Concentração de riqueza e evasão fiscal

Imagem: Daniel Frese
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por THOMAS PIKETTY*

A crescente concentração da riqueza caminha para se tornar o principal problema econômico do mundo

Alegrem-se: a American Economic Association (AEA), principal organização profissional para economistas nos Estados Unidos, acaba de conceder a Medalha Clark a Gabriel Zucman por seu trabalho sobre concentração de riqueza e evasão fiscal. Concedido anualmente a um laureado com menos de 40 anos, a distinção recompensa notavelmente o trabalho inovador que demonstra a considerável importância da evasão fiscal por parte dos ricos, inclusive nos países escandinavos, que são rapidamente considerados modelos de virtude.

Dotado de uma imensa capacidade de trabalho, uma rara atenção aos detalhes e um talento inigualável para desenterrar novos dados e fazê-los falar, Gabriel Zucman também revelou a dimensão insuspeita da evasão do imposto de renda de empresas por multinacionais de todos os países.

Hoje diretor do Observatório Fiscal da União Europeia, ele dedica a mesma energia para encontrar soluções para os males que documenta. Num dos seus primeiros relatórios,[1] o Observatório demonstrou que os Estados-membros da União Europeia podiam optar por ir mais longe do que a taxa mínima de 15% fixada pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) (demasiado baixa e amplamente contornada), sem esperar pela unanimidade. Ao impor a cada multinacional que pretenda exportar bens e serviços uma taxa de 25% sobre os seus lucros – a mesma que pagam os produtores estabelecidos em território nacional – a França obteria uma receita adicional de 26 bilhões de euros e encorajaria outros países a fazer o mesmo.

O fato da American Economic Association optar por premiar esse trabalho é importante, porque mostra que o coração da profissão começa a se dar conta da insustentabilidade do atual modelo social e fiscal. Não exageremos: os economistas sempre foram menos monolíticos do que às vezes se imagina, inclusive nos Estados Unidos. Em 1919, o presidente da American Economic Association, Irving Fisher, optou por dedicar seu “discurso presidencial” à questão das desigualdades.

Ele explica sem rodeios aos colegas que a crescente concentração da riqueza caminha para se tornar o principal problema econômico da América, que corre o risco, se não tomarmos cuidado, de se tornar tão desigual quanto a velha Europa (então percebida como oligárquica e contrária ao espírito norte-americano). Irving Fisher mostra-se perplexo com as estimativas publicadas em 1915 por Willford King de que “2% da população possuem mais de 50% da riqueza” e que “dois terços da população possuem quase nada”, o que lhe sugere “uma distribuição não democrática da riqueza” ameaçando os próprios alicerces da sociedade norte-americana.

Victory tax

É nesse contexto que os Estados Unidos aplicaram de 1918-1920 (sob o mandato do presidente democrata Wilson) taxas superiores a 70% no topo da hierarquia de renda, antes de todos os outros países. Quando Franklin D. Roosevelt foi eleito em 1932, o terreno intelectual já estava preparado há muito para a implementação da progressividade tributária em larga escala, com o famoso Victory tax (Imposto da Vitória) de 88% em 1942 e 94% em 1944. Os Estados Unidos aplicarão taxas semelhantes na Alemanha e Japão: no espírito da época, essas instituições tributárias foram vistas como um complemento indispensável das instituições democráticas, caso contrário estas corriam o risco de cair em uma deriva plutocrática.

Essas lições infelizmente foram esquecidas, e os Estados Unidos e grande parte do mundo entraram, desde as décadas de 1980 e 1990, em uma nova espiral oligárquica. Certamente seria um exagero jogar toda a responsabilidade sobre os economistas. Se a contra-ofensiva lançada nos anos 1960 e 1970 por Milton Friedman ou Friedrich Hayek conseguiu dar frutos, é também pela falta de apropriação coletiva das instituições do New Deal por parte dos cidadãos e do movimento social e trabalhista.

A batalha intelectual também foi travada nos departamentos de filosofia: quando John Rawls publicou sua Teoria da Justiça em 1971, lançou as bases conceituais de um ambicioso programa igualitário, mas permaneceu relativamente abstrato em suas saídas práticas. Ao mesmo tempo, Milton Friedman e Friedrich Hayek são perfeitamente específicos sobre seu objetivo de demolição da progressividade tributária.

Desregulamentação e liberalização

O fato é que os economistas têm uma responsabilidade particular no movimento de desregulamentação e liberalização das últimas décadas. Há, claro, os efeitos ligados à busca por financiamento privado, que vira os comentários à direita. Em 2016, quando os democratas Bernie Sanders e Elizabeth Warren endossaram propostas ousadas de imposto sobre a riqueza (com taxas subindo de 6% a 8% ao ano acima de US$ 1 bilhão), o ex-secretário do Tesouro de Bill Clinton e presidente de Harvard, Larry Summers – grande defensor da liberalização absoluta dos fluxos de capital – quase se estrangula e não hesita em atacar violentamente pesquisadores como Gabriel Zucman que defendem essas propostas (que, no entanto, são simples senso comum, dadas as alíquotas quase zero do imposto de renda pago pelos bilionários) .

Existem também razões estritamente intelectuais ligadas à evolução da disciplina de economia. Para dar a si mesma um fascínio científico autônomo, a economia tendeu a se isolar da história e da sociologia e a naturalizar as instituições estudadas (mercado, propriedade, competição), esquecendo no processo seu enquadramento social e político em sociedades particulares.

Os modelos matemáticos podem ser úteis se forem usados com sabedoria e não como um fim em si mesmos. A técnica estatística pode ser utilizada desde que não se perca de vista o olhar crítico sobre as fontes e categorias. Ainda há um longo caminho a percorrer para que a economia política e histórica recupere seu lugar de direito no interior das ciências sociais.

*Thomas Piketty é diretor de pesquisas na École des Hautes Études en Sciences Sociales e professor na Paris School of Economics. Autor, entre outros livros, de O capital no século XXI (Intrinseca).

Tradução: Aluisio Schumacher para o portal fórum 21.

Publicado pelo jornal Le Monde.

Nota


[1] Collecting the tax deficit of multinational companies: simulations for the European Union, Mona Barake, Theresa Neef, Paul-Emmanuel Chouc, Gabriel Zucman, June 2021.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
João Sette Whitaker Ferreira Juarez Guimarães Marilia Pacheco Fiorillo Daniel Costa Antonino Infranca Paulo Sérgio Pinheiro Luiz Renato Martins Remy José Fontana Marcus Ianoni Ronaldo Tadeu de Souza Paulo Martins Flávio Aguiar Paulo Fernandes Silveira André Márcio Neves Soares Sandra Bitencourt Marjorie C. Marona Paulo Capel Narvai Ari Marcelo Solon Celso Frederico Gilberto Lopes Francisco de Oliveira Barros Júnior Leonardo Sacramento Luiz Marques Berenice Bento Michael Roberts Jorge Branco Plínio de Arruda Sampaio Jr. Armando Boito João Paulo Ayub Fonseca João Lanari Bo Marcos Aurélio da Silva Rafael R. Ioris Paulo Nogueira Batista Jr Marcelo Módolo Bruno Machado Rubens Pinto Lyra Francisco Pereira de Farias Luis Felipe Miguel José Luís Fiori Tales Ab'Sáber João Carlos Loebens Thomas Piketty Ronald León Núñez João Carlos Salles Érico Andrade Marilena Chauí Bernardo Ricupero José Raimundo Trindade Gerson Almeida Eduardo Borges Gabriel Cohn Rodrigo de Faria Jean Marc Von Der Weid Fernando Nogueira da Costa Chico Whitaker Jorge Luiz Souto Maior Walnice Nogueira Galvão Dênis de Moraes Henry Burnett Everaldo de Oliveira Andrade Eliziário Andrade Ladislau Dowbor Marcos Silva Boaventura de Sousa Santos Leonardo Avritzer Vanderlei Tenório Ricardo Abramovay Mário Maestri Antônio Sales Rios Neto Denilson Cordeiro Yuri Martins-Fontes Julian Rodrigues Luciano Nascimento Otaviano Helene Alexandre Aragão de Albuquerque Carlos Tautz Mariarosaria Fabris Tarso Genro Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Fernão Pessoa Ramos Alysson Leandro Mascaro Ricardo Antunes Eleonora Albano Valerio Arcary José Costa Júnior Jean Pierre Chauvin Maria Rita Kehl Osvaldo Coggiola Airton Paschoa João Adolfo Hansen Matheus Silveira de Souza Eugênio Trivinho Slavoj Žižek Alexandre de Lima Castro Tranjan José Machado Moita Neto Antonio Martins Milton Pinheiro Luiz Roberto Alves Salem Nasser Celso Favaretto Tadeu Valadares Fábio Konder Comparato Renato Dagnino Lincoln Secco Annateresa Fabris Lucas Fiaschetti Estevez Luiz Bernardo Pericás Carla Teixeira Caio Bugiato Daniel Brazil José Dirceu Atilio A. Boron Heraldo Campos Priscila Figueiredo Samuel Kilsztajn Sergio Amadeu da Silveira Kátia Gerab Baggio Chico Alencar Marcelo Guimarães Lima Andrew Korybko Eugênio Bucci José Geraldo Couto Gilberto Maringoni Claudio Katz Ricardo Fabbrini Ricardo Musse João Feres Júnior Benicio Viero Schmidt Luiz Werneck Vianna Dennis Oliveira Leonardo Boff Valerio Arcary Flávio R. Kothe Bruno Fabricio Alcebino da Silva André Singer Luís Fernando Vitagliano Michael Löwy Liszt Vieira Vinício Carrilho Martinez Eleutério F. S. Prado Elias Jabbour Anselm Jappe Daniel Afonso da Silva Leda Maria Paulani Luiz Eduardo Soares Ronald Rocha Bento Prado Jr. José Micaelson Lacerda Morais Afrânio Catani Henri Acselrad Michel Goulart da Silva Vladimir Safatle Igor Felippe Santos Luiz Carlos Bresser-Pereira Lorenzo Vitral Manuel Domingos Neto Andrés del Río Manchetômetro Francisco Fernandes Ladeira Alexandre de Freitas Barbosa

NOVAS PUBLICAÇÕES