ou alegoria?

A explicação tem sido feita com poéticas, retóricas e estéticas. Suas categorias estão marcadas pela metafísica a ser superada. Quando se tenta entender a relação entre o mármore e a estátua, é fácil recair no esquema de corpo e alma, da matéria bruta e da forma espiritualizada. Ele parece que explica, mas não resolve nada, pois abriga problemas não resolvidos.

Aristóteles registrara que não há forma sem matéria nem matéria sem forma. A pedra bruta já tem algum formato; a estátua continua sendo feita de mármore. Mesmo na tela do PC, uma forma tem certa materialidade, da tela e dos fótons que nela se alinham.

Tomás de Aquino teve de inventar que haveria puras formas de todas as coisas na mente divina: se tivesse mantido o sentido de ideia em Platão, um protótipo, Deus teria de ser uma duplicação do universo, ou, para ser bem cristão, o universo seria uma duplicação de Deus (ou ao menos uma projeção de sua vontade), o que faria do homem, enquanto criatura similar a Deus, uma vontade de poder, a constituir na técnica o meio de dominar tudo.

O artista é visto aí como “criador”, como um pequeno Deus, a gerar obras a partir do nada. Ora, não é bem assim. Nenhuma obra surge do nada, mas é gestada a partir de diversas obras por semelhança e dessemelhança, testemunhando aspectos de sua época e olvidando outras questões. É possível entender melhor uma obra a partir da comparação com obras pertencentes à mesma série. Em suma, a questão tem sentido prático, didático.

3.

Como o background do público ocidental é cristão, torna-se tranquilo para os dois lados restabelecer o pacto de sua crença, de sua visão de mundo. Difícil é pensar o que não está pensado: como se dá essa conjunção de um ente a outros entes, esse afloramento de algo como o Seyn em um ente determinado.

A metáfora remete de um ente a outro; o símbolo encena algo maior que o ente que está aí; o emblema representa de algo concreto um significado amplo e determinado; o oxímoron reúne opostos numa assertiva única; a metonímia resvala de um ente para outros entes próximos, unindo-os em nova significação; a hipérbole parece um exagero, mas mostra algo mais amplo no ente do qual se fala; a antropomorfização faz de uma coisa ou de animal um ente que fala e pensa e age como se humano fosse; a parábola aparenta falar de uma situação e acaba se referindo a algo mais amplo e que é o seu sentido. Tudo isso tenta explicar, e no fundo nada explica.

Como se vê, a poesia tem uma longa tradição mundial de buscar uma lógica diferente da lógica de A = A, B = B, 1 = 1. Ela diz que A pode ser B ou C. Implícito tem-se aí que 1 não é igual a 1, ou seja, que 2 + 2 não é = 4. No 1 = 1, o primeiro um é significado como 1 pelo segundo 1 e, desse modo, vem depois do segundo, e não é o primeiro 1 como 1. O primeiro 1 é sujeito: 1 é igual a. O segundo 1 é predicado. Sujeito e predicado não são o mesmo. A frase 1 = 1 nega a si mesma.

Hegel já disse algo parecido. Um ninho com 4 ovos não é igual a 2 ninhos com 2 ovos em cada. A matemática não é exata, mas ela é o modelo de todo o nosso pensar. Ela torna igual o que é apenas parecido. Iguala o desigual. E assim se torna modelo de todo o nosso pensar (que não pensa, mas apenas repete erros).

É preciso pensar um passo adiante. Só que não se conseguiu desenvolver um pensamento teórico que vá alguns passos adiante. Houve a dialética, sim, com Fichte, Solger, Hegel e Marx, e houve depois a redução do homem à vontade com Schopenhauer e daí o passo de Nietzsche na direção da vontade de poder.

A lógica da arte não é a velha lógica analítica. Também não se resolve pela união de um par de contrários, como proporia a dialética e já constava no oxímoro. Antes ficar, porém, diante do não resolvido, do que ficar fingindo que se resolveu o que apenas reaquece antigos esquemas.

*Flávio R. Kothe é professor titular aposentado de estética na Universidade de Brasília (UnB). Autor, entre outros livros, de Alegoria, aura e fetiche (Editora Cajuína). [https://amzn.to/4bw2sGc].


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